Polêmica da prisão após 2ª instância pode virar dor de cabeça a empresas, por Leonardo Sakamoto

no blog do Sakamoto

A possibilidade de mandar alguém para a prisão após condenação em segunda instância, como foi o caso de Lula, deve gerar uma dor de cabeça extra ao Judiciário. Caso essa interpretação seja mantida pelo Supremo Tribunal Federal, há advogados, procuradores, magistrados e juristas que defendem que o mesmo deve valer para a entrega de propriedades e bens.

Considerando que, de acordo com a Constituição Federal, coisas não devem ser mais protegidas que a liberdade de uma alguém, discute-se as possibilidade de execução provisória sem limites após segunda instância para outras áreas, como a tributária e a trabalhista.

Ou seja, mesmo que não se apresente caução demonstrando que os recursos podem ser devolvidos ao réu caso a decisão seja revertida posteriormente, não mostre estar em situação de necessidade ou não atenda à súmula de jurisprudência de tribunais superiores, o montante deve ser creditado na conta pessoal ou empresarial do credor após decisão condenatória em segunda instância.

Afinal, se o Supremo Tribunal Federal fez uma releitura do artigo 283 do Código de Processo Penal (que trata da necessidade de sentença condenatória transitada em julgado para prisão), por que não uma releitura dos artigos 520 e 521 do Código de Processo Civil (que tratam da necessidade de uma garantia para permitir o crédito em dinheiro oriundo de uma decisão em segunda instância, entre outros condicionantes)? Dessa forma, milhões devidos por grandes empresas iriam mais rapidamente para o bolso do trabalhador ao invés de permanecerem penhorados ou guardados em contas judiciais.

”O trânsito em julgado é elementar na organização de várias áreas do direito. Na Penal, é a mais relevante, já que afeta a liberdade. Mas a decisão desastrosa do STF criou uma anomalia no âmbito penal e uma desproporção de consequências jurídicas frente as outras áreas”, afirma Eloísa Machado, professora da FGV Direito-SP e coordenadora do centro de pesquisa Supremo em Pauta.

De acordo com ela, propriedades e bens não podem ter mais garantias que a proteção da liberdade. O ideal, segundo Eloísa, é que o STF volte a trás de sua decisão de 2016, que permitiu a execução provisória.

Contudo, caso a interpretação se mantenha, há profissionais da área trabalhista e tributária que defendem que seja facilitada a execução de decisões que alienam bens de empresas ou de seus controladores para o pagamento de dívidas com os trabalhadores ou de dívidas tributárias com o poder público. Não apenas com a penhora, mas com a liberação dos recursos.

O debate da execução após decisão de segunda instância ganhou a esfera pública por conta do caso do ex-presidente Lula. Condenado pelo juiz federal Sérgio Moro por corrupção passiva e lavagem de dinheiro envolvendo o apartamento triplex do Guarujá, ele teve a sentença confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região e cumpre pena na sede da Polícia Federal em Curitiba (PR). Isso apesar de parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal já demandar uma nova análise coletiva sobre o tema da prisão após segunda instância antes mesmo de seu pedido de habeas corpus chegar à corte, uma vez que isso afeta a vida de milhares de outros réus.

A ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, tem evitado colocar em votação as ações que preveem uma nova análise da matéria. Na votação de seu habeas corpus, o ex-presidente Lula perdeu por 6 a 5 – com voto da ministra Rosa Weber, que historicamente era contra a prisão após segunda instância, mas vem votando a favor dela desde que teve sua posição derrotada em 2016.

”Na execução civil trabalhista, penhoramos o bem, mas não liberamos necessariamente. Apenas libero para o trabalhador quando há um direito fundamental violado, como a pessoa estar desempregada e passando necessidade ou com alguma doença grave. Pois o direito à alimentação ou à saúde são mais importantes que o direito processual da empresa”, afirma Marcus Barberino, juiz do Trabalho da 15a Região.

”Mas quem perde a liberdade por um determinado tempo dificilmente será compensado pela negação desse bem imaterial, nem com uma indenização”, pondera o magistrado, que também é doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e tem atuado com casos envolvendo grandes empresas e terceirização. ”Nesse sentido, é muito mais sensato a execução definitiva civil trabalhista ou tributária do que mandar alguém para a cadeia.”

Rodrigo Salgado, professor de Direito Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, vai na mesa linha de interpretação da legislação considerando a decisão do Supremo. ”A execução provisória depende de uma possibilidade de reversibilidade. Mas se a liberdade, que é bem maior e não pode ser compensado totalmente, pode ser restringida antes do trânsito em julgado, por que não a propriedade?”

”Afinal, tolher a propriedade, mesmo que sob pena de dificuldades para restituir a pessoa posteriormente, é muito menos problemático do que mandar alguém que pode vir a ser inocentado para a cadeia”, explica.

O tempo entre uma decisão favorável em primeira ou segunda instâncias e a autorização para liberação dos recursos penhorados ou depositados em conta judicial ao trabalhador por parte de uma corte superior pode levar anos. Sindicatos reclamam que esse tempo de espera é usado pelas próprias empresas como desincentivo para processos trabalhistas, mesmo que – na maior parte das vezes – o Tribunal Superior do Trabalho confirme a decisão.

Há casos em que magistrados da Justiça do Trabalho liberaram recursos citando a decisão do Supremo de manter a prisão de Lula mesmo que tal justificativa não fosse necessária, devido às possibilidades de dispensa de caução previstas no artigo 521 do Código de Processo Civil, como a necessidade alimentar do trabalhador. A ação teria sido uma afirmação no sentido de produzir jurisprudência para garantir a liberação em qualquer condição.

Uma mudança no entendimento não virá de uma hora para a outra, claro. Depende de casos levarem a decisões em primeira instância, depois serem debatidos em tribunais e refletidos pelo Superior Tribunal de Justiça, que é uniformizador da jurisprudência e, pelo STF, guardião da Constituição. Mas a ”interpretação mais aberta” dada pelo Supremo no caso penal abriu possibilidades. E advogados, procuradores e magistrados devem explorar essas possibilidades.

”Esse debate que agora está sendo equivocadamente vinculado de maneira exclusiva ao ex-presidente Lula, no fundo, é sobre qual o limite do poder do Estado brasileiro para começar a punir uma pessoa.” A análise é de Alamiro Velludo Salvador Netto, advogado criminalista e professor titular do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

”O Supremo disse o seguinte: posso iniciar o cumprimento da pena esgotada a segunda instância que confirma a condenação da primeira. Então, nós começamos a criar, no Brasil, uma certa celeuma. Por exemplo, o sujeito foi condenado à pena de multa na primeira instância e novamente na segunda. Ele paga desde logo? A jurisprudência diz que não. Ele foi condenado à pena restritiva de direitos na primeira instância e a decisão foi reafirmada na segunda. Ele já inicia, desde logo, a restrição de direitos? A jurisprudência diz que não”, afirma Alamiro. ”Então, virou uma espécie de atalho exclusivamente para uma antecipação de pena privativa de liberdade. Isso criou uma casuística. Imagino que isso cria um sentimento de insegurança jurídica.”

E conclui: ”Parece que é uma interpretação que leva muito em consideração um sentimento de impunidade da comunidade e muito pouco a própria harmonia do sistema jurídico”.

O ministro Marco Aurélio Mello e a presidente do STF ministra Cármen Lúcia. Foto: Rosinei Coutinho/STF

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