Marielle Franco: nosso fuzil é a palavra

Thamyra Thâmara de Araujo – Revista DR

Na noite em que a Mari partiu, choveu.

Não tinha chuva anunciada na meteorologia da cidade, mas choveu. Não o suficiente para ocupar os jornais do dia seguinte com histórias de casas que caíram e famílias que ficaram sem nada. Mas choveu o suficiente para gente se perguntar por que aquela água estava ali.

A chuva veio acompanhada de um vento tão forte que balançou as árvores, bateu nas janelas aqui de casa e entrou no quarto fazendo um zunido grande. Era um vento tão imponente que parecia reivindicar seu lugar. Parecia irado. Depois senti que o vento tocava a gente com paz, quase como se falasse que tudo seria resolvido. Nessa noite, eu e ele dormimos de mãos dadas na cama, embalados pelo barulho do vento. De manhã vi uma borboleta laranjada com marrom na porta: percebi que era sagrado.

Não precisava ser amiga da Mari para chorar sua partida. Todo mundo que sonhava por um mundo melhor sentiu bem fundo no peito sua esperança ir embora quando o jornal anunciava que de alguma forma eles tinham vencido. Ela era a mulher que acolhia a dor das mães que perderam seus filhos, a pessoa que lutava junto com elas. Aquela para quem você podia ligar a qualquer horário, que estaria ali para te ajudar.

Foi assim que nós, pretas e pretos, acordamos de banzo. Corpo doído, cabeça zonza, resfriado, febre, choro, dor, raiva, ódio, coração pequeninho. Como aquela sensação de nostalgia que os nossos ancestrais sentiram por estar ausentes de seu país de origem. Uma tristeza profunda.

Além de saudade da nossa irmã, era a revolta por saber que somos os corpos matáveis, que não têm importância na sociedade, os corpos que enterram outros corpos, que não têm nem o direito de ter o caixão aberto. Doeu e dói uma dor, que de tão seca, quase não tem lágrimas. Uma dor que já viu tantos irem embora, que desaprendeu a chorar e só sabe gritar. Porque a morte matada é sempre a mais doída, rasga o coração e tem quase sempre o mesmo endereço.

Marielle Franco não era apenas socióloga, ativista de direitos humanos, quinta vereadora mais votada no Rio e relatora da Comissão que acompanhava a Intervenção Militar no Rio de Janeiro. Ela era a Mari, mulher negra, favelada, filha da Marinete e Chiquinho, mãe da Luyara, companheira da Mônica, a mulher do sorriso mais lindo e forte que vi.

Ela era filha de Oyá, a senhora dos ventos, dos tufões, das nuvens, tempestades, das águas agitadas pelo vento. A morte e seus mistérios não assustam Oyá. Mãe dos eguns, Oyá gueré a unló, só mesmo você, Iansã, mãe do entardecer. Era tão ela erguer a saia, pisar no fogo e nos convidar a guerrear. Marielle ainda nos convida a guerrear e, depois que o luto passar, nós estaremos lá de punhos erguidos.

O luto. Não dá para esperar que transformemos a dor em luta a cada instante. Às vezes, é preciso o tempo: de chorar, do silêncio, da acolhida. Será que podemos dar repouso aos nossos em paz sem ouvir calúnias em cada esquina? Será que podemos cuidar dos nossos sem transformarem o luto em carnaval?

Porque quando um preto não está mais entre nós é preciso provar que ele era bom, que era gente como toda a gente. É preciso lutar para que sua partida não vire uma simples bandeira. Não precisamos de mais líderes negros mortos. A história já nos deu isso.

Deixa as nossas mortes serem sagradas, deixa se sentir no corpo.

Deixem os nossos vivos para que possamos recontar a história.

Ontem quando subíamos o morro, com o corpo moído e abatido encontramos outro irmão no caminho. Ele nos olhou e disse que tinha ficado em casa chorando, não teve forças de ir para as ruas. A gente se olhou e se abraçou por alguns minutos e percebi que só em outro corpo preto eu sentiria consolo e paz. A memória dela precisava ser honrada e seria por quem proclama Ubuntu. “Eu sou porque nós somos”.

A mari, a nossa Mari se foi tão cedo. Foram três tiros na cabeça e um no pescoço. Três tiros no seu Ori. Eu me pergunto por que a cabeça? Queriam silenciar sua voz. E a voz dos seus ancestrais. A voz do povo negro, a voz das mulheres, a voz dos pobres. Eles só não sabiam que para nós a morte não é um fim em si mesmo. Ela vive em nossos corpos. E nós continuamos armados com a palavra.

Marielle, presente!

Valeu negona!

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Oiara Bonilla.

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