O script do terror e a investigação (tardia) do homicídio de Marielle

Por Roberto Tardelli, no Justificando

Até que ponto é aceitável que, passados mais de duas semanas do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista, Anderson Gomes, não se tenha elucidado o crime? Investigações sobre homicídios são, em geral, diferentes daquelas que se fazem em outros delitos.

No roubo e/ou no tráfico, via de regra, a investigação se restringe a eventuais prisões em flagrante, não raro ilegais. O traficante é surpreendido porque, por mais clandestino que seja em sua atividade, ela é de comércio, enfim, não prescinde da sua rede de freguesia.

É impossível alguém não dar a conhecer sua condição de traficante, sob pena de falir, antes mesmo de começar. Há, assim, uma obrigatória publicidade de sua atuação, que viabiliza o cometimento do crime; azares da vida, vender drogas para policiais é um risco profissional inevitável.

No roubo, crime patrimonial, há uma vítima lesada, que reclama o que lhe foi tomado. O “pega-ladrão” faz com que todos se mobilizem na captura de quem resolveu se apoderar, com ou sem violência, da coisa alheia. Ninguém rouba ou furta algo que não pertença a ninguém.

Nos crimes sexuais, há uma vítima humilhada, ressentida, revoltada. Pode estar aterrorizada, mas está ali e pode a qualquer momento revelar a identidade de seu agressor.

Há sempre um fio da meada a se puxar

No homicídio, normalmente, quem mais detalhadamente poderia oferecer esclarecimentos está morto. As pessoas que assistem a um crime de morte reagem diferente daquelas que assistem a um crime patrimonial. Se nesses há sentimentos de revolta e de solidariedade à vítima, a sensação da testemunha de homicídio é o medo de ser o próximo a despertar a atenção do matador.

Quem mata, procura esconder qualquer prova (detesto esse anglicismo de “evidência”) que conduza a polícia nas investigações. Temos até fetiche, por força do cinema americano, com impressões digitais – que apenas confirmam identidades já previamente conhecidas -, exames residuográficos, DNA etc, etc.

Porém, não neste caso.

Neste doloroso caso, até porque se tratou de um desafio aberto (nem digo à ordem democrática, algo abstrato demais para mentes concretas), às pessoas que foram publicamente expostas, a começar pela Polícia Civil e a terminar pelo Ministério Público. Foi como se dissessem: “Vocês não são capazes de vir atrás de nós!”

Se não houve qualquer preocupação com a clandestinidade da ação, sendo imediata a obtenção e imagens que demonstravam que o carro que ocupavam Marielle e Anderson foi seguido por vários quilômetros, se o local de execução escolhido foi uma via de intenso movimento, se o “modus operandi” não se preocupou em disfarçar ação típica de execução, historicamente empregada por grupos dentro do aparelho estatal de segurança, se Marielle criticava duramente um batalhão específico e se mostrava altamente preocupada com a ação de policiais e exército em um ponto delimitado das áreas de ocupação, há, deveras, uma enorme perplexidade diante dessa agoniante demora em esclarecer os fatos.

É dizer, tem-se o campo de observação, o modo de execução do crime, imagens capturadas por câmeras de rua, tem-se a motivação delineada, tem-se a área de insatisfação delimitada.

Não seria sobre-humano e tampouco exigiria capacidades extra-sensoriais explorar as rivalidades existentes nos segmentos corporativos que ela criticava.

Nesses tempos de delacionismos, sempre haverá aquele que se disporia a colaborar, afinal, em troca de umas migalhas de liberdade sempre se pode confrontar lideranças paralelas. Chefes paramilitares autoproclamados sempre trazem consigo a corda que os enforcará.

Convenhamos, o caso de Marielle não é um crime difícil de ser elucidado

Suas dificuldades podem decorrer de outra ordem e podem, efetivamente, consubstanciar o que se temia: o descontrole do Estado sobre seus agentes armados.

No dia seguinte à morte de ambos, certamente houve um desfile triunfante na comunidade. Quem é forte, ronca grosso, diz a sabedora popular. Estiveram lá, passaram lá, mostraram-se, estavam vitoriosos. É assim o script do terror.

Ninguém se preocupa em esconder rostos, marcas, passagens. Ninguém se preocupa porque essa é a certeza da impunidade: saber que a investigação será frouxa e enfadonha, burocrática e carimbalista, apostam na passagem do tempo que esmaece tudo, obscurece tudo, faz desanimar as pessoas indignadas e amedrontar ainda mais as pessoas conformadas.

Certeza da impunidade tem quem participa de um atentado e que sabe ser superior aos que irão investigá-lo. Dois dedos de prosa na comunidade e no batalhão resolveriam boa parte de mistério de caras abertas no crime.

Qualquer pessoa, com vivência mínima em Direito Penal e que seja criminalista formado na rua, no contato com as pessoas, na interação social sem máscaras, sabe que esse crime já era de estar esclarecido.

Se não no mesmo dia em que foi cometido, respeitada a comoção que causou, nos dois ou três dias seguintes. E nem se trata de “qualquer culpado”, a catar aquele indicado para assumir a autoria do crime, aquele posto para posar para as câmeras de TV que nada perguntarão.

Por mais sigilosa que que esteja e deve estar, é preciso que as autoridades digam por que diabos não se consegue o esclarecimento do caso.

A pergunta que nos amargura é: se Marielle fosse branca, rica, famosa, fuzilada, juntamente com seu fiel motorista, por “pretos assaltantes”, que fossem roubar sua Mercedes e suas joias, estaríamos ainda andando às cegas na investigação?

Para que as pessoas da comunidade possam retomar suas vidas, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade. Para que as consciências durmam minimamente pacificadas, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade.

Para que não nos sintamos viver em uma absoluta anomia, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade.

Para que tenhamos um sopro de esperança, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade.

Para que negros possam gozar do direito de serem de interesse à Administração Pública, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade.

Para que esses agentes do terror estatal sejam verdadeiramente combatidos e expurgados e presos, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade, para que a polícia não corra o risco de se transformar em um bando, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade.

Para consolo mínimo dos familiares, dos eleitores, dos que admiravam e amavam Marielle, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade. Para que Reginaldo não seja uma a menos, tão somente, esse crime precisa ser elucidado com absoluta prioridade.

Com absoluta prioridade.

Roberto Tardelli é Advogado e Procurador de Justiça Aposentado.

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