Gabriel Brito, em Correio da Cidadania
A prisão de Lula mexe com os mais fortes sentimentos políticos no país, a ponto de previsões eleitorais se tornarem praticamente impossíveis no momento. Em meio à enorme crise institucional, também se questiona a chamada judicialização da política, tanto por conta da Operação Lava Jato e seu modus operandi como pela atuação do Supremo Tribunal Federal, responsável final pela prisão de Lula. Sobre esse complicado debate, entrevistamos o juiz Marcelo Semer.
“Se a questão era decidir uma tese, como foi o sentido de levar a Plenário, teria sido melhor julgar de vez as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) interpostas. A condução pela ministra Carmen Lúcia, como se viu, gerou inúmeros questionamentos. Ela dizia não querer ‘apequenar’ o STF, utilizando o caso Lula. Ao final, o STF acabou por decidir como um tribunal ad-hoc, que altera competência e revisa pautas ao critério do réu. Seu esforço, claramente, não foi bem sucedido”, analisou, ao comentar a primazia entre o julgamento do Habeas Corpus e das ADCs.
O juiz entende que o judiciário brasileiro faz política e, diante de tamanha crise econômica e social, coloca contra a parede a própria construção democrática do pós-ditadura. Sua dúvida é se tal derretimento político-institucional será “lento e gradual” ou célere. De todo modo, condena a midiatização dos processos.
“Tenho restrições aos instrumentos que, a meu ver, não se amoldam ao processo penal de um estado democrático de direito, como a condução coercitiva de indiciado, não anteriormente intimado (que na verdade é uma espécie de prisão para averiguação), a prisão provisória como estímulo à delação premiada e o próprio apenamento de delatores por parâmetros até então desconhecido. Também questiono a espetacularização dos processos e prisões”, criticou.
A entrevista completa com Marcelo Semer pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como você analisa a decisão do STF que a partir do processo do tríplex de Lula passou a permitir execução de sentença de reclusão para condenados em segunda instância?
Marcelo Semer: Na verdade, o STF alterou seu entendimento em 2016, antes mesmo deste processo contra Lula. O entendimento anterior, de 2009, fora tirado por decisão de 7 votos a 4. Este, efetivamente prestigiava o espírito – mais do que isso, a letra – da Constituição. Foi tão importante a decisão anterior que o próprio Congresso, depois, legislou e alterou o Código de Processo Penal (art. 283) e também a Lei de Execuções Penais, para fazer constar na lei a proibição de uma prisão automática – dada a exigência, em qualquer momento antes do trânsito em julgado, de um fundamento cautelar, ou seja, a declaração de necessidade da prisão.
Infelizmente, desde 2016, influenciado pelo frenesi da própria Operação Lava Jato (seus integrantes diziam que sem a prisão em segundo grau as ameaças eram frágeis para estimular delações), o STF simplesmente abandonou o texto constitucional. A decisão plenária de 2016 (que contou com a mudança de posição do ministro Gilmar Mendes) nem sequer foi acatada pela totalidade dos ministros. Celso de Mello, Marco Aurélio e até Rosa Weber concederam medidas liminares em HC contra o entendimento em plenário.
Era evidente que o STF tinha resolvido mal a questão em 2016 – até porque esqueceu que o legislador havia alterado o Código de Processo para proibir a prisão em segundo grau. Era esperada, portanto, uma reavaliação da questão – em especial porque um dos votantes, ministro Gilmar Mendes, já dava sinais de que teria mudado novamente a posição.
Correio da Cidadania: Portanto, os interesses políticos geraram uma apreciação discricionária do processo de Lula?
Marcelo Semer: O STF, todavia, provavelmente premido pela questão Lula e seu impacto perante a opinião pública, não revisou seu entendimento, em razão de um fundamento que ficou difícil de entender: Rosa Weber concordava com a necessidade do trânsito em julgado para o início da execução, mas votou com a maioria que, na verdade, só se formou com seu voto.
Outro complicador é que a presidenta do STF, Carmen Lúcia, negou-se a colocar as Ações Diretas de Constitucionalidade (do art. 283, do CPP e da Lei de Execução Penal) em plenário, o que serviu de saída para a própria Rosa Weber, uma vez que se disporia a revisar a decisão anterior se fosse uma discussão de tese (como seriam as ações declaratórias) e não apenas um HC pleiteando a liberdade de um réu.
E, se analisado este argumento, a questão fica ainda mais complexa, porque se tivesse sido julgado apenas como mais um HC de um réu, o ministro Edson Fachin não deveria ter levado a Plenário, mas sim à turma que ordinariamente julga os recursos individuais. Na turma, como se sabe, o Habeas Corpus teria sido concedido.
Tenho que a decisão de mérito é um divisor de águas em relação à tutela do STF do texto constitucional ou sua rendição a um suposto clamor da opinião pública. Neste sentido, bem complicada.
Do ponto de vista processual, ainda que não se analisem questões pessoais ligadas aos ministros, só o que se pode dizer é que ficou estranho um processo afetado para o STF em razão de uma tese ser julgado como se fosse apenas um reclamo individual.
Correio da Cidadania: Dessa forma, a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) impetrada pelo PEN (Partido Ecológico Nacional) que questiona essa nova jurisprudência, deveria ser julgada antes do Habeas Corpus impetrado pela defesa de Lula no STF?
Marcelo Semer: Sim, penso que se a questão era decidir uma tese, como foi o sentido de levar a Plenário, teria sido melhor julgar de vez as ADCs interpostas. A condução pela ministra Carmen Lúcia, como se viu, gerou inúmeros questionamentos. Ela dizia não querer “apequenar” o STF, utilizando o caso Lula. Ao final, o STF acabou por decidir como um tribunal ad-hoc, que altera competência e revisa pautas ao critério do réu. Seu esforço, claramente, não foi bem sucedido.
Correio da Cidadania: O que pensa da condenação em si do ex-presidente?
Marcelo Semer: Não tenho condições de avaliar o processo que não conheço em sua integridade.
Correio da Cidadania: Como avalia a Operação Lava Jato até aqui?
Marcelo Semer: Não me limitaria a fazer uma análise circunstancial sobre processos. Tenho restrições aos instrumentos que, a meu ver, não se amoldam ao processo penal de um estado democrático de direito, como a condução coercitiva de indiciado, não anteriormente intimado (que na verdade é uma espécie de prisão para averiguação), a prisão provisória como estímulo à delação premiada e o próprio apenamento de delatores por parâmetros até então desconhecidos.
Também questiono a espetacularização dos processos e prisões, na linha de que, como afirmado por vários dos atores, a opinião pública é importante para o prestígio dos processos. Combinar processo penal com opinião pública nunca foi salutar.
Correio da Cidadania: O que comentar da transferência da investigação sobre Geraldo Alckmin da esfera da célebre operação para o âmbito da justiça eleitoral?
Marcelo Semer: Não tenho elementos para comentar. Apenas a ideia de que o custo político de qualquer blindagem, a este momento, pode ser ainda maior do que o ônus do processo.
Correio da Cidadania: O que pensa do papel que o STF tem desempenhado recentemente na conjuntura brasileira? Há uma judicialização da política?
Marcelo Semer: Infelizmente, penso que o STF tem se rendido a decidir mais pelas políticas do que por princípios e isso é fatal para um tribunal que tem como função a tutela da Constituição. Nesta encontramos princípios, mas quando ingressamos nas políticas os entendimentos se alteram a todo momento e uma carga de insegurança jurídica se forma. Deixemos a política e a administração para quem tem a incumbência de fazê-los.
Correio da Cidadania: Mudando um pouco de assunto, como enxergou a greve dos magistrados realizada em 15 de abril em prol da manutenção do auxílio-moradia?
Marcelo Semer: Nem acho que tivemos uma greve, nem que ela tenha sido manifestada explicitamente pela preservação do auxílio-moradia. Vários magistrados se disseram em paralisação supostamente em razão do conjunto das reformas. Acho que o auxílio-moradia é juridicamente questionável (e se mantém apenas por uma liminar do STF que não aprecia o mérito da questão) e politicamente insustentável, tanto mais em um momento de crise.
Mas o impacto de uma reforma explosiva como a da Previdência, em especial pela forma como o texto se formou no Congresso, afeta aos servidores como um todo, não só juízes. As pressões políticas eram importantes para deixar o tema para depois da eleição, fazendo com que os candidatos o discutam abertamente. Honestamente, gostaria que tivessem feito a mesma pressão quando votada a Reforma Trabalhista, que foi um estrago ainda maior.
Correio da Cidadania: Pra finalizar, como acredita que caminharemos neste 2018 de tamanha crise institucional que ainda reserva uma eleição geral? Caminhamos para algum tipo de desintegração social de novo patamar?
Marcelo Semer: Caminhamos para a desconstrução do modelo democrático que construímos ao sair da ditadura. Só não sei se será uma desconstrução lenta e gradual, como já está acontecendo, ou mais rápida e abrupta, com rompimento de eleições. Não tenho condições de avaliar neste momento, mas o destino parece o da referida desconstrução.