Intervenção militar: o abraço dos afogados

Por Humberto Ramos de Oliveira Júnior, no Justificando

Já faz algum tempo que o pedido por uma atuação enérgica das Forças Armadas Brasileiras se faz ouvir. Estas manifestações são oscilantes, intensificando-se nos momentos de agravamento da instabilidade política do país. Na verdade, este tipo de discurso retorna à cena quando dos primeiros sinais de declínio do Lulismo, maculado pelos inúmeros casos de corrupção aliado aos reflexos internos oriundos da instabilidade da economia global.

Via de regra, rechaçamos o discurso militarista e desprezamos aqueles que ousam proferi-lo. É deveras lamentável que, tendo o país passado por 21 anos de uma cruel Ditadura Militar, com terríveis consequências para a história de nosso povo, ainda haja pessoas que se ponham ansiosas pelo retorno destes à vida política institucional do país. Entretanto, há que se pensar o problema com certa dose de serenidade e ponderação. Por que clamam alguns por tal tipo de intervenção? Há velhos e jovens nas fileiras que ostentam tal posicionamento, por que esta alternativa reviveu no seio de nossa pátria? Investigar este fenômeno é a obrigação dos pesquisadores de plantão, mas não somente: qualquer pessoa que nutra o mínimo afeto pela democracia deve fazê-lo.

Dentre as razões, podemos mencionar a relutância do Estado brasileiro (nossos governantes e setores da vida social do país) em realizar um acerto de contas entre as Forças Armadas e seu povo. Há uma imensidão de crimes cometidos por oficiais do Estado contra civis que jamais foram punidos. Sequer as Forças Armadas se mostram solícitas em fornecer dados necessários para uma acareação dos fatos. Há pessoas (restos mortais, pra ser mais direto) desaparecidas Brasil afora. Nossa Comissão da Verdade pôde muito pouco em seus efeitos. Até agora, não gerou maiores resultados do que um trabalho acadêmico (isto é, seu conhecimento está restrito praticamente ao círculos intelectuais e de militância de quem se importa com a temática).

A não prestação de contas fora negativamente pedagógica. Não realizamos nossa lição de casa e, portanto, muito pouco construímos e solidificamos em nossa sociedade acerca do valor fundamental da democracia. Diante disso, podemos nos perguntar o que aqueles que pouco ou nada aprenderam poderiam ofertar às gerações subsequentes. Ora, seus filhos obviamente cresceram com o resultado do pouco ou do nada aprendido. Hoje nos deparamos com este resultado. Jovens e adolescentes flertando com discursos e práticas fascistas.

E o discurso se amplifica em tempos de crise política. Esperado! Como poderia ser diferente? Quem quer que não tenha aprendido o apego aos valores democráticos não suportaria passar pela tempestade política pela qual passa o país. Os constantes casos de corrupção, a ineficiência dos serviços públicos em diversas regiões do país, um sistema eleitoral um tanto confuso e crivado de partidos que, quando muito, diferenciam-se apenas pelas suas siglas configuram uma realidade de precarização da vida política e social.

Infelizmente, há agravantes, como bem lembra o professor André Singer ao afirmar que próprio Lulismo fora despolitizador por excelência. Desenvolveu-se sob uma plataforma política que tinha como base a conciliação e não o confronto (topo x base). O Partido dos Trabalhadores governou pouco mais de uma década ofertando às elites brasileiras a certeza da desmobilização social. Em outras palavras, tudo ficaria como estava, sem drásticas mudanças em diversos estratos sociais.

Como efeito dessa despolitização, a nação ficou à mercê de outras possibilidades e, como sabemos, não há vácuo na política que não seja ocupado. Ao invés da politização e engajamento crítico, uma imensa massa de cidadãos e cidadãs passou a flertar com uma narrativa moralista do campo político, isto é, a ideia de que é preciso moralizar a política. Pensando bem, quem seria contrário a este discurso? O problema é que esta narrativa desconsidera a relativa autonomia deste campo, o que resulta em uma imensa frustração diante do resultado que mais cedo ou mais tarde se apresenta. É bastante arriscado alimentar a ideia de que podemos nos afiançar na renovação das instituições por meio da perseguição aos corruptos. Seria possível erradicar a corrupção em sua integralidade de uma vez por todas?

É evidente que qualquer pessoa anseia pela mitigação da corrupção. Entretanto, dificilmente conseguiríamos eliminá-la em sua integralidade de uma vez por todas (esta não seria uma esperança de cunho religioso?). É preciso encarar os fatos com realismo, o campo político é muito mais emaranhado do que gostaríamos de admitir, a complexidade da suas relações (ainda mais sob a égide do sistema capitalista) é demasiado densa, o que nos sugere que dificilmente haverá respostas simples mesmo para os problemas – aparentemente – mais simples a serem resolvidos. A despeito de tudo isso, esta expectativa tem angariado um significativo número de pessoas e sustentado não poucas pré-candidaturas para as eleições deste ano. Opção preferencial para tais eleitores são aqueles candidatos que negam a política das mais diversas formas, rejeitam valores fundamentais consagrados pelas democracias ocidentais e, em um ato que remete à frustração e desespero, a reivindicação de uma Intervenção Militar.

A despeito da aversão que possamos ter por esses discursos, devemos nos questionar se de fato tais pessoas têm ideia do que significaria um retorno dos militares ao poder. Na verdade, não sabemos de fato o que elas almejam. É realmente um apelo para uma ruptura com a democracia? Uma convocação para a instauração de uma ordem na qual não se tenha espaço para o questionamento, nem pluralidade partidária, nem eleições diretas? Estão clamando o retorno das torturas, assassinatos e toda sorte de repressão aos opositores?

Sinceramente, não creio nisso. Creio numa orfandade político-afetiva. Gente bastante frustrada com os rumos do país, cansadas de nutrir expectativas e com pouquíssima condições de avaliar o cenário criticamente. Gente com pouco alcance teórico-prático em relação aos temas que perpassam os noticiários a todo momento (de Economia aos Direitos Humanos). Pessoas que, acima de tudo, não sabem como exercer a democracia justamente porque não foram orientados para tal e não possuem traquejo. Também não encontram as vias para fazê-lo porque estas se minguaram pouco a pouco e, a fim de restabelecê-las, é mister um bocado de esforço e dedicação de cada pessoa. Um esforço que não tem tanto a ver com ir às ruas para manifestar sua indignação, mas sim com a constante manutenção de um agir/fazer político que aponta para a transformação cotidiana de nossas estruturas sociais.

Intervenção Militar não é opção, é o abraço dos afogados que naufragaram em nossa (frágil e rasa) democracia.

Humberto Ramos de Oliveira Júnior é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, membro do Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política (NEREP-UFSCar) e professor do curso de Direito do Centro Universitário Salesiano – Unidade Americana/SP.

Foto: Fotos Públicas /Justificando

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