‘Esquecimento dos povos indígenas é proposital’, diz primeira índia mestra em direito no Brasil

Fernanda Kaingáng, egressa da Universidade de Brasília, fez palestra na capital nesta terça. Evento é de graça

Por Luiza Garonce, G1 DF

Primeira indígena a conquistar o título de mestra em direito no Brasil, Fernanda Kaingáng disse ao G1 que o esquecimento da história, cultura e vida dos povos que habitam o Brasil desde antes do “descobrimento” é intencional.

“Ao longo da história, os indígenas foram silenciados e invisibilizados, e esse esquecimento é proposital”, explicou. “Nosso país é gerido por pessoas que não estão preocupadas com pobres, negros, índios – sejam eles minorias ou maiorias”, disse.

Egressa da Universidade de Brasília (UnB), Fernanda voltou à capital nesta terça-feira (8) para uma palestra gratuita, no Museu Nacional da República. Ela vive nas terras da Serrinha, ao norte do Rio Grande do Sul, com os povos Kaingáng – etnia que tem cerca de 45 mil indígenas e também habita regiões de Santa Catarina, do Paraná e do interior de São Paulo.

Com o tema “Os esquecidos: identidade, território e afirmação das nações indígenas brasileiras”, Fernanda relatou ao G1 assuntos levantados durante a noite. A lista incluiu o etnocídio, a omissão do Estado e os “padrões coloniais” de exclusão, que, segundo ela, são mantidos até hoje.

O encontro faz parte do Diálogos Contemporâneos, evento que ocorre até 12 de junho em Brasília e em Campo Grande, e levanta questões de relevância nacional – como lutas indígenas, protagonismo feminino, mundo digitalizado, diversidades cultural e de gênero, patrimonialismo, religião e cultura do consumo.

Leia entrevista do G1 com Fernanda Kaingáng:

G1: Por que você se refere aos indígenas como “os esquecidos”?

Fernanda Kaingáng: Nós temos 305 povos indígenas no Brasil e o próprio brasileiro não sabe disso. É mais fácil um estrangeiro conhecer. Ao longo da história, os indígenas foram silenciados e invisibilizados e esse esquecimento é proposital. É uma realidade.

O que é ensinado na escola é uma versão colonial, mentirosa.

O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda tem povos isolados e eles estão sendo chacinados, mas ninguém publica isso. Pegam a Constituição Federal, que é recente – completa 30 anos este ano – e, em vez de cumprir o que tá escrito, tentam mudar o conteúdo para tirar os poucos direitos que nos foram assegurados.

G1: Quando você fala em “esquecimento proposital”, a que exatamente se refere?

Fernanda: Se os indígenas estivessem na mídia, nas manchetes mostrando o que realmente acontece nas nossas terras, será que isso conviria pras nossas elites? Ver crianças sendo assassinadas, pessoas morrendo por doenças de fácil vacinação, porque o dinheiro foi desviado.

Assim como no Brasil Império, quando se premiavam os bandeirantes – que eram os caçadores de índios –, criamos uma cultura de invisibilização. E, quando morrerem todos, aí vão pedir desculpas?

G1: Quais são os interesses que ameaçam as terras e os povos indígenas?

Fernanda: Uma porção de 15% do território brasileiro é a mais rica do mundo em minério, recursos hídricos e biológicos. Uma das nossas maiores riquezas é a biodiversidade e a maior parte dela não é protegida ou, sequer, foi estudada.

Neste sentido, os povos guarani-kaiowá, do Mato Grosso do Sul, estão em extrema vulnerabilidade agora, ameaçados e massacrados. Eles tem a stévia, que é um produto multimilionário. É um dos adoçantes mais usados em refrigerantes no mundo. Se os guarani tivessem um percentual justo sobre o uso do conhecimento deles, será que eles estariam nessa situação?

Os guarani não precisam de favor do Estado, apenas que sejam reconhecidos seus direitos. Mas a sociedade não diz nada e consome esses produtos. O Brasil é signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica, criada na ECO-92, [no Rio de Janeiro], e 20 anos depois o que temos? Biopirataria consentida pelo Estado.

O açaí foi registrado? Não. Organizações Não Governamentais (ONGs) tiverem que fazer o Japão revogar o registro da patente, porque o governo brasileiro não fez nada. O “cupulate”, chocolate de cupuaçu, também foi registrado pelo Japão. Isso é omissão.

Propõem um biodiesel e o que ele tem de “bio” é sangue. O etanol tem sangue indígena. A produção de cana de açúcar, quando é mecanizada, vai caindo. Então, para eles, é mais produtivo ter a mão de obra humana, que é escrava e feita em terras indígenas que deveriam estar demarcadas e não estão.

Nosso país é gerido por pessoas que não estão preocupadas com pobres, negros, índios – sejam eles minorias ou maiorias. Estão preocupados com o capital às custas de diversidade cultural.

G1: Esse descaso com os povos indígenas também se observa na sociedade de modo geral?

Fernanda: A sociedade brasileira manteve os padrões coloniais de racismo, de inviabilização das “minorias”, de exclusão. Por que as ações afirmativas são tão questionadas pela população?

Quando se fazia política de acesso para os filhos da elite estudarem na Europa – porque os filhos do barões do café estudavam na França com bolsas do governo –, tudo bem. Hoje, se tem negro, militante indígena e do Olodum estudando em universidade federal por meio de cota… Nossa!

Eu mesma fiquei em 1º lugar no mestrado [de direito] da UnB e eles quase anularam o edital, porque era inadmissível que uma indígena passasse na frente dos filhos do ministros, dos desembargadores que estudam ali. A intolerância é uma realidade.

O etnocídio, que é combate de forma não cívica à diversidade cultural, é uma realidade.

G1: Você acredita que o desconhecimento seja uma das explicações para este descaso?

Fernanda: Geralmente, as ações de levar indígenas a escolas e universidade ocorrem só em abril, mas tem que acontecer o ano inteiro. Você vê que faz diferença quando conhecem os povos indígenas por eles mesmos. A gente não precisa de porta vozes.

A educação, a academia e as mídias precisam estar envolvidas [neste processo]. Precisamos que nos devolvam a condição de ser humano. É preciso mudar, ouvir, fazer alguma coisa. Não é possível continuar omisso.

Fernanda Kaingáng, do Rio Grande do Sul, é primeira indígena a conquistar título de mestra em direito no Brasil (Foto: Fernanda Kaingáng/Arquivo pessoal)

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