Durante toda a greve dos caminhoneiros, a partir do dia 21 de maio de 2018 no Brasil, que levou ao desabastecimento dos CEASAs, de muitos supermercados e impôs a paralisação da maioria dos automóveis nas garagens, recordei-me o tempo todo, com saudade, de Marcelo Guimarães Mello. Além de ter tido a alegria de conhecê-lo e me tornar seu amigo, aprendi com ele o caminho para a superação da dependência energética e alimentícia imposta ao povo brasileiro pelo Estado Brasileiro acumpliciado ao capital internacional, primordialmente especulativo. De forma apaixonada, com grande competência técnica e com a sabedoria dos camponeses, Marcelo Guimarães, ao longo de 20 anos, pesquisou muito e colocou em prática um protótipo que viabiliza a autonomia energética e alimentar com tecnologia social e preservação ambiental, gerando energia, produção de alimentos saudáveis sem agrotóxicos e construindo autonomia energética. Marcelo dizia com alegria: “Há mais de 25 anos, eu, minha família e alguns amigos andamos de automóvel sem ter que parar em nenhum posto de gasolina para abastecer. Eu mesmo produzo minha energia e os alimentos que chegam à cozinha da minha casa”.
Marcelo Guimarães era geólogo e entrou para a história como o criador de um projeto de autodesenvolvimento com soberania e autonomia do campesinato por meio de microdestilaria de álcool consorciado com a produção de alimentos em propriedade camponesa da terra. Junto com Bautista Vidal, Marcelo Guimarães foi fundador da Escola da Biomassa. Em 2007, Marcelo Guimarães concedeu entrevista ao Beto Almeida para a TV Educativa do Paraná, em sua pequena propriedade – fazenda Jardim – no município de Mateus Leme, distante 75 quilômetros de Belo Horizonte, MG. O principal projeto criado por ele trata-se do sistema de Unidade Geradora de Energia e Alimentos (UNIGEA), que qualifica pequenas propriedades rurais para a produção combinada de bioetanol, recursos florestais e alimentos orgânicos de origem animal e vegetal, conforme o modelo implantado na fazenda Jardim, pequena propriedade dele e de sua família.
Em síntese, na sua pequena propriedade, Marcelo Guimarães produzia, em um alambique (microdestilaria), etanol, álcool, pinga e rapadura, a partir de um pequeno canavial. Com o bagaço da cana ele alimentava dezenas de vacas que produziam leite, queijo, requeijão, manteiga, doce etc.. Com o esterco das vacas uma grande horta era adubada, garantindo, assim, uma significativa produção de verduras, legumes e frutas. Uma pequena área plantada de eucalipto garantia a lenha necessária para funcionar o forno da caldeira da microdestilaria. “Aqui não se perde nada. Com o bagaço eu alimento o gado … O álcool brota da terra e do trabalho humano”, dizia Marcelo. Assim se cria um ciclo de autodesenvolvimento com autossustentabilidade.
O Sistema de Unidade Geradora de Energia e Alimentos (UNIGEA) é a implantação de MICROUSINAS de baixo custo e de alto valor agregado para que microdestilarias e pequenos alambiques produzam além da cachaça, álcool combustível, açúcar mascavo, a rapadura, o melado, o adubo orgânico, biodefensivos, sementes e mudas para agroreflorestamento, gerando alimentos, energia e alimentação do gado, sem poluição e nem degradação do meio ambiente.
A implantação do sistema UNIGEA poderá interferir de maneira positiva no campo brasileiro, pois viabilizará a geração de trabalho e renda nas pequenas propriedades que vivem da agricultura familiar. A operação de todo o sistema é muito simples, podendo ser efetuada por qualquer trabalhador rural, após simples treinamento.
Com seis hectares de cana, um produtor ou um grupo de pequenos agricultores, poderão produzir até 200 litros de álcool por dia, gerando emprego e renda para as famílias. Nesse sentido identificamos o desenvolvimento da referida proposta como de importância estratégica para o país, pois é preferível que muitos pequenos produtores produzam energia do que apenas alguns grandes produzam a mesma energia. Com muitos pequenos agricultores produzindo em pequenas áreas, o meio ambiente é contemplado no sentido de barrar as monoculturas da cana, do eucalipto, da soja e do capim, com utilização massiva de agrotóxicos e adubos nitrogenados, diminuir o desmatamento em função do consumo de lenha para uso doméstico e recuperação de áreas degradadas e implementação da agropecuária agroecológica pela utilização de adubos orgânicos. Esse ciclo desencadeia a melhoria da qualidade das terras e tende a aumentar a produtividade, pois uma propriedade que produzia apenas uma mercadoria no sistema de monocultura, pode produzir também o álcool e adubo orgânico de forma eficiente e econômica. Vale ressaltar também que o pequeno produtor, principalmente no norte de Minas Gerais, já está muito familiarizado com o setor de leite e cachaça, sendo a retirada de leite e os equipamentos de alambique como fornalha, dorna e moenda, de seu pleno conhecimento e utilização.
A implantação do projeto UNIGEA melhora o processo de produção de álcool em microdestilarias instaladas em pequenas propriedades rurais; fixa a família camponesa em sua propriedade; gera renda para pequenas famílias que vivem da agricultura a partir da produção do álcool, cachaça, rapadura, melado, açúcar mascavo, adubo orgânico, biogás etc.; produz produtos caseiros, tais como, compotas, frutas desidratadas (calor do vaporizador), queijo etc.; melhora sua propriedade, na recuperação de áreas degradadas com o adubo orgânico ou o biofertilizante; melhora a alimentação utilizando o adubo orgânico ou o biofertilizante em sua própria horta e consequentemente melhorando a sua saúde e de sua família; melhora a qualidade de vida do campesinato, pois, adquire dignidade e segurança ao trabalhar e produzir vários produtos em sua propriedade. Enfim, gera trabalho, alimento e energia, elementos fundamentais para o sustento e desenvolvimento da humanidade, mas também privilégio e responsabilidade de um país tropical como o Brasil. Por esse caminho o Brasil poderá crescer de baixo para cima. Para o projeto UNIGEA ser implementado é óbvio que se faz necessário realizar a reforma agrária e conquistarmos política agrícola que realmente fomente mais a agricultura familiar que o agronegócio. Avisados pela greve dos caminhoneiros, é vital seguirmos por outro caminho: não o de um Governo com Petrobrás vassala do capital internacional, mas o da reforma agrária com agricultura familiar com microdestilarias aos milhares, produzindo energia e alimentos saudáveis, o que nos traz autonomia e soberania.
“As ideias do Marcelo Guimarães devem ser implementadas de baixo para cima”, alerta José Guilherme. O legado político emancipador de Marcelo Guimarães é imenso. Cito aqui algumas afirmações que ouvi dele e que são estrelas luzentes no nosso caminho: “Exportar matéria-prima nunca foi solução para o povo brasileiro”. “O grande problema do mundo tropical são as monoculturas. A pior delas é a pecuária, depois o eucalipto e a soja”. “Não adianta falar de cidadania se não se tem soberania”. “Se as plantations dominarem o país, acabou o Brasil”. “O dinheiro necessário para construir uma refinaria de petróleo, que gera 7 mil empregos, dá para construir 100 mil microdestilarias que geram 1 milhão de empregos e autonomia para milhões de pessoas”. “Enquanto os governos não fazem o que precisa ser feito, vamos de baixo para cima com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e com os milhares de assentados do MST”. “Nós temos tudo – terra, clima e povo trabalhador – e vamos continuar escravos?” Muito mais está no livro dele: BIOMASSA – Energia dos Trópicos em Minas Gerais, Belo Horizonte: FAFICH, 2001.
A greve dos caminhoneiros demonstrou para o povo brasileiro que Marcelo Guimarães de Mello tinha, tem e terá sempre razão ao construir e mostrar na prática a pertinência e a viabilidade da Unidade Geradora de Energia e Alimentos (UNIGEA) (), caminho de autonomia energética e alimenta que respeita a natureza.
Belo Horizonte, MG, 29/5/2018.
Obs. 1: Mais informações sobre o sistema UNIGEA (unidade geradora de energia e alimentos) no blog, abaixo:
http://projetoguardasol.blogspot.com.br/
Obs. 2: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
–
*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas.