História de pescador

Com apenas 12% da área da baía de Guanabara liberada para pesca, os trabalhadores acabam virando alvo do acosso de empresas poluidoras e autoridades truculentas enquanto buscam seu sustento. Assista ao segundo episódio da série em 360º

Mariana Simões e Gabriele Roza

“As histórias de pescador, hoje, estão virando histórias de terror”, diz Alexandre Anderson enquanto se ajeita dentro do seu barquinho de madeira. “Antigamente nós saíamos e fazíamos uma oração para pedir bênção para pescar. Hoje, a gente faz uma oração para ver se a gente consegue voltar.”

Vestido com uma camiseta regata cinza e um chinelo no pé, o pescador limpa o suor e as gotas de água que respingam na sua testa. Alexandre manuseia o motor do barco e guia a nossa equipe de reportagem cada vez mais para dentro da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.

Barco de madeira de pesca artesanal transita em meio a uma Baía de Guanabara dominada por atores econômicos. AF Rodrigues

A bordo do seu barco, fica mais claro que ali é um território em disputa. Hoje, a segunda maior baía do Brasil é dominada pelos terminais de petróleo, quartéis da Marinha e um emaranhado de navios e estaleiros que ocupam o seu espelho d’água. De acordo com a Comissão Especial da Baía de Guanabara, da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), hoje existem 14 mil indústrias instaladas na bacia hidrográfica. A maior delas, segundo a geógrafa Carla Ramôa Chaves, é a indústria do petróleo, que ocupa 44% do território.

Um estudo desenvolvido pela geógrafa mostra que áreas de exclusão de pesca e perímetros de segurança estabelecidos pelas companhias e pelos militares deixam apenas 12% do espaço livre para a atividade pesqueira.

Resultado: ao tentarem buscar peixes, os pescadores acabam sendo vítimas de abusos das autoridades que patrulham as áreas de exclusão. “A Marinha do Brasil colabora com a fiscalização dos terminais, porém de forma muito ostensiva, muito violenta com os pescadores, que já atuam aqui há centenas de anos. Ela faz um agravamento da situação”, diz Alexandre. “Estamos denunciando alguns quartéis da Marinha que estão cometendo violências terríveis. Denunciamos há poucas semanas, no Ministério Público Federal [MPF], e levamos pescadores baleados.”

Vidas em risco pela pesca

Presidente da Associação Homens e Mulheres do Mar da Baía de Guanabara (Ahomar), Alexandre Anderson ficou conhecido por defender os direitos dos pescadores da baía de Guanabara e liderar protestos contra crimes ambientais ligados à indústria do petróleo. Foi alvo de seis atentados contra a sua vida. Ele atribui os atentados a milícias supostamente ligadas aos interesses econômicos na região. Alexandre já viveu sob escolta policial e em 2009 entrou para o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo Federal.

Alexandre Anderson, Presidente da Associação Homens e Mulheres do Mar da Baía de Guanabara (Ahomar)

Apesar do risco, ele continua fazendo denúncias sobre a perda de território pesqueiro. Em abril de 2016, a Ahomar, em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, deu entrada em um processo no MPF. O inquérito civil, em andamento, inclui depoimentos de pescadores que sofreram abordagens violentas protagonizadas pela Marinha do Brasil.

A maioria dos relatos gira em torno de uma instalação da Marinha conhecida como a ilha do Boqueirão. Localizada ao norte da Ilha do Governador, no interior da baía de Guanabara, os pescadores afirmam que a área ao seu redor é bastante propícia à pesca.

Segundo dados enviados à Pública via Lei de Acesso à Informação, no total, foram 196 registros de embarcações que, segundo a Marinha, ultrapassaram o perímetro de segurança em apenas dois anos – de março de 2016 até março de 2018.  Destes, 150 receberam o que a Marinha classifica como “disparos de advertência”.

Não é o que dizem os pescadores.

Dorval Maurício foi baleado há mais de dez anos, mas a ocorrência só chegou ao conhecimento do MPF por causa do inquérito civil. Dorval alega carregar até hoje na perna o projétil da bala.

Tudo aconteceu na madrugada de 21 de abril de 2006, enquanto ele retornava com um colega da pesca no entorno da ilha do Boqueirão. “Quando nós retornamos, 6h30, 7 horas da manhã, saiu uma lancha de dentro do centro de munição da Marinha, do Boqueirão, com uns quatro homens. E o sargento, ele já veio em uma distância de 200 metros atirando”, conta Dorval.

“A gente [falou] ‘para, para, para’, e ele continuava atirando… Eu senti queimar minha perna. E, quando eu fui ver, tinha um furo e estava sangrando. Aí eu avisei pra ele: ‘Olha, rapaz, me acertou’. Aí ele chegou ali perto, conferiu, manobrou a lancha e foi embora. Aí eu até brinquei: ‘Olha rapaz isso é uma omissão de socorro’”.

Em entrevista para a Pública, o procurador Renato Machado, responsável pelo inquérito no MPF, explicou que Dorval registrou a ocorrência na época, mas o caso foi encaminhado para o Ministério Público Militar.

O caso investigava o crime de lesão corporal e a possível invasão dos pescadores na área de segurança militar. E a Justiça Militar chegou à conclusão de que não houve, de fato, intenção dos pescadores de invadir o perímetro militar. Por outro lado, não houve uma decisão favorável ao pescador que foi baleado. A investigação concluiu que não havia provas de dolo do militar em atingir Dorval, nem que foram disparados três tiros contra a sua embarcação. “Foi arquivado, não foi mais investigado. Ninguém foi denunciado”, diz Machado.

Como o caso foi arquivado pela Justiça Militar, Dorval perdeu o direito de entrar com uma ação de reparação pelos danos sofridos. Segundo o procurador, Dorval não teve acesso a uma orientação jurídica adequada. Ele acredita que talvez seja por essa falta de informação que Dorval não entrou na época com uma ação para pedir reparação civil. “Ele sofreu um dano material e moral, por um agente federal no exercício de suas funções. Inclusive ficou meses sem poder pescar. Até hoje sente dores nas pernas, até hoje isso traz limitações para ele.”

Pela lei da época, o caso de Dorval Maurício nem deveria ter sido destinado à Justiça Militar. “Se entendia que a Justiça militar só julgava crime praticado pelos militares, nunca contra civis”, explica Machado. Hoje, com a Lei 13.491, sancionada pelo presidente Michel Temer em 13 de outubro de 2017, crimes cometidos por militares contra civis não serão mais investigados pela Justiça comum, e sim pela Justiça Militar. Ou seja: a impunidade deve piorar, segundo Maria Laura Canineu, diretora da ONG Human Rights Watch no Brasil. “No âmbito da investigação, a cultura hierárquica do militar e o corporativismo dentro do próprio órgão quase que inabilitam uma condução independente”, diz.

Pescador Ronaldo Moreno alega também ter sido abordado com tiros enquanto pescava no entorno da Ilha do Boqueirão. AF Rodrigues

Abuso de autoridade

“Estava terminando a pesca para retornar, quando a equipe da Marinha chegou, em uma lancha caracterizada, dando disparos de arma de fogo em minha direção. Alguns tiros chegaram a atingir o barco”, diz o pescador Alexandre Ribeiro, segundo depoimento prestado ao MPF.

Alexandre diz que em 17 de novembro de 2014 pescava com um companheiro próximo à ilha do Boqueirão – segundo ele, fora da área de exclusão da Marinha – quando foi abordado pelos oficiais. “A equipe era formada por três militares. Dois estavam de ‘touca ninja’, somente o motorista estava com o rosto descoberto. Em seguida eles lançaram a garateia e rebocaram meu barco até o cais do Boqueirão. Quando chegamos ao cais, havia mais cerca de cinco ou seis indivíduos de ‘touca ninja’ também aguardando nossa chegada”, diz o depoimento.

“Ao chegar, informei que não estava na área onde a pesca é proibida, sendo injusta a minha prisão, o que iniciou uma discussão. Me bateram com o fuzil no peito, me mandando calar a boca e ficar quieto, que eu não tinha direito de dizer nada.”

O depoimento de Alexandre Ribeiro termina com a descrição de mais agressões verbais feitas pelos militares, quando o colocaram junto com seu companheiro dentro de um ônibus. “Não voltem mais sua cambada de filhos da puta, vagabundos’. De lá tivemos que nos virar pra chegar de volta até Magé.” O pescador afirma que a sua embarcação está apreendida pela Marinha até hoje.

“A postura da Marinha é de muita truculência e muito autoritarismo”, diz Marcelo Chalréo, presidente de direitos humanos da OAB e um dos autores do pedido de inquérito ao MPF. “Um oficial da Marinha tem fé pública, do mesmo não goza o pescador. O que vai a princípio ser considerado é a palavra daquele agente administrativo”, explica. “Sobretudo à noite. A noite todos os gatos são pardos. E essa pesca que se faz na baía de Guanabara é uma pesca essencialmente noturna.”

O presidente da seção de direitos humanos da OAB acredita que conflitos podem ser evitados se os responsáveis por fiscalizar o perímetro de segurança fossem treinados para fazer as abordagens de forma mais cautelosa.

Entrevistado pela reportagem, o representante da Capitania dos Portos afirmou que os oficiais seguem o protocolo. “Nenhuma embarcação sem autorização da organização militar que está lá pode se aproximar a menos de 200 metros”, explica o comandante Salgueirinho. “Se ela atravessa os 200 metros sem autorização, a equipe de segurança da organização militar que está na ilha do Boqueirão vai fazer uma abordagem e vai solicitar que a embarcação se afaste da área.”

Segundo dados da Marinha, nos últimos dois anos foram 111 registros de mais de um disparo de advertência relacionados a embarcações que ultrapassaram o perímetro de segurança. Além desses, houve 39 registros de apenas um disparo de advertência.

O capitão Salgueirinho afirmou que, à noite, o protocolo de fiscalização é de fato mais rígido. “Você não sabe quem está dentro da embarcação, você não tem como pedir ‘pelo amor de Deus, você pode se afastar’. Existe uma reação compatível com cada situação. A noite é muito mais rigoroso nosso sistema de defesa, então ele precisa ser respeitado”, diz o comandante, acrescentando que não se pode tratar os invasores “com carinho”.

Terminal Aquaviário Ilha Comprida da Transpetro. AF Rodrigues

A Petrobras

Além das Forças Armadas, as indústrias instaladas na baía ameaçam a pesca artesanal. Algumas elas, de alto potencial poluidor, colocam em risco todo o ecossistema de onde os pescadores tiram o seu sustento.

“A pesca aqui era rica. Aqui tinha esse sururu, marisco de dedo. Aqui tinha tudo. Tinha tudo aqui. Uma maravilha. Eu já peguei peixe com a mão aqui. Não existe mais”, diz Paulo César Lopes Siqueira, pescador do bairro de Suruí, localizado no município de Magé, no noroeste da baía.

A reportagem fez uma viagem no barco com Alexandre Anderson, para conhecer de perto essa realidade da poluição causada pela indústria petroleira. Nossa câmera flagrou o Terminal Aquaviário da Ilha Comprida, da Petrobras, despejando um conteúdo espumoso na água. A instalação produz gás liquefeito de petróleo (GLP) refrigerado.

O combustível é utilizado, após envasamento, em cozinhas residenciais e comerciais, como bares e restaurantes.

Procurada pela reportagem, a Petrobras negou que o produto era um agente poluidor. Em nota, a Transpetro afirmou que se tratava de um ponto de descarte de água da própria baía. “A imagem em questão refere-se ao ponto de descarte de água da baía de Guanabara que é utilizada para refrigeração do Terminal da Ilha Comprida (RJ). A água da baía é rica em material orgânico e essa característica faz com que seja produzida espuma mediante agitação. Cabe ressaltar que a operação é monitorada pela Transpetro e está totalmente de acordo com a legislação vigente.”

“Quando os empreendimentos chegaram aqui, nossos avós já estavam aqui. O mar é nosso, o mar é do pescador, não é dos empreendimentos”, diz Maicon Alexandre Rodrigues de Carvalho, um dos fundadores da Ahomar. “Enquanto existirem homens e mulheres no mar na baía de Guanabara, a gente não vai desistir. Pode ameaçar, pode matar. É um trato que a gente fizemos. Se matar um, o outro continua.”

O presidente da associação, Alexandre Anderson, lembra que quem perde com os problemas críticos que assolam a baía – reconhecida como Patrimônio da Humanidade – não são apenas os pescadores. “O Brasil está perdendo uma baía de Guanabara exuberante, que a sociedade com certeza ainda pinta a baía de Guanabara com barquinho de pesca, um horizonte com sol. Hoje talvez ela vai pintar os rebocadores. Será que vão querer? E, em vez de um morro com sol, um flare e um navio soltando fumaça preta?”

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Imagem destacada: Alexandre Anderson, presidente da Associação Homens do Mar da Baía de Guanabara (AHOMAR) – AF Rodrigues

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