Crônica de um fracasso

Fracasso de uma gestão que, eleita para melhorar a vida da cidade, entrega os serviços públicos ao setor privado

por Elaine Tavares, em Palavras Insurgentes

A Câmara de Vereadores aprovou nesse feriado de Tiradentes, por 16 votos contra seis, o projeto do prefeito Gean Loureiro que entrega para as Organizações Sociais – na prática empresas privadas –  a administração dos serviços públicos da cidade. O argumento é que com as OSs será bem mais fácil contratar pessoal e garantir o atendimento na saúde e na educação. Pelo menos essa foi a propaganda divulgada nos meios massivos de comunicação. Mas, quem conhece a história das OSs e acompanha como elas tem se comportado no trato da coisa pública sabe muito bem o que irá acontecer. Maus serviços, corrupção, malversação de recursos e a população entregue a si mesma. Quem tem dinheiro para contratar serviço particular está tranquilo, que não tem vai se lascar. É uma crônica anunciada.  

Durante os dias que seguiram a apresentação da proposta e o pedido de urgência na votação da mesma, os trabalhadores públicos iniciaram uma greve. A lógica do prefeito, de pedir urgência, é o mecanismo que garante a não discussão do tema com a sociedade. Fosse um projeto normal, seguiria o rito de ser debatido nas comissões, poderia haver audiências públicas para que a sociedade soubesse em detalhes o que está em jogo. Mas, não. Urgência urgentíssima define votação imediata, sem qualquer debate. E foi o que sucedeu. Não adiantou os trabalhadores pararem os serviços e encherem o largo do prédio da Câmara exigindo discussão. Mais de seis mil pessoas alçadas em protesto. Foram ignoradas.

A tática dos vereadores foi jogar a votação para o feriado, apostando na desmobilização. Mas, não funcionou. Mesmo com os ônibus em horário de domingo – o que é praticamente imobilidade – e com o feriado bonito de sol, que poderia levar as gentes à praia, o largo da Câmara se encheu outra vez. Milhares de pessoas se manifestando, exigindo discussão, debate, conhecimento do processo. Os poucos vereadores de oposição fizeram o possível para informar às gentes. Vinham no caminhão de som, traziam notícias, mas, o que todos ali sabiam era que a maioria dos vereadores já estava com o voto pronto. Não importaria qualquer argumento que viesse dos vereadores de oposição. Para os aliados do prefeito,  o embate travado dentro da câmara não tinha nada a ver com a cidade, com as pessoas, com a saúde ou a educação. Estavam ali para apoiar o projeto, fosse ele qual fosse. O compromisso dessa gente nunca foi nem nunca será com seus eleitores. Logo, a crônica da votação também estava anunciada. Todos ali em frente a câmara sabiam que, tendo votação, o projeto passava.

Ainda assim, as milhares de pessoas em frente à Câmara seguiram com a manifestação pacífica, cantando, dizendo palavras de ordem, ouvindo discursos sobre o mal que vai se abater sobre a cidade com a entrada das OSs. Os vereadores chegaram pela porta dos fundos do prédio, escoltados pela Polícia Militar. Não houve qualquer tentativa de barrar a entrada, pois a repressão estava com todas as suas ferramentas, prontas para intervir. “Aqui temos crianças, pessoas de idade, não estamos para o confronto”. A população em protesto na frente do prédio apostava na capacidade de mudar o voto dos vereadores apenas com a pressão da presença e do grito. Não foi suficiente.

Com os vereadores lá dentro, o processo seguiu. Reuniões-relâmpago das comissões, com os vereadores impacientes e entediados. Queriam votar logo e voltar para seus churrascos de feriado. Para a maioria ali dentro, pouco importavam aquelas pessoas lá fora. Seus gritos eram irrelevantes. No processo de venda da cidade, tudo o que importa são os bolsos cheios ou as graças futuras que alcançarão. O jogo político todos conhecem. É o toma-lá-dá-cá. Pelo menos na nossa democracia liberal, ou ditadura do capital, melhor dizendo.

A sessão iniciada às 16 horas foi como sempre é. Discursos raivosos contra sindicalistas, trabalhadores e povo em luta. Tentativas de convencimento dos vereadores da oposição. O jogo conhecido e com resultado já antecipado. Não passariam dos seis votos aqueles que seriam contrários ao projeto. O jogo já estava ganho pelo prefeito antes mesmo de começar.

Ainda assim, lá fora, a multidão seguia na esperança de que os vereadores seriam convencidos pelo discurso. Quando a votação começou já era noite, passava das seis. E os votos a favor foram saltando, um a um. Na impotência completa, visto que a tática era a do pacifismo, as pessoas começaram a gritar, dentro e fora do prédio. A polícia então fez sua entrada triunfal, já esperada. Dentro da Câmara tratou de acalmar os ânimos com gás de pimenta, e aí sobrou pra todo mundo, manifestantes e jornalistas. Foi o caos. Pessoas sem ar, trancadas na sala. Lá fora, também premidos pela impotência, apesar de estarem em maior número, os manifestantes tentaram uma reação, mas igualmente foram impedidos pela polícia. E a velha receita de sempre funcionou. Polícia batendo, chutando, jogando gás, “tudo normal”.

A votação continuou, impávida, e os vereadores votaram, aprovando o projeto. A cidade agora terá sua saúde e educação administrada pela iniciativa privada. Começará na UPA do Continente, depois em algumas creches, e, com o tempo, irá se imiscuindo em tudo. O Brasil do golpe se consolidando, em todas as instâncias. Viveremos o tempo do cidadão-cliente, ou seja, só poderá usufruir da cidade e dos serviços públicos aquele e aquela que tiver dinheiro para pagar. A acumulação capitalista seguindo seu curso, se fazendo sobre a vida das gentes.

Os vereadores de oposição buscarão na justiça alguma brecha para anular a votação, visto que foi num feriado e depois das seis da tarde, o que seria ilegal. Mas, quem afinal crê na justiça? Temos visto, depois do golpe, todos os dias, os exemplos de que nada se pode esperar do poder judiciário, marcadamente dominado pela classe dominante e decidindo sempre a favor dela. Esse vai e vem no judiciário é só um ritual patético, cujo resultado final todos já conhecemos.

Na semana que inicia os trabalhadores públicos definirão seu movimento, decidirão se continuam a greve ou não, visto que ela começou para garantir a luta contra o projeto que, na prática, também vai eliminando a figura do servidor público. E a proposta é essa mesmo. Garantir que os serviços públicos sejam administrados pelo setor privado, com trabalhadores precarizados, geridos pela nova lei do trabalho, que não garante mais nenhum direito.

Agora, com o projeto aprovado, quais serão os rumos do movimento grevista? É uma difícil decisão. Mas, os municipários têm força, são milhares. Talvez possam empreender novo ritmo à greve e garantir algum ganho nesse processo. Tudo é uma incógnita visto que a tática é a da manifestação dentro da ordem.

Já a população iniciará a semana como sempre. Completamente alheia ao que acontece na vida da cidade até o dia em que precisar de um atendimento de saúde e tiver de pagar, até a hora em que aconteça algo com seu filho na creche, então despertando do torpor, atrasada e impotente. Mas, todo esse povo apático não é o “vilão”. Até porque faz muito tempo que os partidos políticos, os sindicatos e os movimentos sociais abandonaram a prática de manter o povo informado. Hoje, publica-se no facebook e acha-se que todo mundo está sabendo das coisas. Mas, não. O facebook informa só o que o sistema quer. A maioria ainda recebe a “verdade” pela televisão, e a televisão mente. A comunicação dos movimentos sociais é débil e ineficiente. E os partidos e sindicatos que deveriam inovar nas práticas comunicacionais, enfrentando a mentira e a desinformação, não o fazem. São tempos sombrios.

Os poucos que saíram às ruas lamberão as feridas e se prepararão para novas batalhas, porque sabem que a resistência é necessária. Mas, talvez fosse hora de as gentes que lutam começarem a pensar que só resistir não basta. O tempo no qual vivemos, de ataque total do capital, exige novos caminhos, novas táticas, novos métodos.  É preciso constituir uma proposta eficaz de ataque também do nosso lado. Ou isso, ou sucumbimos.

Foto: Ação da polícia no final da votação

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