Ex-Pajé: o sensível relato de um estupro intermitente estreia dia 26 de abril e é imperdível

Tania Pacheco

“O etnocídio não é a destruição física dos homens, mas a destruição de seus modos de vida e pensamento. Enquanto o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito”.

É com a frase acima, de Pierre Clastres, que Luiz Bolognesi abre o seu Ex-Pajé. As imagens seguintes nos mostram os Paiter Suruí em 1969, num de seus primeiros contatos com a ‘civilização’. Corta. Da mata, sai um indígena fantasiado de ‘branco’: é nossa primeira visão de Perpera, no seu ‘uniforme cristão’. 

A calça, o sapato social e a gravata, todos pretos, são matizados pela camisa branca, criando um figurino que simplesmente não pertence ao rosto forte, aos cabelos negros. Sequer ao andar marcado por um cansaço ao qual poderemos atribuir muitas causas. É com essa roupa alienígena que Perpera abre a porta e a janela da igreja, varre o chão, pajé transformado num misto de zelador-faxineiro que não lembra sequer a beata responsável pelos cuidados com a capela do interior, porque, nesses casos, a atribuição vinha mais como um prêmio. No caso dele, o que nos passa é sensação de castigo, de penitência, de humilhação.

Como se repete há décadas Brasil afora e de forma crescente, Perpera perdeu seu lugar junto a seu povo. Já não é mais a liderança espiritual que passa a sabedoria dos ancestrais, de quem se ouve a palavra dos encantados, a quem se recorre para sarar as doenças. Para ser novamente aceito entre os seus, teve que abandonar a pajelança (“coisa do diabo”); mas os espíritos não o abandonaram nem aceitaram essa escolha e o assombram à noite.

No culto, jovens indígenas cantam e repetem o estribilho “Jesus é maravilhoso”, ante a aprovação silenciosa do pastor que mal fala o português (como a missionária, aliás, que chega com seu carro para distribuir remédios e injeções). Em pé junto à porta aberta, Perpera acompanha as abelhas de encontro ao céu. É como se apenas seu corpo permanecesse ali, no limite entre a igreja e a floresta, vestido de estranho; na imagem parada, ele parece se libertar e voar com seu olhar.

Um acontecimento irá trazer mudanças a esse quadro, provavelmente temporárias, mas disto não vamos tratar aqui. Vale ver o filme e descobrir.

É incrível como a direção de Bolognesi lida com os Paiter Suruí da Terra Indígena Sete de Setembro, e me eximo de comentar o especialíssimo trabalho com Perpera. Há um respeito que é acima de tudo de uma delicadeza tocante e se revela nos mínimos detalhes, da trilha sonora à bela fotografia de Pedro J. Márquez. São cenas pequenas, às vezes, quase flashes, mas que funcionam como sínteses reveladoras de uma realidade que ao mesmo tempo encanta e revolta. De um lado, há a sabedoria da apropriação das tecnologias, como o GPS e as redes sociais para denunciar os madeireiros (embora raramente isso dê resultado); de outro, o desrespeito e o massacre cultural.

Uma cena me tocou fundo, como exemplo significativo da cultura e das tradições estupradas. Num take rápido, Luiz Bolognesi mostra uma menina indígena jogando com seu celular num canto da tela. Enquanto isso, o grupo come um macaco, abatido cenas antes por um guardião com um tiro único e certeiro, pelo qual merece elogios. Um macaco, um tiro, apenas o necessário para alimentar. Na tela do celular, o jogo se chama Hunting, e a menina procura atirar e matar o máximo possível de animais (javalis?) que aparecem enquanto o tempo se esgota.

Ex-Pajé merece ser visto, e não apenas por quem se sente comprometido com as causas indígenas. Bolognesi nos conta a história com extrema sensibilidade, e dela é possível extrair várias leituras e reflexões. Perpera Suruí nos toca e fica na nossa cabeça, com um grito mudo. Felizmente, na minha cabeça ficou também seu pequeno acompanhante, o Caciquinho que o escuta e que nos permite ter alguma esperança.

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O filme EX-PAJÉ ganhou o Prêmio especial do júri de documentários no Festival de Berlim

Direção e roteiro: Luiz Bolognesi
Direção de fotografia: Pedro J. Márquez
Elenco: Perpera Suruí, Kabena Cinta Larga, Agamenon Saruí, Kennedy Suruí (Caciquinho), Ubiratan Suruí (Bira), Mopidmore Suruí (Rone) e Arildo Gapamé Suruí
Produtores: Caio Gullane, Fabiano Gullane, Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi
Produção: Buriti Filmes e Gullane
Distribuição: Gullane

 

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