Aborto aprovado na Câmara dos Deputados argentina: reflexões sobre o contexto atual das disputas pelos direitos das mulheres

A cientista política Flávia Biroli faz três afiadas reflexões a partir da votação histórica de hoje na Argentina, e mapeia os avanços da pauta no Brasil e na América Latina e seus entraves

Por Flávia Biroli, no blog da Boitempo

A Câmara dos Deputados argentina aprovou hoje, com 131 votos a favor, 126 contra e uma abstenção, um projeto de lei que despenaliza e legaliza o aborto até a 14ª semana, sendo esse o desejo da mulher. Caso seja aprovado também no Senado, a Argentina será o segundo país da América Latina a ter uma lei que garante o direito das mulheres ao aborto.

Na América Latina, o Uruguai foi o primeiro país a descriminalizar o aborto, com a aprovação da lei de interrupção voluntária da gravidez em outubro de 2012. Antes, em 2007, havia sido aprovada no México uma lei que descriminaliza o aborto até a décima segunda semana de gestação, mas ela é válida apenas para o Distrito Federal. No Chile, um dos poucos países do mundo a proibir até pouco tempo o aborto em qualquer circunstância, a Câmara e o Senado aprovaram em 2016 e em 2017, respectivamente, três exceções à penalização (risco para a vida da mulher, gestação resultante de estupro e inviabilidade fetal), tornando a legislação próxima à brasileira.

Também no Brasil temos alguns avanços. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a terceira exceção à lei que criminaliza o aborto no Brasil, que são os casos de anencefalia fetal. Em 2016, uma decisão do mesmo STF firmou o entendimento de que o aborto até a 12ª semana é um direito constitucional das mulheres. A decisão não é vinculatória, mas estabelece um precedente importante. À época e no capítulo em que faço essa discussão no livro Gênero e desigualdades, destaquei o fato de que o voto do ministro Luís Roberto Barroso incorporava categorias e enquadramentos presentes na defesa desse direito pelos movimentos feministas, ressaltando o contexto social e racial da criminalização e seu efeito desigual entre as mulheres. Depois disso, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) com o apoio da Anis – Instituto de Bioética, chegaria ao mesmo STF, em março de 2017, propondo a descriminalização do aborto até a 12ª semana e ressaltando que a criminalização viola o direito constitucional das mulheres à dignidade.

Mas não foi apenas no âmbito do judiciário, em que se apresentam resultados acumulados do trabalho de mulheres e organizações em defesa dos seus direitos, que as mudanças se apresentaram. Em 2015, as reações a um projeto de lei que, se aprovado, comprometeria o atendimento de mulheres que sofreram estupro na rede hospitalar, despertou manifestações pelo direito ao aborto em todo o país. Fizeram parte delas mulheres que têm lutado há décadas por direitos reprodutivos no país, mas também mulheres bastante jovens, que se colocaram com clareza em defesa desse direito.

Sabemos, por inúmeras pesquisas em diferentes partes do mundo, que as mulheres recorrem a abortos e a criminalização apenas torna esse recurso mais arriscado e penoso, submetendo-as a humilhações e levando a mutilações e mesmo à morte. No Brasil, os dados da Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 mostram que meio milhão de mulheres recorreram a um aborto em 2015, o que corresponde a 1.300 mulheres por dia, quase uma mulher por minuto. Essas mulheres são diversas em suas crenças e trajetórias. As barreiras ao direito ao aborto, por outro lado, se definem pela reivindicação de grupos religiosos conservadores de que o Estado incorpore suas crenças como critérios morais, transformando-os em leis. Mesmo quando a linguagem utilizada para expressar essa posição não é religiosa, uma análise fina de suas justificativas mostra que se trata de impor ao conjunto da população códigos morais fundados em sistemas de crenças específicos, rompendo com o respeito à pluralidade de crenças que é característico dos regimes democráticos.

Passo, então, a breves reflexões sobre o que nos mostra a aprovação, em 14 de junho de 2018, da lei que discriminaliza e legaliza o aborto na Câmara dos Deputados Argentina:

A relevância da religião em uma sociedade não impede que se construam direitos de cidadania para as mulheres

Sabíamos disso pelo estudo de casos como os de Itália, Portugal e Espanha e, mais recentemente, o da Irlanda. Na América Latina, o país que primeiro aprovou uma lei que garante o direito ao aborto para as mulheres, o Uruguai, é de certo modo uma exceção no continente, com uma longa tradição de valorização da laicidade, isto é, de fronteiras entre o Estado e as religiões organizadas, com seus sistemas de crença e sua agenda política. Agora, o país de origem do primeiro papa latino-americano dá um passo histórico, mostrando que, também na América Latina, a religiosidade e mesmo a força de instituições religiosas não precisam ser um impedimento para que o corpo político de um país se oriente pelo valor da cidadania e dê relevância à vida das mulheres e ao modo como expressam organizadamente seus interesses. É bom lembrar, ainda, que a aprovação de legislação que garante o direito ao aborto não obriga qualquer mulher a interromper uma gestação e, portanto, não incorre nas crenças e valores morais privados. Apenas garante a autonomia das mulheres para escolher e cria condições para que a realização de um aborto não coloque em risco sua integridade física e psíquica.

Os movimentos feministas argentinos ampliaram o debate sobre aborto ao longo dos anos, de modo a envolver diversos setores da sociedade

Os movimentos feministas têm sido capazes de pautar o debate sobre os direitos das mulheres na Argentina e, em alguns casos, como o do NiUnaMenos, internacionalmente. A campanha pelo aborto legal, seguro e gratuito que adentrou o Congresso argentino foi iniciada há treze anos. Não é restrita a Buenos Aires, o que me parece uma chave importante do avanço conquistado pelas mulheres. Segundo uma das organizadoras do movimento, a socióloga Maria Alicia Gutiérrez, há debates em todas as províncias às terças e sextas, construindo um amplo diálogo. O movimento tem pautado não apenas a descriminalização, mas a garantia de acesso universal, público e gratuito ao aborto, o que se expressa na ideia de legalização. Vale lembrar, ainda, que esta é a sétima vez que um projeto para a descriminalização do aborto é levado ao Congresso argentino desde 1983, mas a primeira em que chega ao plenário para votação. O processo de construção do debate se deu ao longo do tempo, com derrotas, mas também avanços na legitimidade que o tema assumiu, crescentemente, em diferentes círculos políticos. Embora exista maior acolhida da esquerda ao tema, o caso argentino mostra que posições favoráveis podem ser assumidas por parlamentares de diferentes partidos, inclusive por parlamentares religiosos. O ponto central é a compreensão de que a cidadania das mulheres é um valor democrático e que é um dever do Estado garantir sua integridade física e psíquica.

Imagem capturada de vídeo

A crescente legitimidade dos feminismos na esfera pública na América Latina e a questão da representação política das mulheres

Temos diversas evidências de que os feminismos estão mais presentes nas sociedades latino-americanas do que em décadas e contextos anteriores. Podemos relacionar os ganhos de legitimidade da agenda da igualdade de gênero à sua maior incorporação por organismos internacionais a partir dos anos 1980, modificando o equilíbrio no debate transnacional; ao trabalho sistemático de movimentos feministas e de mulheres para expor o caráter patriarcal do Estado e da sociedade, desnaturalizando as hierarquias e demandando responsabilidade do Estado para com as vidas das mulheres e suas necessidades; às profundas transformações na posição relativa das mulheres no acesso à educação e na participação no trabalho remunerado, que permitiram trajetórias e expectativas renovadas em ambientes nos quais persistem desigualdades e violências de gênero.

Algumas das características que se apresentam na Argentina estão presentes também no caso brasileiro e de países que, como o nosso, têm encontrado resistências importantes aos avanços na agenda dos direitos das mulheres, como o Chile. Nesses três países, verifica-se o maior engajamento de mulheres jovens, evidente nas marchas e ocupações estudantis ocorridas ao menos desde 2015. No contexto do debate sobre o projeto agora aprovada na Câmara argentina, estudantes secundaristas favoráveis à aprovação ocuparam escolas públicas em Buenos Aires. Mas há uma diferença importante: enquanto na Argentina as mulheres são, hoje, 38,9% da Câmara dos Deputados, no Brasil essa taxa é de 10,7%. Essa diferença tem relação com a lei de cotas adotada no país vizinho, que, por uma série de razões que não cabe aqui especificar, tem uma efetividade que não existiu, até o momento, na legislação brasileira. Mulheres são sempre favoráveis aos direitos das mulheres? Não. Mas há uma diferença significativa no debate e no quanto ele incorpora problemas que fazem parte do cotidiano das mulheres quando elas estão presentes em quantidade mais significativa no parlamento. São ganhos que podem se expressar em leis e que, pelo que foi possível observar no debate ocorrido na Câmara dos Deputados argentina, modificam os parâmetros e argumentos de que deputados e deputadas lançam mão ao tematizar os direitos das mulheres.

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Está rolando, na TV Boitempo, uma série de vídeos conduzida pela cientista política Flávia Biroli. Trata-se de uma leitura comentada de seu mais novo livro Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. Os três primeiros vídeos já estão no ar! Ao todo serão seis aulas dedicadas a atravessarem, capítulo a capítulo, a leitura dessa obra fundamental para compreender as relações entre feminismo e democracia no Brasil. Boa leitura! Novos vídeos toda semana! Inscreva-se no canal para acompanhar o curso gratuitamente clicando aqui.

Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Escreve mensalmente para o Blog da Boitempo, às sextas.

Foto: David Fernández / EFE

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