O caso da PM e do ladrão: Você também comenta sem ler nas redes sociais?, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

Publiquei, nesta segunda (14), um texto sobre a policial militar que matou um ladrão armado ao reagir a um assalto em frente a uma escola, onde esperava a celebração do Dia das Mães com a filha e outras famílias.

Apresentei algumas premissas simples:

1) A policial agiu em legítima defesa, ou seja, dentro da lei;

2) Parte das redes sociais celebrou efusivamente a morte do ladrão;

3) O governador de São Paulo usou o caso para ganho eleitoral, levando flores para a policial.

E apresentei algumas reflexões:

1) Mortes – mesmo as necessárias, como aquelas decorrentes da legítima defesa – não deveriam ser comemoradas, mas lamentadas. Os números astronômicos de assassinatos de vítimas, policiais e criminosos, totalizando mais de 60 mil todos os anos, mostram que estamos falhando como sociedade;

2) A celebração da coragem do governador vem exatamente na hora em que o comando da Polícia Militar se esforça para tentar reduzir a letalidade da corporação, atuado para desarmar a população e alertado para que ninguém reaja a assaltos. Ou seja, não se nega que estava estava correta, mas ação do governador pode incentivar atos semelhantes por parte de civis;

3) Se quisesse premiar policiais, melhor faria se aumentasse salários da PM, garantisse melhores condições, mais treinamento e bons equipamentos para evitar que não precisassem entregar a vida em serviço de uma sociedade que não reconhece o esforço.

Todos podem discordar dessas premissas e das reflexões, parcialmente ou completamente. É minha análise dos fatos. Faz parte da democracia aceitar opiniões e críticas quando feitas de forma civilizada.

Dito isso, achei interessante porque muito comentários afirmaram que eu havia produzido um texto para atacar a policial e defender o assaltante, quando o post não fazia isso, mas criticava a reação das pessoas e a ação inoportuna do governador. Bastava uma leitura minimamente atenta e desarmada para perceber.

O texto teve uma grande quantidade de curtidas e compartilhamentos – mais de 86 mil até o momento de publicação deste post. A maior parte lê o texto ou um trecho dele e não se manifesta através de comentários. Interesso-me aqui, contudo, pela minoria barulhenta, seja ela divertida, interessante ou preocupante.

O post viralizou e dividiu opiniões. O debate público quando não ultrapassa os limites da educação e está interessado na troca de ideias e não em destruir o outro lado deve ser incentivado, mesmo que duro e áspero. São importantes os debates abertos para que pessoas reflitam e construam os significados que fazem sentido para elas mesmas.

Não costumo ler todos os comentários em minhas redes sociais, contando com uma ajuda periódica para bloquear haters e perfis falsos, porque é muita coisa. Neste caso, resolvi me debruçar e fazer uma análise do que encontrei. Abaixo, estão alguns achados:

– Centenas de leitores despejaram ódio em comentários nas redes sociais após terem consumido apenas o título do post (”Ao premiar morte com flores, governador de SP faz um desserviço à polícia”). Isso é facilmente detectável pois afirmavam que ataquei a policial, quando o primeiro parágrafo do texto (por precaução, uma vez que a dinâmica das redes é superficial) afastava essa possibilidade;

– Outros por terem uma visão distorcida do que sejam direitos humanos – que inclui o direito de abrir um negócio, ter uma religião, comprar uma casa, poder viajar e não ser vítima de arbitrariedade pelo Estado ou de outras pessoas – leram o texto com a certeza de que ”Sakamoto é defensor de bandido” na cabeça. Por mais que o texto não defendesse o assaltante. Enviesada, a leitura não deu margem a outra possibilidade que não fosse comprovar a tese;

– Uma vertente se incluiu onde não devia. ”Seu idiota não estamos comemorando a morte de ninguém” e ”Eu não comemoro a morte, comemoro a vida, seu fdp!” são alguns exemplos. O texto critica quem estava celebrando, com prazer, a morte do rapaz. Trata, portanto, de um grupo específico. Mas muitos que estava comemorando o fato do caso ter terminado bem para as crianças, a competência técnica e/ou sorte da policial jogaram-se para dentro desse grupo e sentiram-se ofendidas – o que pode ser explicado pelos dois itens acima. Ou pela tendência maniqueísta em ambientes de debate polarizado: é isso ou é aquilo. Desaparecem gradações. Ou você festeja a morte do bandido ou a do policial. Se não festeja nenhuma das duas é uma aberração, pois está fora das duas ”categorias aceitáveis”;

– Formadores de opinião de extrema direita de pequeno (com alguns milhares de seguidores) a grande porte (com mais de 500 mil) induziram ataques ao texto. Como muitos terceirizam a interpretação da realidade para pessoas que respeitam e confiam, passei a ser atacado com base em memes, gifs e textos desses formadores. Parte deles agiu por ignorância, parte por má fé. Até porque atacar um jornalista conhecido por ter visão de mundo à esquerda contribuiu para o fortalecimento da percepção de um grupo sobre si mesmo por reação a ele. E no Brasil ultrapolarizado, as identidades reativas, ”anti” qualquer coisa antes de ser ”pro” alguma ideia, fazem sucesso. Nesse ambiente, verdade é tudo aquilo com a qual acreditamos e mentira, da qual discordamos. ”Inteligente” é quem pensa como nós, ”burro” é quem pensa diferente;

– Entre os pequenos e médios formadores e opinião, destaque para os pastores de algumas igrejas cristãs, atacando de forma exaltada e xingando muito. Nas fotos de alguns de seus perfis nas redes sociais, imagens de orações e mensagens de amor ao próximo. Um deles, que também se diz delegado, mandou uma foto de uma montanha de cocô com a frase ”Para você sacamorto, você um monte!” (sic);

– Ao serem alertados por outros leitores de que eu não atacava a policial, nem defendia o assaltante no texto e que havia um equívoco na interpretação, muitos foram os que retrucaram dizendo ”eu li o texto e o Sakamoto diz isso sim”, fazendo um malabarismo discursivo. Se o objetivo da discussão pública fosse a troca desarmada de opinões para a construção entendimentos coletivos, as pessoas reconheceriam mais facilmente os seus erros. Como a finalidade é ganhar uma batalha digital ou destruir o adversário, é mais fácil o tal do camelo passar pelo buraco da tal agulha do que alguém admitir para sua rede de amigos e seguidores que comentou sem ler. Porque, para eles, isso significaria uma perda de credibilidade – mesmo que, numa democracia, isso signifique grandeza;

– Uma das característica das hordas que atuam em linchamentos é que elas não pensam, não refletem seguem um fluxo que vai aumentando de intensidade com o passar do tempo. Alguns leitores com perfil conservador questionaram os demais, dizendo que não gostavam de mim, mas eu não havia atacado a policial ou defendido o bandido. Por conta disso, passaram a ser alvos – eles próprios – de ataques, chamados de ”petistas”, de ”esquerdopatas” e ”defensores de bandidos”. Um rapaz postou ”Não precisa ler a matéria, no final já sabemos onde o ‘douto’ quer chegar”. Enquanto outro disse: ”Eu sei como um esquerdista pensa, não preciso ler a merda que ele escreve”. E ainda mais um: ”Foda-se! Esse japonês que nega a raça merece apanhar”;

– Os comentários foram se tornando mais sinistros, como se houvesse uma competição para ver quem ia mais fundo. ”Que o próximo a tomar uma bala na cabeça de um bandido seja o Sakamoto. Você merece. E torço para que ocorra logo”, disse um homem. ”Espero que um bandido estupre sua mãe” veio em seguida. Outro afirmava que eu estava ”precisando” ser vítima de um estupro coletivo por parte de criminosos armados para ”aprender”.  Daí, uma sequência de desejos de morte e execução;

– Com a ajuda de colegas que monitoram as redes, foi detectada também uma grande quantidade de robôs no Twitter, atacando de forma organizada com o mesmo conteúdo ou curtindo postagens de determinados perfis para aumentar sua credibilidade. Alguns seguiam também o padrão de perfis falsos: um avatar genérico, com um nome seguido de um número longo, por exemplo ”FulanodeTal845684792”. Outros desses perfis falsos defendiam o governador;

– Entre os perfis mais virulentos, seguidores do deputado federal Jair Bolsonaro. Entre categorias profissionais, trabalhadores da área de tecnologia da informação, estudantes universitários, advogados, entre outros. Homens e jovens em sua maioria. Por outro lado, não foi significativa a quantidade de perfis identificados como policiais fazendo críticas. Houve até um coronel que compartilhou o conteúdo – lembrando que o texto defende melhores condições de trabalho, equipamentos e salários para a corporação;

– Uma parte dos perfis que se identifica à esquerda também criticou o texto por ”defender a policial” e ”compactuar com a política de execução de jovens pelo governo”. Disseram que não era um texto que defendia os direitos humanos, mas minha visão ”pequeno burguesa de quem nasceu em bairro rico”. A despeito do fato de eu ter crescido e passado a maior parte da vida no Jardim Pirajussara, periferia de São Paulo, mesmo se eu tivesse me criado em bairro rico, a afirmação seria preconceito e generalização. Os comentários não eram, contudo, tão violentos quanto aqueles já citados.

Como chegamos a esse ponto?

Por mais que entendamos os processos que levam à desumanização do adversário ou mesmo os mecanismos que fazem com que pessoas pacatas se tornem monstros descontrolados quando devidamente estimuladas, não consigo encontrar uma palavra melhor do que ”insano” para me referir a quem manifesta tal comportamento. E um sentimento que não seja o de pena.

Poderíamos falar de nosso machismo, em que – nós homens – educamos meninos para se comportarem como monstrinhos. Ou da incapacidade de lidar com a falta de sentido ou de controle da própria vida, transferindo frustração do dia a dia para um ato de violência protegido pelo (suposto) anonimato da manada. Ou ainda do isolamento digital, físico ou social, que leva à desumanização e dificulta o reconhecimento da outra pessoa como detentora dos mesmos direitos. Ou do medo da violência e, principalmente, do medo do discurso da violência.

Minha hipótese é de que o sujeito que usa de métodos agressivos para perseguir adversários políticos é incapaz de canalizar a energia para o que realmente afeta sua dignidade. Como filas em hospitais, aumentos na passagem de ônibus, um salário ridículo, a falta de locais de lazer, a educação insuficiente que seus filhos recebem em escolas públicas e privadas, as moradias caras, patrões que passam a mão na sua bunda, empresas que só enxergam o lucro e passam por cima de tudo, reformas que tiram direitos dos trabalhadores da ativa e dos aposentados e a violência da criminalidade, da minoria podre das forças policiais, do próprio Estado.

Pelo contrário, como bons cães de guarda de preconceitos, desconfio que são capazes de xingar quem tenta se insurgir contra a violência da desigualdade social. Por exemplo, contra aqueles cidadãos comuns que ocupam um imóvel rural ou urbano vazio, tornando-o sua moradia.

Preferem seguir ”líderes” que propõem soluções fáceis e violentas para o vazio que ostentam no peito. Como as lideranças que prometem paz através da imposição do silêncio ao outro. Seja esse outro o adversário que diz que seu time é o melhor, seja pobres, negros, LGBTTQ, mulheres, entre outros, que exigem ser tratados com os mesmos direitos e ter acesso à riqueza produzida pela sociedade.

É interessante como se dá a formação de matilhas pela identidade reativa a um outro grupo ao invés da percepção das características do seu próprio grupo.

É assim com o antipetismo, que se une pelos erros do outro lado. Ou seja, muita gente se une pelo ódio a alguém e não pela solidariedade a alguma causa. O problema é que a união pela negação é incapaz de criar um projeto próprio de país, mas apenas algo com sinal invertido. Muita gente que se torna torcedora fanática na política adota ares de seita fundamentalista religiosa, dividindo o mundo entre o divino e o satânico.

Claro que, em última instância, há também aqueles com sérios distúrbios psicológicos ou, mesmo, sociopatas que se escondem em grupos políticos ou torcidas de futebol para praticar seus delitos, sem senso moral ou responsabilidade, sem sentimento de culpa ou reflexão sobre as consequências. E estou excluindo desta discussão aqueles que são pagos para tocar o terror e agredir psicologicamente ou fisicamente um grupo adversário. Esses, independentemente de sua coloração, entram na categoria de mercenários e deveriam ser julgados como tais.

Há uma minoria estridente de violentos que ganham holofote. E uma maioria silenciosa de pessoas que concordam, discordam, mas convivem. Na política, no futebol, na religião. O primeiro grupo deveria ser tratado ou contido por seus amigos, companheiros e familiares do segundo grupo. O problema é que o resto da sociedade, por cumplicidade, indiferença, apatia, cansaço ou nojo, segue no papel de refém e espectadora de um show de horrores que parece não ter fim. Tudo isso é compreensível, mas já está cobrando seu preço.

Cobri guerras em outros países. Trabalhando como jornalista, quase morri algumas vezes. Fui jurado de morte, cuspido, agredido fisicamente. Ameaçado por políticos, vítima de campanhas de difamação de multinacionais, processado por escravagistas por contar resgates de trabalhadores. Portanto não são xingamentos ou promessas de morte em redes sociais que atrapalham noites de sono. Mas o declínio da democracia, esse sim, me dá insônia.

Se nada fizermos para qualificar o debate público e deixar claro que não aceitamos o inaceitável, os gritos que ouviremos na janela serão, muito em breve, aqueles que pedem o nosso próprio sangue.

 

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