Ação do governo militar em execuções de presos precisa ser investigada, diz Dallari

Após confirmação da CIA, veio à tona a participação de presidentes na morte de brasileiros

Brasil de Fato

A revelação dos conteúdos de documentos secretos da CIA, agência de inteligência estadunidense, dá conta da estreita relação entre o primeiro escalão do governo militar com a execução de presos políticos. Deste modo, cai por terra o senso comum que as atrocidades da ditadura teriam acontecido nos porões do regime. Ao contrário, as mortes de brasileiros contrários à ditadura faziam parte, como se sabe agora, da engrenagem principal do governo, entre 1964 e 1985.

Ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o advogado e professor universitário Pedro Dallari afirmou que os documentos revelados são estarrecedores.

“O documento relata, com uma crueza enorme, um diálogo onde um presidente da República, o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e dois militares de alta patente discutem no gabinete presidencial o extermínio de brasileiros, como se discutisse políticas públicas, de saúde, educação, transporte, com a maior naturalidade. É impressionante!”, comentou Dallari.

Os documentos da CIA que apresentam a atuação do presidente Ernesto Geisel (1974-1979) autorizando a execução de pessoas contrárias à ditadura militar estavam liberados desde janeiro. No último dia 10, o pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Matias Spektor, divulgou os documentos.

Os coordenadores da extinta CNV vão se reunir para discutir como os arquivos descobertos influenciam no trabalho de elucidar os crimes cometidos durante a ditadura. Para Pedro Dallari, o momento exige que novas investigações sejam realizadas.

“Há uma recomendação da CNV para que se crie uma “Comissão de Segmento”. Quando a CNV foi extinta, deixamos a recomendação para a criação de um órgão que possa dar continuidade ao nosso trabalho. Isto não foi feito no Brasil, diferente do que ocorre em outros países. É importante que esse debate esteja, inclusive, na pauta dos candidatos à presidência da República, para que nossas atividades tenham continuidade”, disse Pedro Dallari.  Confira trechos da entrevista de Pedro Dallari para a rádio Brasil de Fato.

Brasil de Fato: Como é que esses documentos foram revelados?

Pedro Dallari: A CIA, que é a central de espionagem dos Estados Unidos, fez documentos para o governo americano relatando o que estava acontecendo no Brasil. Há vários relatórios deste tipo. Este, particularmente, reporta uma conversa que teria ocorrido com o então presidente Geisel, que era o ditador, e alguns assessores militares, em que se discute a continuidade das execuções de opositores do regime que vinha sendo conduzida pelo governo anterior, que era do general Médici.

E este relatório ficou sob sigilo por muitos anos dentro de uma política de segurança adotada pelos EUA, porém, a partir de um determinado momento eles perdem essa característica e são abertos para conhecimento público. Foi o que ocorreu, este relatório ficou disponível para pesquisadores. O professor Matias Spektor, da FGV, que é um grande pesquisador, localizou o documento e deu divulgação.

O nome do Geisel já estava na lista dos 377 investigados pela Comissão da Verdade? O documento da CIA foi uma surpresa ou já era esperado o que veio à tona?

O documento é estarrecedor porque ele relata com uma crueza enorme um diálogo onde o presidente da República, o chefe do Serviço Nacional de Informações e dois militares de alta patente discutem, no gabinete presidencial, o extermínio de brasileiros. Como se estivem discutindo políticas pública. Como política de Saúde, política de Habitação, política de Transporte, com a maior naturalidade. É algo, em si só, impressionante, nós não tínhamos nenhum documento que registrasse isso com tanta crueza. No entanto, que a ordem e a coordenação da atividade de repressão no Brasil tinha como central os gabinetes dos presidentes da ditadura militar, isto a Comissão Nacional da Verdade por diversos fatores e elementos já tinha concluído em 2014.

Essas atrocidades, execuções, desparecimento de pessoas e torturas, não era um produto, como queriam fazer crer os militares, da ação individual de alguns algozes. Era produto, isso sim, de uma ação coordenada pelo gabinetes presidenciais.

O que muda com o aparecimento desses documentos? Na nossa história atual, a gente vê a presença de militares no governo Michel Temer e a convocação de militares para a intervenção na segurança pública no Rio. Como você vê a ação das militares?

Depois da redemocratização do Brasil, os militares, como Forças Armadas, não deixaram de seguir a Constituição. Elas têm tido uma conduta compatível. É mesmo essa intervenção que foi feita no Rio não é inconstitucional. Ela se dá nos termos de uma previsão que a Constituição tem.

Qual a visão sobre os militares?

O fato de que os militares nunca reconheceram o papel institucional que tiveram na repressão faz com que, legitimamente, a sociedade brasileira fique muito insegura em relação a conduta dos militares. ‘Será que vai acontecer de novo?’. Por exemplo, o fato do comandante do exército ter pedido ao presidente, quando se decidiu a intervenção do Rio, que garantisse que não haveria uma nova Comissão da Verdade é alarmante. Fica parecendo que eles estão com a perspectiva de voltar a torturar, voltar a matar e, portanto, não gostariam que houvesse uma comissão da verdade.

O que poderia ser feito então?

Eu acho que, diante de mais este fato do documento da CIA, se as Forças Armadas vierem a público e relatarem com muita transparência e abertura que tiveram realmente envolvimento como instituição naquele período triste de violação e repressão dos Direitos Humanos, que aquilo não deveria ter ocorrido, que não vai ocorrer mais. Eu acho que seria uma janela de oportunidade para a reconciliação da sociedade brasileira  com as Forças Armadas, o que até hoje não houve.

Como foi o acesso do agente da CIA a uma reunião da cúpula do governo brasileiro naquele época?

Havia quatro pessoas na reunião: o presidente Geisel, o chefe do SNI e depois presidente da República o João Figueiredo e dois generais. O general Milton Tavares de Souza, que deixava a chefia da central de informações do exército e o general Confúcio que assumia essa chefia. Portanto, a menos que essa conversa tenha sido gravada, como é que a CIA ficou sabendo? O relatório foi feito pelo chefe do escritório da CIA no Rio de Janeiro.

Quando os documentos foram revelados, o primeiro parágrafo não está legível porque ele foi coberto com tinta preta. A mesma coisa acontece com um outro parágrafo no meio do documento. Creio que este dois trechos revelem como a CIA teve acesso a conversa. O mais provável é que um dos participantes tenha relatado para uma terceira pessoa ou para o agente do CIA os diálogos.

O exército diz que não tem mais os arquivos da época da ditadura, é isso mesmo?

Isso é muito grave. Toda vez que nós, da Comissão Nacional da Verdade, pedíamos, principalmente ao exército, mas também às Forças Armadas em geral, por exemplo, sobre a guerrilha do Araguaia, nos foi dito que os documentos foram destruídos, segundo o protocolo das Forças Armadas. Nós nunca acreditamos nisso.

Primeiro porque quando os documentos são destruídos, permanece o registro dos atos de destruição.  É possível se saber o que foi destruído e quando foi destruído. Por sua vez, quando pedíamos os registros de destruição, eles diziam que os registros também tinham sido destruídos. O que é pouco crível. Na minha avaliação, esses documentos existem até hoje e estão distribuídos em arquivos pessoais.

É lamentável que para recriar a história do Brasil temos que recorrer a documentos vindos de outros países.

Quais são os desafios na Defesa dos Direitos Humanos?

Um dos motivos para que ainda hoje tenha tanta tortura no Brasil é o fato  que no passado não se puniu situações desta natureza. Acho que importante perseverar neste tema para combater a impunidade.

Não é razoável que o Brasil seja o único país latino-americano em que nenhum torturador ou executor do período da ditadura tenha sido processado e julgado. É um vexame. O Peru fez, a Argentina fez, o Chile fez, o Paraguai fez e o Brasil não.

Uma medida de urgência é que o Supremo Tribunal Federal (STF) interprete a lei de Anistia, já há algumas ações  judiciais no Supremo, de tal sorte que o julgamento dos responsáveis dessas graves de violações dos Direitos possa ocorrer.

Alguma outra medida?

Há uma recomendação da Comissão da Verdade, que até hoje não foi implementada, para que seja criada uma Comissão de Seguimento, que existe em vários países, quando se encerra a Comissão da Verdade e ela faz recomendações, cria-se um órgão dentro do governo que possa dar continuidade ao trabalho, principalmente para monitorar a implantação das recomendações.

Edição: Juca Guimarães

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

Foto: Documentos da CIA revelam que io governo militar autorizou a execução de opositores / Site Memória da Ditadura

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