Carta em Apoio À Coordenação Regional do Rio Negro
Pelo Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh e Hupd’äh (CAPYH)
Senhor Presidente da Fundação Nacional do Índio,
Nós, profissionais engajados de forma colaborativa e solidária no Coletivo de Apoio aos Povos Hupd’äh e Yuhupdeh, vimos a público manifestar profunda preocupação diante da notícia de provável exoneração do atual coordenador regional do Rio Negro.
Os Hupd’äh e Yuhupdeh são povos considerados de recente contato pela FUNAI e têm a população estimada em 2500 e 750 pessoas (no Brasil), respectivamente. Fazem parte da mesma família linguística e vivenciam um cenário de intensa vulnerabilidade social, epidemiológica e cultural, tanto no espaço urbano de São Gabriel da Cachoeira como em suas comunidades. Este cenário decorre sobretudo do processo de contato com não indígenas, iniciado no contexto de diversas correntes missionárias a partir da segunda metade do século XX.
Conforme a categoria administrativa adotada pela Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da FUNAI, e também pela Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI, povos indígenas de recente contato são aqueles que mantêm relação de contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos da sociedade nacional, com reduzido conhecimento dos códigos ou incorporação dos usos e costumes da sociedade envolvente, e que conservam significativa autonomia sociocultural.
Segundo dados da FUNAI (2017), no período de 2014-2015 foram registrados pelo DSEI-RN 63 óbitos de pessoas Hupd’äh e Yuhupdeh. A maior parte desses óbitos ocorreu na área de abrangência dos polos base de São José II e Médio Uaupés. A metade dos óbitos foi de crianças de 0 a 5 anos de idade, sendo que houve uma taxa de 20% de mortes por afogamento, 16% por suicídio, 16% por diarreia e 11% por pneumonia. Enquanto a falta de segurança alimentar e de saneamento relacionam-se à mortalidade infantil, o suicídio parece relacionar-se às incursões ao centro urbano, à discriminação, ao consumo de bebidas alcóolicas não indígenas, a conflitos intergeracionais e às relações de exploração às quais as pessoas Hupd’äh e Yuhupdeh são submetidas por meio das relações de consumo e trabalho na cidade. O relatório da FUNAI (2017) ressalta a gravidade do problema quando se compara essa taxa de suicídios à média nacional que é de 6 para cada 100.000 pessoas/ano, sendo o índice de suicídios Hupd’äh trinta e seis vezes maior que o nacional.
Em contraste com os outros povos que habitam a região, os quais são falantes de línguas das famílias linguísticas Tukano Oriental e Aruak, os Hupd’äh e os Yuhupdeh não foram tão afetados pelos famosos “descimentos” de indígenas do Alto Rio Negro, a partir do século XVII, para o trabalho forçado no extrativismo das “drogas do sertão” e, posteriormente, de outros recursos florestais, até a localidade onde existe, atualmente, a capital amazonense, Manaus.
Nos últimos quarenta anos, incursões missionárias de diferentes ordens religiosas empreenderam esforços de conversão religiosa e escolarização dos Hupd’äh e dos Yuhupdeh, convencendo diversos grupos locais – em troca do acesso a bens como machados, terçados, fósforos etc. – a abandonarem as áreas de terra firme que habitavam, fartas em caça e próximas a cabeceiras de igarapés, para fixarem aldeamentos mais a jusante desses cursos d’água, próximo às confluências com rios maiores, em locais menos abundantes e com terras ruins para o plantio de roças de mandioca. Segundo relatos dos Yuhupdeh, uma outra parte dos grupos que viviam em malocas nas cabeceiras do igarapé Ira teria realizado essa mesma natureza de movimento para conseguir fósforos e ferramentas com outros povos. Ou seja, a motivação principal dessa aproximação ocorreu guiada pelo desejo de acesso a mercadorias produzidas por não indígenas que facilitavam a vida na floresta.
Os problemas atuais relacionados à insegurança alimentar em diversas comunidades desses povos (e os índices alarmantes de desnutrição e mortalidade infantil que daí derivam) decorrem, fundamentalmente, dessas reconfigurações territoriais e da concentração de diferentes grupos locais em aldeamentos maiores, gerando concentração populacional e pressão sobre os recursos do entorno. Entretanto, é importante ressaltar que existem diversos grupos locais que mantêm a organização social típica, reunindo uma média de 30 pessoas e famílias com grande mobilidade territorial. E que, mesmo nas aldeias maiores, a dinâmica de alternância entre essas e os acampamentos de caça e coleta se mantém.
Além do histórico de péssimos índices de saúde desde o início do contato com agentes missionários e do Estado, que não se restringem aos casos de desnutrição, mas envolvem doenças parasitárias, tuberculose, malária e, atualmente, suicídios em algumas regiões, os Yuhupdeh e Hupd’äh têm enfrentado duras consequências desde que começaram a acessar políticas públicas, em especial de saúde, educação escolar e, nos últimos anos, os benefícios sociais e previdenciários. Pequena parcela populacional compreende razoavelmente o português, o que os deixa, em muitas situações, dependentes de interlocutores de outras povos indígenas da região para conseguirem explicar o que estão demandando às instituições locais.
Atravessam, na atualidade, um período conturbado de monetarização, sem que estejam plenamente preparados para a administração do dinheiro, para as interações na cidade e nos estabelecimentos comerciais. Isso se dá, em larga medida, pelo desejo de obter mercadorias (basicamente, as mesmas que buscavam na década de 1970, às quais continuam não tendo acesso). Some-se a isso as deficiências estruturais da rede local de instituições responsáveis pela emissão de documentos, cadastro para recebimento de benefícios, pagamento de benefícios, serviços de assistência social, de saúde e secretaria de educação, e chegamos a um cenário de tragédia humanitária de difícil resolução. Acampados durante meses na beira do rio Negro, nos arredores da cidade, ficam expostos a toda sorte de violência, racismo (inclusive institucional) e violação de direitos.
Hoje, as principais instituições que têm acolhido com sensibilidade e compromisso as demandas dos Hupd’äh e Yuhupdeh são a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e a Coordenação Regional da FUNAI – São Gabriel da Cachoeira. Temos desenvolvido, em parceria com essas instituições, diversos trabalhos que buscam encaminhar demandas dos Hupd’äh e Yuhupdeh, a exemplo da construção participativa do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) – Alto Rio Negro e dos estudos para registro de seu patrimônio cultural material e imaterial, além da elaboração de diagnósticos e da realização de articulações interinstitucionais e intersetoriais que visam à qualificação de políticas públicas de saúde, educação e direitos sociais, de modo a garantir que suas especificidades culturais sejam respeitadas e que seus espaços públicos de fala sejam ampliados. O objetivo é contribuir, de maneira integrada e bem fundamentada, e sempre contando com a participação e protagonismo de lideranças hup e yuhup, para a superação do quadro de extrema vulnerabilidade em que esses povos se encontram na atualidade.
O diálogo e a parceria entre o órgão indigenista oficial e o movimento indígena da região, representado pela FOIRN, é a condição de efetivação deste processo atual de ampliação da escuta das demandas desses povos de recente contato da região. Desse modo, expressamos imensa preocupação com a continuidade dos trabalhos que vêm sendo realizados e consideramos extremamente temerário e contraditório o processo de exoneração e de substituição do atual coordenador ser realizado sem qualquer tipo de diálogo com o movimento indígena representado pela FOIRN e com as lideranças dos povos Hupd’äh e Yuhupdeh.
Ademais, vale ressaltar a respeitável trajetória profissional de Domingos Barreto, ao longo da qual acumulou experiência inestimável para o trabalho junto aos povos indígenas da região. Além de ter participado ativamente do movimento indígena pela demarcação contínua das Terras Indígenas do médio e alto Rio Negro, já foi gestor indígena de projetos, diretor presidente da FOIRN, gestor do DSEI Alto Rio Negro durante o Convênio DSEI/FOIRN e abraçou, posteriormente, a árdua missão de coordenar a FUNAI local. Acolhendo, de forma inédita, as demandas Hupd’äh e Yuhupdeh, talvez num dos contextos de atuação indigenista mais complexos de que temos notícia.
Durante a sua gestão, foi possível iniciar a construção de uma política específica de atendimento aos Yuhupdeh e aos Hupd’äh, na qual depositamos esperanças de continuidade pois ainda há muito a ser feito. Isso tem ocorrido em diálogo com a FOIRN, outro dado inédito e de imensa importância.
Repudiamos, portanto, qualquer possibilidade de loteamento político da FUNAI que possa ter consequências nefastas para os povos indígenas do Rio Negro e, especialmente, devido às suas especificidades, para os nossos amigos Hupd’äh e Yuhupdeh.
Abaixo, Dossiê “Direitos Indígenas: O que precisa de verdade para fazer funcionar”, construído pelo Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdeh e Hupd’äh (CAPYH), com apoio da Coordenação Regional Rio Negro e FOIRN, foi apresentado para o Ministério Público Federal em Audiência Pública na Casa de Saberes da FOIRN, em 02 de março de 2016.
Assinam:
Bruno Ribeiro Marques, Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS, Museu Nacional, UFRJ
Claudia Bandeira de Mello, Agente em Indigenismo, Mestre em Educação e Gestão Ambiental pela Universidade de Brasília
Fernanda Nunes de Araujo Fonseca, Indigenista Especializada, Mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília
Prof. Dr. Danilo Paiva Ramos, professor do Dep. de Antropologia e Etnologia da UFBA, tutor do PET Comunidades Indígenas e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios (CESTA – USP)
Henrique Junio Felipe, professor de Antropologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf)
Pedro Lolli, professor de antropologia UFSCar.
Prof. Dr. Renato Athias, Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade da UFPE
FÓRUM SOBRE VIOLAÇÕES DE DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS
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