Hélio Eichbauer: O escultor dos vazios

Por Mariana Filgueiras e Ronaldo Pelli, na Continente

Assim como Michelangelo, para quem o bloco de mármore já continha a escultura que ele apenas revelaria ao desbastar a pedra, o principal cenógrafo brasileiro, Hélio Eichbauer, enxerga nos vazios de um palco virgem todas as formas que precisam ser retiradas para compor um cenário. Fica apenas o essencial. Para o polivalente e minimalista artista de 76 anos, o espaço é a sua principal matéria-prima.
“Você precisa de um espaço para o teatro e a música acontecerem. Esse espaço cúbico e esférico, como eu os vejo, é o começo do projeto. É na planta que começo a descobrir o cenário. Como preencher esse espaço. Ou melhor, como retirar desse excesso. Eu enxergo o múltiplo, depois vou abstraindo, vou retirando, vou aparando”, explica ele, sentado entre suas obras expostas no seu ateliê, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. “No bruto, já está incluído o desenho.”

Só por ter sido o autor do cenário da montagem emblemática que o diretor José Celso Martinez Corrêa fez em 1967 de O rei da vela, peça de autoria de Oswald de Andrade, Hélio já teria o nome cravado na história do teatro brasileiro. Sua leitura visual da obra modernista influenciou gerações de artistas, e foi um marco de outro movimento de vanguarda no Brasil: o Tropicalismo. Desde então, Helio Eichbauer seguiu criando a estética de peças de teatro e espetáculos que marcaram a nossa história cultural, como Antígona, de Sófocles, para o Teatro Opinião, em 1969, ou a adaptação Os Lusíadas, com direção de Celso Nunes, em 1974.

Seus últimos trabalhos mostram que ele seguiu desenhando grande: só nos últimos meses, Eichbauer assinou o palco dos shows Caravanas, de Chico Buarque; Ofertório, de Caetano Veloso com seus três filhos, Moreno, Zeca e Tom Veloso; Trinca de ases, de Gilberto Gil, Gal Costa e Nando Reis e a remontagem de 50 anos de O rei da vela pelo Teatro Oficina.

Não que a história da cenografia no Brasil não tivesse pares. Mas é que poucos foram tão iconoclastas quanto ele. Em Cenografia brasileira – Notas de um cenógrafo (Edições Sesc), J. C. Serroni lembra que o espaço cênico no teatro nacional se manteve praticamente inalterado até o início da década de 1940. Muitas vezes, as cenas eram compostas apenas de um pano de fundo, sem muita importância para a ação dramatúrgica – quando muito, telões pintados para os teatros de revista, mas sem investidas conceituais.

A primeira ruptura aconteceu com a peça Vestido de noiva, de 1943, um marco do teatro moderno brasileiro. Lembra Serroni que o projeto de Tomás Santa Rosa foi o primeiro a imaginar a ambientação como parte da própria concepção narrativa. Sob a direção do polonês Zbigniew Ziembinski, que trazia da Europa Central a experimentação daquela linguagem, Santa Rosa concretizou os três planos simultâneos em que corre a ação do texto seminal de Nelson Rodrigues – a realidade, a alucinação e a memória. Assim, a figura do cenotécnico ficava na coxia, e a do cenógrafo ganhava a boca de cena.

O próximo marco dessa história viria a ser a arte de O rei da vela, de Eichbauer. Quando o concebeu, uma de suas sacadas foi ter feito três palcos com referências estéticas diferentes para cada um dos atos – na entrada da sua casa, figura um pôster que reproduz a arte do início da peça, como uma imagem a antecipar, e sintetizar, o seu autor. O primeiro cenário seguia um realismo crítico, com predominância de cores escuras e pintadas de verde-amarelo, em contraposição a um tipo de expressionismo de figuras deformadas e grandes sombras. O segundo ressaltava referências mais solares, como Tarsila do Amaral, suas cores quentes e alegres, em um painel que mostrava uma estilizada Baía de Guanabara. O terceiro ato era uma espécie de embate dos dois primeiros, culminando na morte do personagem principal – e o cenário que o acompanhava era uma cortina vermelha que envolvia uma sombria fileira de esqueletos segurando velas. Um desfile de cores e figuras desesperadas, a surpreender a plateia com reações guturais. Os cenários eram tão marcantes, que, quando a peça foi censurada pela ditadura militar em 1968, o primeiro ato simbólico do diretor Zé Celso foi queimá-lo num cemitério – gesto do qual diz se arrepender profundamente.

“A gente não tinha muita noção do que estava fazendo. Estávamos apenas reeditando a obra de Oswald. Mergulhamos no Modernismo e acabamos criando o Tropicalismo”, comenta Eichbauer, lembrando o sucesso da peça que, seguindo a trilha da anarquia oswaldiana, abriu outra vertente estética para além do chamado teatro engajado.

O rei da vela selou a formação profissional de Hélio. Ele tinha voltado ao Brasil havia pouco tempo de uma temporada de quatro anos em Praga (1962 a 1966), estudando com um dos principais cenógrafos do século XX, o tcheco Josef Svoboda, um pioneiro em projetos que casavam tecnologia e humanismo, lançando mão de materiais até então improváveis no teatro, como laser, espelhos, projeções múltiplas de luz e som. Responsável por mais de 700 cenografias para as mais importantes companhias de teatro e ópera do mundo, Svoboda fundou o famoso grupo teatral Lanterna Mágica, de Praga.

A passagem de Eichbauer pela Tchecoslováquia no pós-guerra o fez mergulhar no universo do Construtivismo e do Abstracionismo, com enfoque em sombras e luz, volumes e tons de cinza entre o preto e o branco. Mas antes de voltar em definitivo ao Brasil, naquele 1966, o artista ainda aceitaria um convite para passar uma breve temporada em Cuba. A estada seria fundamental para lhe injetar de volta as cores dos trópicos, o que culminaria no resultado final exitoso de O rei da vela. “Passei do art déco geométrico para o fauvismo expressionista”, diria ele, anos depois.

Desenho do cenário criado para ‘O rei da vela’, montagem de 1967, dirigida por José Celso Martinez. Divulgação

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O cenário queimado de O rei da vela ganharia sobrevida em 1989, quando Caetano Veloso – que se tornou seu amigo naquela alegria-alegria de 1967 – pediu para usar o painel do segundo ato na capa de seu novo álbum, Estrangeiro. Era o início da longa parceria de trabalho dos dois. Eichbauer refez o cenário, e, desde então, assinou 12 cenários de shows de Caetano Veloso.

Estrangeiro também era o início do uso de um elemento em cena que se transformou em uma de suas marcas: os fios, as cordas, as linhas. Apesar de já seguir a cartilha da geometria e do minimalismo – a exemplo dos trabalhos nas peças Verão, de Roman Weingarten, também em 1967; ou Álbum de família, de Nelson Rodrigues, dois anos depois (ambas dirigidas por Martim Gonçalves) – esses elementos geométricos e minimalistas só se transformariam em uma assinatura em Estrangeiro.

Para o cenário, traçou dois fios, um acima do outro, em uma complementaridade imperfeita, como se o de cima sugerisse uma concavidade, mais redonda, mais sensual, lembrando o relevo das montanhas do Rio, enquanto o de baixo, convexo e pontilhado, formava um ângulo reto, mais rígido. “O cenário para música e para ópera não é realista, nem tão somente figurativo. É um cenário minimalista, musical, abstrato. Daí eu utilizar, às vezes, a geometria. A minha base de cenografia é o abstracionismo geométrico”, diz ele. Para o artista, esses fios, barbantes, cordas “são, na verdade, trajetórias, vetores”.

No atual show de Caetano com os filhos, batizado de Ofertório, suas “cordas de assinatura”, como o próprio Caetano as chama, voltaram a aparecer. Hélio colocou um conjunto de quatro linhas no horizonte – os quatro intérpretes –, vindo de ambos os lados do palco. Elas se encontram ao seu centro, mas um centro assimétrico, e se entrelaçam, pendendo, delicadamente. Ao fundo, uma esfera, como um corpo celeste. À frente e à direita, um tecido suspenso, como uma nuvem confortável. A cenografia pode ser vista como uma metáfora para o encontro familiar, caloroso, íntimo. Sugere que os Veloso estão sentados na calçada em frente de casa de Santo Amaro, no Recôncavo baiano, a cantar a vida que passa.

Não foi só a família de Dona Canô que se enredou no seu talento. Praticamente todos os grandes nomes da chamada MPB, aqueles da geração do próprio Hélio, já fizeram uso dos seus trabalhos e das suas criações. De Chico Buarque a Gilberto Gil, passando por nomes como Milton Nascimento e Gal Costa, até artistas mais novas que seguem a mesma toada, como Adriana Calcanhotto ou Marisa Monte. Não só: já assinou o cenário de óperas, cinema, exposições. Encenou Villa-Lobos, Mozart, Verdi, Shakespeare, Tchekhov, Brecht. Fez filmes com Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor. Ganhou várias vezes o prêmio Molière e o Sharp. Esculpe, pinta, desenha, ilustra, constrói mecanismos. A cenografia não o limita: ele pode trocar de materiais ou de técnicas, dependendo do estímulo.

“Trabalhar com os nomes da minha geração é fácil, porque vivemos um passado em comum. Há uma cumplicidade silenciosa, anterior, de gostos. São concordâncias harmônicas, tem uma relação com a música. É um diálogo interno, há subtextos quase telepáticos.”

O processo de criação é simples: ele recebe as músicas ou o texto da peça; recolhe-se, fica escutando-as, lendo, imergindo; e começa a rascunhar, analogicamente, sobre uma prancheta. Não há pedidos insistentes, briefing detalhado ou receita de bolo. Se ele percebe que não se encaixa com o artista, cede o seu lugar para outro cenógrafo.

Cenário de Eichbauer para a ópera ‘Flauta mágica’

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A história com Chico Buarque também começou de forma curiosa: entre os grandes nomes da música, ele foi o primeiro a lhe encomendar um cenário – mas para o teatro. Eichbauer foi chamado para conceber o palco de Calabar, peça de Chico com Ruy Guerra. E a censura, mais uma vez, interrompeu os planos. Os artistas não desistiram e criaram um show completamente novo com as músicas já compostas. Assim, nasceu Tempo e contratempo, em 1974, a primeira parceria dos dois, que também dura até hoje.

Para o show Caravanas, atualmente em cartaz, ele voltou a usar os elementos-assinatura: são várias cordas penduradas, pendentes, umas apoiadas nas outras, dinâmicas, que dão leveza ao mesmo tempo em que emprestam movimento e balanço para o fundo, o horizonte de quem observa o palco. Ao centro, uma esfera armilar – um antigo e icônico instrumento de astronomia usado para ajudar nas navegações.

“O cenário do Chico são ondas eletromagnéticas, que é a parte do iluminador Maneco Quinderé; e ondas mecânicas, a minha parte, que são as ondas do mar. E também as sonoras. Ondas que são linhas”, diz ele, antes de mostrar a maquete em que Chico brincou com as cordas de seu futuro cenário.

Outro exemplo de extensão das suas linhas-trajetórias está no cenário para o show Trinca de ases. As linhas aparecem outra vez, criando elementos bem mais figurados: três pipas – uma para cada intérprete. A luz dialoga, mexendo nas formas, nos volumes, ressaltando-as ou escondendo-as. Linhas retas, duras, que formam uma imagem lúdica, flexível, brasileira. Eichbauer sabe que é possível criar balanço até com as linhas mais insofismáveis. Que toda reta é um pedaço de uma curva. E que a alegria é a prova dos nove, como enunciou, lá atrás, o mesmo Oswald de Andrade.

MARIANA FILGUEIRAS, jornalista, mestranda em Literatura pela UFF.
RONALDO PELLI, jornalista e mestre em Filosofia.

Destaque: Desenho do cenário criado para ‘O rei da vela’, montagem de 1967, dirigida por José Celso Martinez. Divulgação

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