Milton Hatoum: ‘Parece que vivemos em um pesadelo’

Escritor ministrou em São Paulo uma palestra sobre seu romance A Noite da Espera, que trata das angústias dos jovens que amadureceram durante a ditadura civil-militar

Por Gabriel Valery, da RBA

São Paulo – Intolerância, incertezas e o vazio de uma geração sufocada pela ditadura civil-militar (1964-1985) são os temas centrais do mais recente livro de Milton Hatoum, A Noite da Espera (2017). Um dos mais aclamados nomes da literatura nacional na contemporaneidade, ele esteve na noite de ontem (23), na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), onde falou sobre sua obra e fez paralelos com a situação do país hoje. “Achava que algumas coisas poderiam desandar, mas parece que vivemos em um pesadelo”, disse, sobre as mazelas que voltam a assombrar o país nos contextos políticos e sociais após um breve momento de aparente consolidação democrática.

O escritor contou que o projeto do livro, que é o primeiro de uma trilogia intitulada O Lugar Mais Sombrio, vem de longa data, mas que sua entrega ao tema carecia do instante certo. “Tinha receio de tocar em alguns temas em algum momento da minha já distante juventude. Achava o grau de complexidade da época difícil de ser abordado, então adiei e quando me entreguei a ele, há exatos dez anos, o Brasil estava em outra toada”, disse. “Lembra de 2008? Parece outro país. Parece que estamos em meio a um pesadelo, que nada daquilo aconteceu ou que nada hoje é real. Não sabemos para onde vamos, se pensamos que foi tudo um sonho ou se isso hoje é este sonho enterrado.”

A história, por vezes, se confunde com a própria história do autor. Assim como Hatoum, o protagonista, Martim, vai morar jovem em Brasília e passa por um processo de amadurecimento na capital durante a passagem dos anos 1960 para 1970, início da ditadura. Por isso, a obra é considerada um “romance de formação”, estrutura literária que acompanha o processo de aprendizagem do protagonista. E é nesta linha que a obra honra o legado dos grandes nomes do gênero como Johann Wolfgang von Goethe, Thomas Mann, sem deixar de lado a poética com referências de Fernando Pessoa e a inteligência na utilização do idioma escrito como é possível saborear nas obras do inigualável Guimarães Rosa.

Questionado sobre ter saudades dos tempos de sua formação, o autor nega. “A saudade pode ofuscar o presente e gosto de viver com os pés no chão e a cabeça viajando. O passado interessa para entender o presente, mas existe um perigo. Existe uma massa de alienados proto fascistas e fascistas, literalmente, que se recusam a entender o passado. Ela sim, sente uma nostalgia dessa época bruta.”

São movimentos ultraconservadores, reacionários, que exaltam os tempos sombrios de repressão. Hatoum lamenta sua existência e vê a formação de ciclos relacionados à opressão. “Essas lideranças que estão ai, como o MBL e o Vem Pra Rua, ligadas à direita, são farsantes. Usam discursos oportunistas, moralistas e antidemocráticos, sobretudo. Eles carregam o discurso arbitrário e proto fascista”, disse.

Tempos de intolerância que fazem do livro uma peça de reflexão, introspectiva, com forte pessimismo e ares de uma geração perdida. “Se trata da trajetória de um personagem com suas metas, com seus anseios, em uma sociedade cujas normas não obedecem ao agregado. A trajetória da passagem do jovem para a vida adulta de forma problemática (…) É a história do desencanto, do indivíduo que persegue uma meta, vai em busca de um sentido para a sua vida. Sobre isso que o romance trata. E essa busca não se completa, ele não completa seus anseios então, vive um momento de renúncia e melancolia.”

“Nem tudo é suportável quando se está longe”, afirma em certa hora o protagonista que, além dos traumas relacionados à separação de sua mãe ao ser obrigado a morar em Brasília, em decorrência da ditadura, tem outra ruptura adiante. Exilado em Paris, relembra de seu amadurecimento ingrato. Esta é a natureza deste romance de formação, com toda a complexidade das relações humanas, sem maniqueísmos.

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