Minha avó foi pega a laço, por Daniel Munduruku

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Pode parecer estranho, mas já ouvi tantas vezes esta afirmação que já até me acostumei a ela. Em quase todos os lugares onde chego alguém vem logo afirmando isso. É como uma senha para se aproximar de mim ou tentar criar um elo de comunicação comigo. Quase sempre fico sem ter o que dizer à pessoa que chega dessa maneira. É que eu acho bem estranho que alguém use este recurso de forma consciente acreditando que é algo digno ter uma avó que foi pega a laço por quem quer que seja.

– Você sabia que eu também tenho um pezinho na aldeia? – ele diz.

– Todo brasileiro legítimo – tirando os que são filhos de pais estrangeiros que moram no Brasil – tem um pé na aldeia e outro na senzala – eu digo brincando.

– Eu tenho sangue índio na minha veia porque meu pai conta que sua mãe, minha avó, era uma “bugre” legítima – ele diz tentando me causar reação.

– Verdade? – ironizo para descontrair.

– Ele diz que meu avô era um desbravador do sertão e que um dia topou com uma “tribo” selvagem lá por Goiás.

– Eita. Que história interessante – falo arregalando os olhos.

– Pois é. Meu pai disse que meu avô contou que minha avó era muito linda e que olhou bem nos seus olhos antes de correr. Meu avô ficou enfeitiçado por ela. Imediatamente ele tirou o laço do lombo do cavalo em que estava montado e a laçou.

– Que incrível – digo.

– Ela, no começo, esperneou, gritou, chamou pelos outros “índios”, mas ninguém voltou e meu avô a levou para casa e com ela teve nove filhos.

– Uau!

– Meu avô contou para meu pai que vovó era baixinha, tinha cabelos longos bem pretinhos e olhos puxadinhos. Ela ficava horas sentadas na frente de casa penteando os cabelos e com os olhos perdidos no horizonte.

– Ela devia estar cantando a saudade de sua casa – disse para quebrar o clima sombrio.

– Meu avô dizia que ela ficou a vida inteira aguardando que sua “tribo” viesse resgatá-la. Nunca ninguém apareceu. Ela, no entanto, foi muito feliz ao lado do meu avô.

Minha atenção se fixou nesta última frase enquanto meu novo amigo se despedia dizendo que tinha sido um prazer me conhecer. Cumprimenta-me, me olha de cima a baixo, vira as costas e vai embora.

Apesar de ser comum esta situação nunca deixo de pensar nela. Acho esquisito quando alguém se orgulha de ter tido uma avó que foi escravizada por um homem que a usou durante toda uma vida e a obrigou a gestar filhos que provavelmente não queria. Penso que a maioria das pessoas não se dá conta de que esta narrativa é repetida tantas vezes e de forma poética para esconder uma dor que devia morar dentro de todos os brasileiros: somos uma nação parida à força. Foi assim com os primeiros indígenas forçados a receber uma gente que se impôs pela crueldade e pela ambição; uma gente que tinha olhares lascivos contra os corpos nus – e sagrados – das mulheres nativas. Foi assim com os negros trazidos acorrentados nos porões de navios para serem escravos de pessoas que se sentiam superiores apenas por conta da cor de sua pele; as mulheres eram usadas como domésticas e como amantes gerando “brasileiros” que eram desqualificados porque cresciam sem pai.

O Brasil foi “inventado” a partir das dores de suas mulheres e é importante não esquecermos esta história para podermos olhar de frente para nosso passado e aprendermos com ele. O Brasil precisa se reconciliar com sua história; aceitar que foi “construído” sobre um cemitério. Apenas dessa forma saberemos lidar com criatividade sobre a verdadeira história de como “minha avó foi pega a laço”.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Emilia Wien.

Destaque: Velha Tenharim. Foto de Ana Lange

Comments (13)

  1. Minha tataravó também foi caçada no laço, nenhum de meus parentes vivos conhece a sua história, então eu não sei muito sobre ela, mas sinto o seu sangue em minhas veias. Minha família foi e é composta por mulheres guerreiras, espero um dia ser tão forte quanto elas 🥹

  2. Esses dias consegui a tão sonhada foto da minha bisavó caçada a laço por um europeu foi muito emocionante pra mim ve-la pois carrego traços totalmente diferentes dos meus irmãos que tem traços fortes europeus .
    Só basta saber de que etnia ela seria .

  3. Muitas dessas histórias foram romantizadas para naturalizar a violência, principalmente contra mulheres que ainda são julgadas como culpadas por não term conseguido evitar ou fugir, quantas não morreram nas tentativas… realmente precisamos reconhecer de onde viemos, onde estamos e como podemos contribuir para um futuro com relações respeitosas.
    Também sou descendente de uma mulher indígena que foi raptada, coagida a trabalhos forçados e estuprada inúmeras vezes… muito triste, dizem que ela não era “normal”, mas como agir normalmente nessa situação. Imagino sua dor, sua solidão e desamparo. Não a conheci, assim como também não conheci minha avó materna que morreu antes que eu nascesse. Gostaria de reconhecer essas raízes, mas nem sei sua etnia, não há documentos.

  4. a minha historia e parecida cantadas por alguns parentes mais velho nao tive a onrra de conhcer a minha vo mais relantao que a cabelo dela batia nos pes pois tenha uma coriocidade so queria saber de qual tribo ela era ao tudo de indio

  5. O Miguel Araújo está completamente enganado sua generalidade “amplamente documentada”. A síndrome do stolcomo não afeta penas pessoas brancas, afeta todas as etnias. Se a moça foi estuprada e abandonar pela tribo, poderia muito bem se acostumar como o estuprador e com a solidão. Algo parecido aconteceu com a minha Tataravó, e ala não se suicidou. Foi uma das “pegas no laço”, lá no estado do Alagoas, no final do século XIX. Em um dos conflitos entre fazendeiros e indígenas. Ninguém sabe bem como se deu o conflito e o porquê, mas o que se sabe é que as índias foram levadas como espólio de guerra.
    Minha tataravó era descrita como arredia e distante, brava feito uma onça. Foi forçada a fazer sexo com eu tataravô, e teve 5 filhos. Morreu no ultimo parto, pois a cabeça do bebê, creio eu, pela mistura étnica com meu avô, era muito grande para passar pelo canal vaginal. Se conta que nunca foi feliz, tentou fugir varias vezes, mas era recapturada. Enfim, minha descendência indígena é fruto de um sequestro, seguido de estupro em cárcere privado. E isso é muito triste.

  6. Miguel Araújo, desculpe, mas há muitas deturpações em suas colocações. Servir a quem vence o vencedor não é uma frase bíblica, mas sim de Luiz Vaz de Camões. Além, há de se consultar a história e confirmar que as formas de capturas indígenas não se comparam as crueldades feitas pelos brancos desde o período Colonial até bem recentemente.

  7. Minha bisavó também foi pega a casco de cavalo, uma história para poucos na minha cidade, essa história foi abafada escondida não repassada para o futuro até eu está adulta e procurar saber sobre os meus antepassados por parte de mãe. Quando o narrador fala da história da vó Índia penteando os cabelos na calçada, assim era a minha avó. Ela tinha a hora certa pra fazer iss todos os dias com seus longos cabelos brancos❤️

  8. Meu pai era índio , minha á vó tb foi pega no laço, acho incrível quando minha mãe mim conta , sinto um orgulho tão grande de ser descendente de índio

  9. Há um aspecto que acho deveria ser visto. A avó índia caçada e estuprada, ela mesma e seu povo também eram caçadores e estupradores, ela como partícipe quando índias de outras tribos eram capturadas. A violência é um pecado de todos nós e os indígenas não estão excluídos. O mais embaraçoso é que se seu ancestral fosse tão terrível, a pobre índia teria optado pelo suicídio e não teria criado os filhos daquele homem. Tirar a própria vida e o infanticídio são eventos largamente documentados entre indígenas ou quaisquer mulheres sem as peias cristãs ou muçulmanas. A história dessas mulheres é a mesma das sabinas e tantas outras na bíblia, na iliada e toda história: aquela de “servir a quem se vence o vencedor”. Parte das contradições que nos tornam humanos.

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