A gentrificação do Horto Florestal do Rio de Janeiro

Por Nina Zur, no Correio da Cidadania

O Horto Florestal, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, vem passando por um processo de tomada violenta de terras comuns. Esse processo foi teorizado por Klaus Dörre, sociólogo alemão, que elaborou um modelo para se compreender dinâmicas em que o capitalismo depende da expropriação de espaços que produzem pouco valor para permitir a expansão da própria acumulação do capital.

Dörre analisa as formas de acumulação primitiva na contemporaneidade, observando como o conceito pode ser utilizado para entendermos a dinâmica do atual capitalismo financeiro. Como o Rio de Janeiro vem passando por processos muito fortes de explicitação de conceitos e está sendo atingido diretamente pelas dinâmicas do capitalismo global, é preciso que nos debrucemos sobre a análise do sociólogo para que entendamos melhor de que forma esse processo se dá localmente.

Em resumo, Dörre analisa a precarização do trabalho para explicar a Landnahme (“tomada de terras”) no capitalismo financeiro. A Landnahme, para o autor, é a forma atual de acumulação primitiva, e ele a entende como um mecanismo de autoestabilização do capitalismo, ou seja, como um processo permanente de desenvolvimento do modo de produção capitalista, sem o qual ele não é capaz de se reatualizar e se manter, visto que existe uma tendência de instabilidade sistêmica do capital.

Para resolver o problema da sobreacumulação, o capitalismo precisa se autonegar, ou seja, criar um Estado que invista política e economicamente, ferindo o ideal de “equilíbrio de mercado”, na construção de uma dialética interno-externo, isto é, de relações de troca com o espaço não capitalista.

Dörre compreende essa tomada do espaço não capitalista como um processo permanente, e não como um processo esgotável que levaria ao fim do modo de produção capitalista. Isso porque, para ele, essa dialética interno-externo é um processo de produção e destruição de espaços, ou seja, de produção ativa de externos para a realização de capital excedente e criação de formas de acumulação. A Landnahme, então, é um processo de violência silenciosa, onde precarização e exclusão ganham mais importância estratégica do que a barbárie explícita.

Essas diferentes estratégias de produção ativa do Outro sobre o qual haverá expropriações capitalistas que possibilitam a acumulação do capital são o que o autor chama de Landnahme. Para ele, a partir da década de 70, com a crise do Fordismo, foi retomada a Landnahme de formação de exército industrial de reserva e integração de mercados exteriores para expansão do lucro. Assim, vimos a tendência à financeirização do capitalismo, privatização de instituições públicas e produção e aproveitamento da precariedade, desemprego e desigualdade crescentes como formas de acumulação.

O caso do Horto, portanto, é um exemplo gritante dessa nova fase de Landnahme. Dois mil moradores do bairro, aproximadamente, estão sendo ameaçados de remoção, num processo que dura já cerca de trinta anos e se intensificou nos últimos tempos. Atualmente, 215 ações de reintegração de posse já transitadas em julgado podem ser executadas a qualquer momento e colocam as mais de 500 famílias em constante estado de alerta.

Situado em uma área especialmente bem localizada e preservada do Rio de Janeiro, o bairro é ocupado por uma população que tem sua origem com a vinda de mão de obra escrava para a construção do parque do Jardim Botânico na segunda metade do século 19 e, na passagem do século 19 para o 20, com a formação de vilas de operários da Companhia de Saneamento e da fábrica de tecidos América Fabril. Desde então, convivem em harmonia com o meio ambiente, sendo reconhecidos pela Unesco como uma comunidade bem integrada ao local. Além disso, a área urbana do Horto cresceu em proporção muito menor que o restante da cidade, inclusive que o bairro vizinho, o Jardim Botânico.

Em 2006, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ), iniciou o processo de regularização fundiária do local, com ampliação da área do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico (IPJB) que, até então, era de apenas 54 hectares dos 142 que pertencem à União.

A comunidade do Horto, por sua vez, seria adensada, com algumas realocações e desocupações de áreas de risco. O projeto levaria em consideração todos os interesses em jogo e o conflito histórico entre o IPJB e os moradores do bairro poderia, finalmente, ser dissolvido. Em 2012, porém, a Associação de Moradores do Jardim Botânico (AMA-JB) entrou com um processo no Tribunal de Contas da União (TCU) que paralisou a regularização fundiária e, julgado, conferiu o domínio pleno dos 142 hectares da União ao IPJB.

Claramente o que se vê, no caso, é a produção ativa de um Outro, com a imagem difundida pela grande mídia e pelo senso comum de que os moradores do bairro são invasores da área do IPJB, desmatam e poluem a região e, até mesmo, com a construção da imagem de um local com alta taxa de criminalidade, o que jamais foi comprovado. Assim, há a fabricação da imagem de uma área degradada com mão de obra ociosa, como diz Dörre.

Tal produção é importante para que se configure uma nova dinâmica de acumulação. Nos últimos anos, o Estado tem sido condutor ativo dessa dinâmica, já que as terras pertencem à União. Além disso, as inúmeras decisões judiciais, tanto do TCU quanto as ações de reintegração de posse, ratificam esse discurso e caminham no sentido de abrir espaço para a realização do capital no local.

O Horto, antes mesmo das remoções acontecerem de forma plena, já vem se transformando e se adequando ao capitalismo financeiro, sendo nítido o processo de gentrificação no bairro. Em 2016, a única linha de ônibus que fazia a integração dos moradores do Horto com o centro da cidade e com a Zona Norte teve o seu trajeto cortado pela administração municipal para Horto-Botafogo, e a decisão só foi revertida pela mobilização e engajamento dos moradores.

Padarias e pequenas vendas do bairro, antes populares, foram reformadas e se adequaram ao padrão dos bairros de classe média, com aumento considerável no preço dos produtos, além de estabelecimentos novos como ateliês, restaurantes e lojas de produtos para ciclistas. Assim, o perfil dos moradores de algumas regiões do bairro tem se alterado para uma população de classe média e classe média alta, embranquecida.

Fora isso, grande parte dos trabalhadores do IPJB é de funcionários terceirizados, além de existirem inúmeros estabelecimentos comerciais dentro do Instituto, como lojas, estacionamento, padaria gourmet e casa de espetáculos. Sem desmerecer a qualidade da pesquisa efetivamente realizada, é importante que se leve essas questões a debate.

O Grupo Globo, principal propagador do discurso de precarização do local e de que os moradores da comunidade seriam “invasores” da região, também tem terrenos no bairro. Foi noticiado pelo jornal da corporação, em março deste ano, que uma área de mais de 250 mil metros quadrados foi doada pelos irmãos Marinho ao Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), que tem sua sede no bairro, para a construção de um novo campus em 2021, financiada pelo Ministério da Educação.

Na reportagem, termos como “baixo impacto ambiental”, “integração à natureza” e “gestão inteligente” contrastam com a forma com que os meios de comunicação se referiam às habitações populares na época em que a regularização fundiária estava sendo proposta com grande suporte técnico pela SPU e pela FAU-UFRJ.

Em suma, o bairro tem sido ressignificado com a criação de um novo espaço altamente rentável e comercializável, possibilitando especulação imobiliária e fluxo de capital, com maior possibilidade de investimentos lucrativos. E a permanência de sua população histórica está cada vez mais ameaçada, fazendo com que se transforme definitivamente em mais um bairro de classe média alta da zona sul carioca. Assim se dá a nova acumulação primitiva no Horto Florestal do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas:

AMAHOR. Vídeo conta a história do Horto Florestal do Rio de Janeiro. Disponível em:  http://www.amahor.org.br/5278. Acesso em: abril 2018.

DÖRRE, Klaus. A nova Landnahme. Dinâmicas e limites do capitalismo financeiro. Tradução de Carolina Vestena, Iasmin Góes e Guilherme Leite Gonçalves. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol. 6, n.3, p. 536-603, 2015. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/19233. Acesso em abril 2018. DOI: 10.12957/dep.2015.19233.

HORTO FICA. Disponível em http://www.hortofica.com.br. Acesso em: abril 2018.

MUSEU DO HORTO. Fábrica de Tecidos Carioca. Disponível em:  http://www.museudohorto.org.br/F%C3%A1brica_de_Tecidos_Carioca?id=1097. Acesso em: abril 2018.

O GLOBO. Instituto de Matemática Pura e Aplicada terá novo campus em 2021, 23 de março de 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/instituto-de-matematica-pura-aplicada-tera-novo-campus-em-2021-22519681. Acesso em: abril 2018.

VIGNA, Anne. No Rio, comunidade fundada nos tempos da escravidão luta para ficar. Pública: agência de jornalismo investigativo, 16 de março de 2017. Disponível em: https://apublica.org/2017/03/no-rio-comunidade-fundada-nos-tempos-da-escravidao-luta-para-ficar. Acesso em: abril 2018.

*Nina Zur é poeta e graduada em Direito pela UERJ

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