Minoria de caminhoneiros radicais força colegas a alucinarem junto com eles. Por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

Caminhoneiros estão deixando pontos de bloqueio em rodovias após serem praticamente ”resgatados” por policiais. Satisfeita com o segundo acordo proposto pelo governo federal, que reduziu os custos de frete, uma parte significativa dos motoristas autônomos deseja voltar para casa ou ao trabalho, com seus veículos, há dias, mas têm sido impedidos por uma minoria de colegas.

Uma pequena parcela deles, empoderada pelas conquistas e pelo tamanho que o movimento alcançou, tem obrigado os demais a continuarem nas manifestações e bloqueios, chegando a ameaçar e agredir quem tenta partir. Um caminhão foi apedrejado, em Itapecerica da Serra (SP), nesta quarta (30) – o motorista está bem. Outro, em Vilhena (RO), não teve a mesma forte e morreu ao ter o para-brisa de seu caminhão atingido pela pedra lançada por um manifestante.

Os caminhoneiros mais exaltados demandam novas pautas, da redução do preço da gasolina, passando pela cassação de todos os corruptos até a cabeça de Michel Temer servida em bandeja pelas Forças Armadas. Muitos nem sabem o que querem a bem da verdade, mas desejam continuar no lugar onde sua vida ganhou novo significado.

São estimulados por grupos ultraconservadores que parasitam o movimento para exigir golpe militar, Estado de sítio, o fim do Foro de São Paulo, uma guerra contra a Venezuela, o banimento do vermelho nas camisetas e outras bobagens. São poucos, mas barulhentos.

Na via Dutra, como retratou matéria da Folha de S.Paulo, enquanto caminhoneiros comemoravam, se abraçando e gritando que iriam para casa, outros poucos criticavam os que deixavam o local. Pois os políticos corruptos não haviam sido presos e a ”intervenção militar” ainda não aconteceu (a depender das declarações de generais, nem vai acontecer). Reclamaram que a população preferiu encher seus tanques do que se juntar a eles nos bloqueios.

Intoxicados pela própria adrenalina, acreditavam que poderiam ir além, ignorando que a conjuntura – altos índices de desemprego e violência misturados a uma sociedade decepcionada com seus líderes, desalentada sobre a realidade e sem esperança na política, a um governo fraco e prestes a encerrar seu ciclo e a atores políticos, econômicos e midiáticos que não querem mudanças bruscaz neste momento de transição e agem para por panos quentes – não gera necessariamente uma revolução.

Talvez esperavam que ocorresse como em 1972, quando uma paralisação de caminhoneiros por 26 dias, no Chile, asfaltou o caminho para o golpe de Estado que depôs Salvador Allende. Ou mesmo com os protestos de caminhoneiros que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff. Se assim for, ignoram a diferença dos momentos históricos, dos governos e dos interesses envolvidos.

Embriagadas pelo próprio sucesso, pessoas, não raro, são incapazes de olhar a situação com distanciamento e perceber que uma vitória não significa necessariamente outra. E o comportamento de ”não colocar meta, deixar a meta aberta, mas, quando atingir a meta, dobrar a meta” leva a uma manutenção inercial que não é monopólio de caminhoneiros, mas está presente em qualquer agrupamento humano, de diferentes ideologias e credos.

Nas Jornadas de Junho de 2013, por exemplo, após a queda no valor da tarifa do transporte público, presenciei manifestantes extremamente exaltados que defendiam que todos seguissem marchando até a revolução. Não eram muitos, mas destavam-se na multidão. Alguns brigaram com seus colegas, chamando-os de ”recuados” diante da possibilidade de um ”levante popular” – cuja possibilidade de sucesso só não era menor que a de uma guerrilha rural de esquerda no Bico do Papagaio, durante a ditadura militar.

Vale lembrar que uma revolução à esquerda não estaria nos Top 10 Hits daquele 20 de junho de 2013, dia de celebração da vitória da queda da tarifa, na avenida Paulista, quando muitos grupos de extrema direita se apropriaram da manifestação.

Não estou discutindo a validade da radicalidade de pensamento, uma vez que o pensamento deve ser livre, não importando o sentido que aponte. Também não estou questionando decisões tomadas de forma democrática, com pessoas votando em assembleia, em que divergências são discutidas e regras comuns costuradas – como foi a organização inicial de vários pontos de manifestação de caminhoneiros nas estradas.

Mas quando uma minoria, que seria derrotada na consulta democrática entre seus pares, resolve partir para a ignorância em nome de sua causa, obrigando os demais a seguirem contra sua vontade, a maionese desandou.

Essa minoria, que pode agir de forma agressiva, rotula de fracos e traidores aqueles que não compartilham de sua cosmovisão.  E, numa guerra, pior do que os inimigos, apenas os traidores – que por conta disso, podem ser agredidos e eliminados. Como motoristas que furam bloqueios.

Toda a sociedade tem seu naco de pessoas que age de forma insana, tresloucada e inconsequente. Para ser sincero, muitos de nós, com o estímulo certo, podem chegar tão fundo quanto alguns caminhoneiros foram nesses dias – anulando através da violência aquilo que foi conquistado através da solidariedade.

Esse pessoal sempre existiu. A questão é que, agora, ele conta com redes sociais. Através delas, percebem que não estão sozinhos, encontram-se com seus iguais. E, como são barulhentos, transmitem ao mundo uma imagem de movimento mais radical do que realmente é. Como a tendência da sociedade é se atentar para aqueles que considera estridentes, ganham espaço maior do que realmente são.

Muitos dos mais exaltados chegam a nem reconhecer as conquistas como tais. Pois isso não mudaria a insatisfação difusa que sentem diante da realidade. Coisa que todos nós sentimos e, nem por isso, saímos jogando pedra em outros seres humanos.

Decepção maior deve ter sido quando as Forças Armadas não vieram em seu socorro. Pois, a todo o momento, muitos repetiam uma paráfrase do mantra sebastianista, de que um oficial fardado viria montado em um Urutu verde para liberta-los.

Mas libertá-los do quê? Da liberdade de tomar decisões erradas, talvez. Ou da mesma vida que levavam até a eclosão da greve. Vida para a qual não desejavam voltar.

Foto: L Raniery Soares /Futura Press / Estadão Conteúdo

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