Violência não é ocupar imóvel vazio, mas milhões não terem onde morar. Por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

Ocupar um prédio vazio ou um terreno ocioso é uma ação válida em uma sociedade que desrespeita sua própria Constituição e as convenções internacionais das quais é signatária ao colocar o direito à propriedade acima dos demais parâmetros da dignidade humana.

É claro que devido à sua natureza, se utilizada, deve ser apenas em circunstâncias extremas. Mas tem sido uma alternativa desesperada diante da incapacidade do poder público de agir frente ao desespero alheio. Ou, pior: quando o Estado é ele próprio agente de desrespeito aos mais fundamentais direitos, como ter um teto.

O diálogo e as vias legais devem ser a primeira opção e, se possível, a única de negociação entre o poder público e os cidadãos. Mas nem sempre o outro lado, hegemônico, está disposto a negociar – principalmente se isso significar perda de seus privilégios. Note que não falei de perda de direitos, mas sim de privilégios. Como ganhar auxílio-moradia tendo imóvel próprio na mesma cidade ou sendo isento de impostos sobre os lucros recebidos de suas empresas enquanto a massa trabalhadora paga impostos sobre a renda e o consumo.

Muitos diálogos, claro, terminam em muros intransponíveis pelas vias legais. E na gênese de leis que impõem desigualdades está, não raro, a proteção de membros de classes sociais mais abastadas, posta através da ação de seus representantes políticos em parlamentos.

Desigualdades que, sobrepostas e reafirmadas ao longo do tempo através de instituições como igrejas, mídia, escolas, enfim, os instrumentos à mão, transformam opressão em tradição. O oprimido esquece a razão da opressão e acaba aceitando-a, mais ou menos na linha do “Deus quis assim” ou “a vida é assim mesmo”. Isso quando ele próprio não se transforma em cão de guarda da riqueza alheia, ajudando a conter a insatisfação de sua própria classe social.

(Para aqueles que chegaram até aqui no texto gritando que todo movimento por moradia é composto por safados e ladrões, sugiro que interrompa a leitura e clique em outros dois posts que publiquei logo após o incêndio e desabamento do prédio no Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo. Estou tentando aqui um diálogo além do mimimi.)

Leia, portanto:
A falta de moradia é uma tragédia que só é lembrada quando pega fogo
Incêndio em SP é fruto da omissão do poder público em políticas de moradia

Para fugir da barbárie, cedemos ao Estado o uso da violência. Mas o próprio Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), tomado, cooptado ou parceiro de alguns grupos sociais, tem sido instrumento de violência social. E não digo apenas dos casos em que, por exemplo, policiais atuam como jagunços de fazendas ou milícias privadas. Mas quando sua função é manter os privilégios do grupo mais rico. Um exemplo é a dificuldade de desapropriar um prédio vazio por décadas, que não paga impostos progressivos, e destiná-lo à reforma urbana.

Nesse caso, recorrer a quem? Ao papa? Ele até é gente boa, mas creio que leva um tiro se tentar convencer uma parte da elite brasileira que dá nome de santo e anjo para suas fazendas, mas nega todos os direitos trabalhistas.

A Justiça despeja centenas de famílias humildes de um imóvel em São Paulo, famílias que procuravam um lar, e os sem-teto é que são vândalos. Grandes obras de engenharia superexploram trabalhadores em nome do progresso, usando até trabalho escravo, e operários, que procuram o mínimo para ter dignidade, se cansam de tudo e resolvem por tudo abaixo é que são vândalos. Fazendeiros invadem terras indígenas no Mato Grosso do Sul e prometem bala para quem cruzar a cerca e os indígenas que moravam ali, e procuram viver como sempe viveram, é que são vândalos.

Uma ocupação por um grupo sem-terra de uma fazenda improdutiva, que desmate ilegalmente ou que use escravos, uma tomada por um movimento sem-teto de um prédio mantido fechado por especulação imobiliária e devendo milhões em impostos, a reconquista de uma terra indígena utilizada ilegalmente por uma fazenda de cana, a resistência à expulsão de comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas, que sairiam para dar lugar ao ‘progresso’ e ao ‘desenvolvimento’, são ações necessárias para fazer valer o direito à vida.

O que é melhor? Manter um prédio vazio para ratos e baratas desfrutarem de um espaço enorme por anos a fio ou crianças terem um teto sem o risco de serem mortas por um desabamento de terra ou molestadas ao estarem dormindo na rua?

Ocupações quando não são conduzidas para lucro individual de seus líderes e são fruto de um processo coletivo e refletido devem ser consideradas como legítima defesa e não como violência gratuita.

Da mesma forma que uma ocupação de uma praça pública em qualquer lugar do mundo, que impeça o país de funcionar normalmente enquanto um ditador não deixar o poder.

Ou o bloqueio de rodovias que chegam a La Paz, enquanto os direitos de populações tradicionais não forem respeitados.

E até mesmo a resistência contra o salve-se-quem-puder do capitalismo global, atormentando a vida do mercado financeiro em Wall Street, em Saint Paul ou na ruas de Roma.

Muitas vozes se levantam para reclamar sistematicamente da “violência” representada por ocupações, mas se calam diante de massacres, chacinas e genocídios que ocorrem diariamente.

Elas acreditam que a principal tragédia não é que 150 famílias morassem de forma precária em um prédio no Centro de São Paulo que era uma fogueira pronta para queimar e, ainda por cima, tendo que pagar um valor sem que sentissem os benefícios revertidos para sua dignidade. A tragédia para elas é só a cobrança de mensalidade. Isso é um outro problema, grave, que precisa ser combatido a todo custo. Mas tragédia mesmo, como sociedade, é termos deixado essas pessoas à própria sorte, naquelas condições. Afinal, a existência de gente desonesta em certos movimentos não cria um déficit de 500 a 700 mil moradias em São Paulo e de mais de 6 milhões no país.

Como já disse aqui, a desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for.

O triste é que, para muitos, nada disso importa. Preferem um não-país do que dividir oportunidades. A desigualdade social, que seria motivo de vergonha em qualquer lugar civilizado, aqui é razão de orgulho. O importante para uma parte da população, tanto a que está no topo quanto a que sonha em estar lá, não é reduzir a diferença, mas garantir que ela seja devidamente glamourizada e a ascensão social, mitificada. Assim, o indivíduo passa a não desejar justiça social coletiva, mas um lugar ao sol para si mesmo.

E danem-se os outros.

Como sempre digo, o problema não é alguém ter um apartamento de 400 metros quadrados enquanto outro mora em um de 40. O que desconcerta é uma sociedade que acha normal um ter condições para desfrutar de um apê de 4 mil metros quadrados enquanto o outro vê seu cafofo minúsculo queimar até o chão na Favela do Moinho, em Paraisópolis, na Cidade Líder, no Largo do Paissandu, onde for.

Não apenas acha normal como bate palma e pensa que a vida é justa porque, agora, os ocupantes plantam o que colheram.

Escombros do edifício no Largo do Paissandu. Foto: Paulo Lopes /Futura Press /Estadão Conteúdo

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