Judiciário e democracia

Por Leonardo Avritzer*, no Jornal do Brasil

O Brasil constituiu, a partir de 1988, uma forte tradição de interferência do poder  judiciário em decisões que, a princípio, cabem ao sistema político. A Constituição de 1988 tentou fortalecer o judiciário em relação aos outros poderes e apontar para uma nova prática capaz de romper com a tradição de um judiciário fraco. Para tanto, os constituintes fortaleceram este poder ou mais especificamente o STF em três prerrogativas: a  capacidade de rever atos do poder executivo, a possibilidade de ser última instância recursal e a prerrogativa de julgar políticos no foro especial.  As três prerrogativas fizeram com que o Brasil passasse de uma presidência imperial para um judiciário imperial. A pergunta que se coloca é: como entender essa enxurrada de decisões políticas por um poder não constituído eleitoralmente?

Nos últimos anos, ministros do Supremo Tribunal Federal, alguns de forma monocrática, decidiram as seguintes questões: a volta de um projeto de lei do Senado para a Câmara porque um dos ministros do STF considerou que ele não foi bem discutido. Diga-se, de passagem, este projeto incluía punições a membros do poder judiciário por abuso de autoridade. Extensão do auxílio moradia para todo o país independente de comprovação de residência, ato realizado por medida liminar. Medidas liminares impedindo posse de ministros cuja designação é atribuição exclusiva do presidente. Por fim, a suspensão do indulto natalino.

Os ministros do S.T.F no Brasil têm prerrogativas legais e informais que nenhum ministro de Supremo Tribunal tem, como por exemplo, pedir vistas de um processo por tempo indefinido sustando uma decisão ou emitir liminares que se tornam-se decisões. Pior ainda, ministros do STF recentemente se arvoraram em revisores da Constituição de 1988 em seu capítulo das garantias fundamentais ao decidirem pela prisão em segunda instância. O mais impressionante em relação a este fato, em si atípico e único no planeta é que não há qualquer texto escrito por nenhum ministro. Ele constitui mera opinião dos ministros expressa na negação de um pedido de habeas corpus. Assim, não temos texto jurídico em uma decisão que contraria um artigo acerca dos direitos e garantias fundamentais da Constituição. Como justificar todas estas prerrogativas?

Recentemente, em artigo publicado na imprensa um dos ministros do STF defendeu a atuação da corte argumentando que ela desempenha três papéis, o contra majoritário, o representativo e o iluminista. Cabem diversas considerações em relação a esta definição, mas irei me concentrar em apenas um ponto: é impossível que uma instituição seja ao mesmo tempo contra majoritária e representativa. Os Supremos Tribunais mundo afora são sempre contra majoritários, isso é, não são constituídos pelo voto popular e nem tomam decisões baseadas em como a opinião pública se posiciona sobre um tema. Se assim fosse, muitos direitos contra intuitivos não seriam garantidos. Ora, se a grande característica dos Tribunais Supremos é ser contra majoritários, como eles podem ao mesmo tempo ser representativos se esta exige eleição? Aqui vale a pena realizar uma distinção: já quase não se fala no Brasil de representação eleitoral e o ministro deve ter se referido à opinião pública ou publicada. Mas este é justamente o problema: o Brasil quer um supremo contra majoritário que consiga defender a Constituição ou um Supremo cujos juízes atuem com a mesma lógica dos técnicos de futebol, seguindo os clamores da torcida?

*Cientista Político, professor da UFMG

Ilustração: João Montanaro

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