Diagnóstico da Dívida Social dos atingidos por Sobradinho é apresentado em Juazeiro, no Vale do São Francisco

Em momento histórico, aproximadamente 200 atingidos pela Barragem de Sobradinho dos oito municípios afetados, participaram no dia 25 de maio da Audiência Pública do Diagnóstico da Dívida Social, Econômica e Cultural dos Atingidos pela Usina Hidrelétrica de Sobradinho/BA, em Juazeiro-Bahia. 

No MAB

Após mais de dois anos de intensa pesquisa documental e de campo, realizada por cerca de 40 pesquisadores, foram finalmente apresentados os dados resultantes do trabalho. Durante o evento, os pesquisadores agradeceram à população dos municípios pesquisados, às entidades e organizações locais, sem os quais não seria possível a realização dos trabalhos.

Foram pesquisados os municípios de Sento Sé, Sobradinho, Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado, Xique-Xique, Itaguaçu da Bahia e Barra, que computam o total de mais de 500.000 mil habitantes em 2017, segundo estimativas do IBGE Cidades.

“Nos dois anos de pesquisa conseguimos gerar uma série de indicadores sociais e econômicos que retratam o que seria a dívida social com essa população. E a Audiência Pública busca dar visibilidade para os resultados e principalmente fazer a validação da pesquisa”, explica Ana Paula Moreira, pesquisadora do IPEA e coordenadora do Diagnóstico. Ela conta que a partir da realização da Audiência foi identificada a necessidade de alguns ajustes, que já estão sendo feitos.

Infraestrutura precária

Foram acessadas 493 localidades, onde 255 foram selecionadas para a etapa quantitativa. Foram aplicados questionários em 3.133 domicílios, representando um universo de quase 11 mil pessoas. Entre os dados, os que mais chamam a atenção estão relacionados à infraestrutura, principalmente o acesso à energia elétrica. Os indicadores apontam que não há acesso à energia em 82 comunidades, espalhadas entre os municípios pesquisados, sendo a maioria em Casa Nova e Sento Sé.

“Esse dado aponta uma violação muito grande, já que essa população foi retirada justamente para a criação de uma hidrelétrica. E ainda podemos ver que dos que tem acesso à energia, muitos recebem só a placa solar, que não dá pra quase nada”, afirma Fernanda Rodrigues, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens-MAB e pesquisadora bolsista do IPEA.

Dos que recebem energia elétrica, quase 10% é proveniente de placas solares, sem ocorrência expressiva em Barra, Itaguaçu, Xique-Xique e Sobradinho. Mais de 80% destes afirmam não ser suficiente o que recebem da energia solar.

Ainda na área da infraestrutura, os dados encontrados de acesso à água preocupam. Quase 14% do total pesquisado tem acesso à água a partir de outras fontes que não rede comum ou poços, em sua maioria é pelo abastecimento de cisternas por caminhão pipa. O número exorbitante de 77% destes entrevistados relata falta de água às vezes ou com frequência. “Não tem água pra agricultura, que hoje é o que mais precisa e que seria muito bom porque poderia a população produzir, plantar para ter o alimento para se alimentar e também vender né, para se ter um meio de vida melhor porque é difícil”, relata uma moradora de Xique-Xique, durante Audiência.

“Essa é outra contradição gerada pela construção da Barragem. Temos aqui na região projetos de irrigação enormes, que usam a água da barragem, mas só beneficiam o agronegócio e o produtor familiar fica sem água nem pra cozinhar”, indigna-se Fernanda.

Conflitos e Regularização fundiária

Durante a realização da etapa qualitativa foram realizadas entrevistas com pessoas, organizações e lideranças que tiveram contato direto com a construção da Barragem de Sobradinho e suas consequências.

Marta Rodrigues, pesquisadora bolsista do IPEA apresentou o resultado desta etapa,  demonstrando como as marcas deixadas pela barragem ainda estão muito presentes e ainda afetam a vida dos atingidos. “Ouvimos histórias de luta e resistência, mas também de muito sofrimento que esse povo vive até hoje”, emociona-se.

Morador de Sento Sé relatou que entre as questões mais fortes está a regularização fundiária, prometida mas muito pouco cumprida pela Chesf. “Eles davam uma declaração e não regularizava a terra de ninguém. Até hoje se você for nesses povoados muitas pessoas vão ter esse documento que a Chesf deu, um termo de doação e não regularizou nada, inclusive essa é uma dívida muito grande que a Chesf tem que é a regularização fundiária”, cobra.

Nos dados quantitativos a questão também foi destaque. Das famílias que afirmaram ter sido atingidas pela construção da Barragem, cerca de 70% das respostas apontam perda de propriedade ou posse da terra e benfeitorias, e perda ou diminuição da renda na ocasião da construção da Barragem.

Ainda hoje, do total de entrevistados 25% não tem sequer a conta de luz ou água como documentação da residência. Daqueles que apresentam alguma documentação, apenas 16% têm a escritura da propriedade.

“Grande parte dos domicílios não são regularizados, no máximo os moradores têm conta de água e luz. Não têm algo que garanta segurança jurídica enquanto propriedade, para acesso a alguns projetos e benefícios, ficam sujeitos à conflitos de terra”, denuncia Ana Paula.

E os conflitos não são poucos. Por sua grande extensão, o município de Casa Nova apresenta muitas destas questões. “Essa grilagem tem tirado o sossego de muitas famílias aqui no município de Casa Nova. Tem uma empresa que disse que comprou 200 mil hectares de terra no município de Casa Nova e que vai atuar. E tem outra empresa que é na região das Cacimbas, a tal de Super Nova que diz que vai fazer o plantio de eucalipto naquela área ali. E muitas outras, então essas empresas vêm preocupando muito as famílias desse município”, exemplifica morador do município.

Juventude, educação e perspectivas

A juventude foi retratada de forma específica nos resultados da pesquisa, principalmente nas questões de trabalho e educação. São quase 27% os que cursam a escola atualmente, em sua imensa maioria estão abaixo dos 25 anos e cursam o ensino fundamental. Ou seja, há muitos jovens ainda foram da escola. Entende-se também que a falta de acesso à energia elétrica afeta principalmente a juventude, uma vez que dificulta os estudos e acesso às tecnologias de apoio, como computador e internet.

Mas foi na questão de trabalho e renda que a realidade dos jovens teve destaque, e não foi bom.  40% dos pesquisados entre 16 e 25 anos estão desempregados, e outros 33% exercem trabalho não remunerado, ou seja, trabalham na propriedade da família ou própria com cuidados usuais e a tentativa de plantio.

A falta de trabalho e oportunidade de geração de renda se confirma quando dados apontam serem pouco menos de 50% daqueles em situação de extrema pobreza ou pobreza os menores de 25 anos, os jovens.

A atingida moradora de Sento Sé, Maria Júlia de Carvalho Souza ajudou na construção da metodologia do Diagnóstico e recebeu a equipe me sua casa para a aplicação do questionário. Ela conta que luta pelos direitos dos atingidos pela Barragem de Sobradinho há anos, e vê na pesquisa uma importante ferramenta. “Essa pesquisa é uma luta nossa. E enquanto eu for viva vou seguir lutando, pelo bem da juventude. Antes de morrer eu quero ver nossos jovens tendo uma cultura, uma coisa pra eles verem que têm futuro”, anseia.

Conquista e a luta segue

No dia 28 de maio, dois dias após a realização da Audiência, foi entregue o Relatório Final para o Ministério da Integração, parceiro e financiador da pesquisa. Como explica Ana Paula, cabe ao MI compreender as necessidades de políticas públicas apontadas a partir do Diagnóstico e reencaminhar aos Ministérios relacionados às demandas.

“Entregaremos todos os produtos da pesquisa ao Ministério da Integração. E eu acredito que o resultado deva ser internalizado dentro da estrutura do Estado, com outros Ministérios relacionados a essa estrutura proposta pelo trabalho de pesquisa realizado”, afirma a pesquisadora.

A partir dos resultados do trabalho, a equipe de pesquisa elaborou um relatório com as proposições de políticas públicas para a região, de acordo com a metodologia do Diagnóstico. Dentre elas, a regularização fundiária, o fomento e projetos de produção à agricultura familiar e a universalização da água e energia elétrica convencional são as principais.

Os presentes participaram do debate em mais de uma hora da chamada “Fila do Povo”, com o microfone aberto. Com muita animação, os presentes aclamaram a pesquisa e referendaram seu resultado. A militante Fernanda comemora, e convida os atingidos para continuar na luta.

“O trabalho do IPEA acabou, mas o nosso ainda está começando. Só com a organização e luta de nós atingidos vamos conseguir tirar do papel estas propostas políticas que estão listadas aqui. Vamos seguir em frente, unido e com coragem”, anima-se.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dois × um =