Junho, cinco anos depois

Os ecos e significados das Jornadas na luta por saúde num país convulsionado

Por Maíra Mathias, do Outra Saúde

No dia 13 de junho de 2013, uma enquete entrou no ar. Promovida por um programa de televisão cujo principal foco são ações policiais contra “bandidos”, a pergunta lançada aos telespectadores era: “você é a favor de protesto com baderna?” Ao vivo, o apresentador José Luiz Datena tentava lidar com os números. O sim disparava, com mais do que o dobro de votos. “Eu votaria no não”, disse. “Eu não sei se as pessoas entenderam”, continuou atônito. “Será que nós formulamos mal a pergunta?”

Também na manhã daquele dia, dois grandes jornais publicaram editoriais em que cobravam do governo estadual e da prefeitura de São Paulo uma atitude em relação às manifestações que aconteciam na capital desde o dia 6 de junho, quando o Movimento Passe Livre, o MPL, deflagrou uma campanha pela redução de 20 centavos nas novas tarifas de ônibus e metrô em vigor desde o início do mês. “É hora de por um ponto final nisso”, decretou a Folha de S. Paulo, afirmando que “como em toda forma de criminalidade” a “impunidade” era o “maior incentivo à reincidência”. O Estadão, por sua vez, cravou: “O fato é que a população quer o fim da baderna – e isso depende do rigor das autoridades.” Todos sabemos como a história termina.

O protesto marcado cinco anos atrás foi alvo de uma repressão policial tão violenta que teve como saldo não o fim do que a imprensa até então caracterizava como “baderna”, mas sua multiplicação. Nos dias que se seguiram, manifestações que já ocorriam também em outras cidades, como Rio e Goiânia se espalharam pelo país inteiro, chegando a levar mais de 1,25 milhão às ruas.

O mote da campanha do MPL foi adaptado. “Não é só por 20 centavos”, diziam cartazes, manifestantes e comentaristas. Um conjunto de demandas sociais, que não estão nada apartadas do drama de mobilidade vivido diariamente por milhões de brasileiros, apareceram. E segundo as pesquisas de opinião feitas na época, a mais expressiva delas era a saúde. Ao mesmo tempo, outras reivindicações surgiram. Muitos começaram a ir às ruas contra a corrupção. O verde e o amarelo coloriram os atos, de onde o vermelho foi sendo condenado (ou escorraçado). Novamente: todos sabemos como a história termina. Mas será que sabemos o que fazer com ela?

A pergunta é pertinente num momento em que muitos analistas consideram que o Sistema Único de Saúde (SUS) corre o risco de perder o que conquistou ao longo dos seus 30 anos de existência. E na medida em que, das Jornadas de Junho para cá, não foram poucos as manifestações e campanhas organizadas por movimentos e entidades ligados organicamente à saúde que, de uma forma ou de outra, ficaram longe (bem longe) de catalisar o sentimento popular revelado espontaneamente em 2013 e mobilizar a sociedade em grande escala. Se a saúde é mesmo tão importante, por que isso acontece? E, principalmente, o que fazer para mudar?

Saúde em primeiro lugar

Embora Junho tenha muitos ‘começos’ possíveis dependendo para onde se olhe, o mais conhecido deles se desenrolou em São Paulo a partir da atuação do MPL, lançado oficialmente em 2005 no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, que começou a atuar no ano seguinte na capital paulista. O MPL se define em seu site como “um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que luta por um transporte público de verdade, gratuito para o conjunto da população e fora da iniciativa privada.” Herdeiro do movimento antiglobalização e resultado direto das revoltas da juventude pelo passe livre estudantil em várias cidades do país no início dos anos 2000, o MPL apostou na base.

“O forte do trabalho de base do MPL eram os secundaristas, principalmente os estudantes de escolas públicas”, resume o psicanalista Daniel Guimarães, que participou da fundação do movimento, de onde saiu oficialmente em 2016. “O MPL estava enraizado na base, os militantes faziam discussões nas escolas municipais, nas escolas estaduais, nas universidades, nos cursinhos populares”, acrescenta Raisa Guimarães, que integrou o MPL São Paulo na época e, hoje, coordena o setorial de saúde do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Além disso, o MPL se articulou com outros movimentos que lutavam por transporte e pelo direito à cidade, se reunindo com eles primeiro em uma Frente e depois em uma Rede Contra o Aumento da Tarifa. A primeira campanha contra a escalada nos preços aconteceu em 2011, quando táticas de bloqueio de vias importantes da cidade já tinham sido utilizadas. “Chega 2013 e as pessoas já estão muito bem esclarecidas do porquê estão ali [na rua], então as ações começam a impactar muito mais”, diz Raisa, e prossegue: “Naquele ano, a conjuntura política favoreceu a mobilização que vimos no Brasil inteiro. Não começou em São Paulo, também não terminou em São Paulo. Tivemos atos importantes em vários estados que, muitas vezes, eram marcados em dias próximos ou no mesmo dia. Foi uma onda de manifestações”.

Em São Paulo, os primeiros atos de Junho reuniram o que até então era uma quantidade razoável de pessoas: 10 mil. Aconteceram nos dias 6, 7 e 11 daquele mês. O divisor de águas foi o banho de sangue do dia 13 de junho. Depois disso, os veículos de comunicação que pediam “a Paulista de volta”, cobrando mais truculência da PM e da guarda municipal, mudaram de tom. Dezenas de pessoas ficaram feridas, entre elas, jornalistas e cinegrafistas. Além disso, os atos eram transmitidos ao vivo por um coletivo de ativistas, a hoje muito conhecida Mídia Ninja, de modo que as pessoas em casa puderam ver sem tantas mediações o que acontecia nas ruas.

Em 17 de junho, dois militantes do MPL foram ao Roda Viva, programa da TV Cultura. Havia manifestação marcado para aquele dia. Reuniu nada menos do que 1 milhão de pessoas. No dia seguinte, outro ato cercou a sede da Prefeitura de São Paulo. Naquele momento, os protestos já se desenrolavam em dezenas de cidades e algumas delas – Cuiabá, Porto Alegre, Recife e João Pessoa – anunciaram a redução das tarifas.

O exemplo foi seguido no dia 19 de junho pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT) e pelo ex-governador e atual presidenciável pelo PSDB Geraldo Alckmin. Juntos, eles anunciaram que voltariam atrás, reduzindo o preço de R$ 3,20 para R$ 3. A reivindicação pelos 20 centavos foi atendida.

Mas os protestos não pararam, nem em São Paulo, nem Brasil afora. Uma pesquisa do Datafolha, divulgada no dia 21 de junho, ouviu os residentes da capital paulista. E para 66% deles, as manifestações deveriam continuar mesmo após o anúncio de Haddad e Alckmin (antes o índice era de 93%). A saúde foi a razão mais citada para continuar nas ruas, com impressionantes 40% das menções espontâneas, seguida por educação (20%), corrupção (17%), “melhoria de tudo” (11%) e segurança (8%).

A pesquisa revelou alguns detalhes do perfil de quem elevou a saúde ao primeiro plano dos protestos: foi mais citada entre as mulheres (42%) do que entre os homens (37%); entre os mais velhos (a partir dos 35 anos, obteve mais de 40%) do que entre os mais jovens (na casa dos 30%); entre os que completaram apenas o ensino fundamental (51%) e o ensino médio (43%), caindo bastante entre aqueles com ensino superior (26%). A tendência continua quando a variável é a renda: entre aqueles que ganhavam até dois salários mínimos (48%) e entre quem ganhava de dois a cinco salários (47%) a saúde era mais importante; e perdia relevância entre quem ganhava entre cinco e dez salários (27%) e acima disso (23%). Era mais importante para os eleitos do PT (49%) do que entre os eleitores do PSDB (38%). A margem de erro é de 4%.

A saúde já tinha sido destaque em uma pesquisa feita pelo Ibope a pedido da Confederação Nacional dos Transportes que ouviu 1.008 pessoas residentes em cem municípios entre os dias 19 e 20 de junho. Foi considerada o principal problema do país por 37% dos entrevistados, à frente de segurança pública/violência (22%), educação (15%), drogas e combate à corrupção (ambas com 6%). Nessa pesquisa, 75% dos entrevistados declararam apoiar as manifestações, embora 94% não tenha participado delas. E 63% estariam dispostos a ir para as ruas. A percepção de 59% das pessoas era de que os atos eram contra o aumento das tarifas de transporte público, enquanto 32% acreditavam que o foco era a corrupção. Maiores investimentos em saúde e educação ocuparam o terceiro lugar, com 31%. A margem de erro é de 2% para mais ou para menos.

Olhando os números, não espanta que tenha vindo da saúde a principal resposta do governo federal às Jornadas. No dia 21 de junho, Dilma Rousseff foi ao vivo em cadeia nacional de rádio e televisão anunciar os pactos com a sociedade. E criou o programa Mais Médicos. Já no dia 25, a Câmara dos Deputados aprovou a destinação de 75% dos royalties do pré-sal para a educação e 25% para a saúde.

Mas os protestos só foram parar no final do mês e o destaque que o combate à corrupção foi ganhando é objeto de debates até hoje. Se há algum consenso em relação a Junho, é o de que não existe consenso em torno dos sentidos das manifestações. Dependendo do analista, será dada maior ou menor ênfase a elementos como a espontaneidade dos atos, o papel das forças políticas de direita e a influência da guinada na linha editorial dos principais veículos da mídia comercial, antes contrários às manifestações, depois simpáticos a elas.

Fato é que a multiplicidade de pautas que emerge à medida que as manifestações ganham volume e escala, assim como a violência da repressão policial, fez de 2013 um divisor de águas na relação dos brasileiros com as ruas. “Junho recolocou as mobilizações de rua no repertório político da sociedade”, define Pablo Ortellado, da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do livro Vinte centavos: a luta contra o aumento (2013). “De 92 em diante, eu conto nos dedos as mobilizações de rua que reuniram mais de 10 mil pessoas em São Paulo. De Junho para cá, o que era o teto virou o piso. Se você não tem 10 mil na rua, sua manifestação é um fracasso. Houve uma inversão do grau de mobilização da sociedade brasileira. E esse ativismo rompeu a sociedade em dois [polos] e gerou esse processo muito instável que a gente tem visto desde então.”

Os fantasmas e os ecos das ruas

As novidades de Junho são muitas. Mas, para o SUS, talvez a boa nova seja a de que saúde esteve na ponta da língua dos manifestantes (mesmo que sob o guarda-chuva dos que diziam que não era só por 20 centavos tenha cabido muita coisa). Uma das questões que ficam é: por que a grita massiva por saúde não aparece explicitamente antes, ou só aparece mais claramente em 2013? E isso remete, mesmo que indiretamente, a uma polêmica antiga, que continua atual: qual é a relação do povo com o SUS? Terá ele participado de verdade da sua criação? Se sim, teria sido o SUS abandonado? E Junho? Mudou isso?

“Ao contrário do que as lideranças do movimento sanitário costumam dizer – que a luta por saúde no Brasil é assombrada pelo fantasma da classe ausente – não é um erro supor que a ampliação do grau de consciência sobre a saúde como direito social venha num crescente de 1988 para cá. As pessoas conhecem o SUS, usam o SUS. Que isso não tenha se manifestado explicitamente como reivindicação para repudiar o subfinanciamento, por exemplo, é uma contingência da luta de classes, não é nada específico do campo da saúde. Se há classe ausente, ela está ausente em outras lutas também, e a gente tem visto que sim”, analisa o historiador André Dantas, da Escola Politécnica da Fiocruz, autor do livro Do socialismo à democracia: tática e estratégia da reforma sanitária brasileira (2017).

Para ele, a criação do SUS é expressão das lutas populares. Mas isso não necessariamente quer dizer que o Sistema é resultado de mobilizações por saúde que tenham arrastado multidões para as ruas. Ele lembra que as manifestações de massa dos períodos anteriores a Junho, como a Passeata dos Cem Mil (1968), as Diretas Já (1983-84) e o movimento dos caras-pintadas (1992), tinham focos específicos: derrubar a ditadura, instituir eleições, apear o presidente do Planalto. Mas que no caso das conquistas da Constituição de 1988, e entre elas o SUS, se estabeleceu uma relação interdependente entre as diversas bandeiras progressistas como educação, reforma agrária e assim por diante. “A tensão social e a luta popular daquele período ajudam a entender o conjunto das conquistas e não apenas a conquista do SUS”, afirma.

Depois de criado, mas mesmo antes disso, houve uma grande aposta na dimensão institucional do SUS, explica. E, com isso, as energias se concentraram na luta pelo poder nas diversas esferas do Estado e foram deixando de lado o trabalho de base em geral, mas também na saúde. “Havia a ideia da produção de um pacto entre classes que permitiria o alcance de um [ponto] ótimo que interessaria a todos e uma compreensão da prática política de adequar-se ao possível, apelando para os interesses de uma suposta burguesia nacional que estaria interessada em construir um projeto de nação. Esta mesma burguesia está engolindo o SUS, com Constituição de 88 e tudo.” E é esse pacto que “explode” em Junho em 2013, analisa Dantas.

Para ele, não dá para dizer nem que as Jornadas foram expressão dos méritos dos governos do Partido dos Trabalhadores, no sentido de que as pessoas teriam ido às ruas reivindicar mais do que já tinham, nem dá para limitar 2013 como a resposta da classe média que viu seu poder aquisitivo minguar. “Foi também. Naquele momento, a ampliação dos gastos privados com planos e seguros privados já era evidente. Na medida em que saúde e educação vêm pressionando os orçamentos dessas famílias, não é estranho que surja esse tipo de reivindicação. Aliás, se a gente vai nas ilhas de excelência do ensino público, vemos esses segmentos reivindicando a escola pública, por mais que também tentem privatizar a sua gestão depois que estão lá dentro. Mas acham muito positivo porque impacta menos os seus rendimentos, os seus salários”, resume. E retoma: “Mas as manifestações agregavam um conjunto de trabalhadores que ganhavam entre um e cinco salários mínimos e viram suas condições de vida piorarem. Toda manifestação de multidão carrega muitos elementos, é multiplamente determinada”.

O historiador acredita que Junho foi uma espécie de rescisão unilateral da população em relação ao pacto (prontamente acompanhada pelo empresariado, para quem o governo perde a capacidade de apaziguar a população). “A cooptação de lideranças e de centrais sindicais, o amortecimento do movimento dos trabalhadores ao longo desse período, cobrou uma conta. E, claro, quando isso acontece, não sai pronto, bonito, com uma consciência clara do que está vivendo e reivindicando”, diz. E, completa, como foi uma manifestação sem muita clareza de caminho político a ser trilhado para dar conta daquelas bandeiras, bastou à multidão reivindicar. Qualificar de que forma, por exemplo, o serviço público de saúde pode dar um salto de qualidade, defende ele, é tarefa dos movimentos que se organizaram naquele momento ou que já estavam organizados antes. “A derrota tem sido que a gente não consegue capitanear.” De toda forma, Dantas considera a explosão desse pacto positiva. “O resultado não é necessariamente agradável. A disputa se mantém, a energia dessa explosão pode ser mais ou menos captada por forças organizadas de esquerda e, também, por forças de direita que nem têm clareza que são exatamente forças de direita, mas que manifestam uma pauta de direita”.

 2015 e a saúde

Depois de Junho e antes do impeachment, abriu-se um período de manifestações contra os megaeventos esportivos: Copa das Confederações e Copa do Mundo. Foram duramente reprimidas. No Rio, 23 militantes foram presos e denunciados como uma “quadrilha”. Respondem a processos criminais até hoje. Os atos procuraram apontar as contradições do país que investia milhões na construção de estádios e ginásios esportivos, enquanto deixava a população a mercê de serviços públicos ruins. As reivindicações eram “escolas e hospitais padrão FIFA”. Raisa Guimarães localiza neste período a ascensão do MTST no cenário nacional. O movimento de luta por moradia organizou uma grande ocupação perto no estádio Itaquerão, em São Paulo. Mas por várias cidades, os comitês populares contra a Copa e as Olimpíadas deram alguma visibilidade ao processo de despejo compulsório de comunidades para dar lugar à infraestrutura ligada aos eventos. Era comum ouvir: “Eu quero Copa, e também cozinha, sala, banheiro…”. Em paralelo, 2014 também foi o ano em que começa a Operação Lava-Jato.

Para Pablo Ortellado, Junho forjou a unidade da sociedade civil em torno de dois conjuntos de pautas: os direitos sociais e o combate à corrupção. “E o que a gente viu foi esses dois tipos de reivindicações se separarem; uma sendo explorada pela esquerda e outra pela direita. Isso tem a ver com o fato de as acusações de corrupção estarem muito centradas no governo federal, que naquele momento era do PT”, avalia. De acordo com ele, isso fez com que a esquerda tomasse uma atitude defensiva em relação à corrupção, jogando a pauta no colo dos movimentos da direita. Mas nada disso se deu em um estalo de dedos. “Agora parece simples, mas não foi. Demorou um ano e meio para isso acontecer”, diz ele.

Os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff realizadas nos dias 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto de 2015 colocaram o bloco do que foi chamado de “nova direita” na rua. E era um bloco nada pequeno. Mas para Ortellado é um erro colar em quem foi aos atos as mesmíssimas posições de quem os convocavam. Enquanto Movimento Brasil Livre (MBL), Vem Pra Rua e Revoltados online apresentavam posições definidas por ele sua colega, a pesquisadora Ester Solano, como “liberal e privatizante”, os manifestantes poderiam pensar diferente. Para testar a hipótese, pescada em páginas na internet, eles coordenaram uma equipe que foi a campo nos atos realizados em abril e agosto daquele ano.

Neste último, aplicaram um questionário em que perguntavam se os manifestantes concordavam que três serviços públicos – saúde, educação e transporte – fossem universais e gratuitos. A escolha não foi casual, mas baseada nas pesquisas feitas em Junho de 2013, quando esses setores apareceram mais frequentemente nas pesquisas de opinião. E 88,6% concordaram plenamente com a afirmação de que o Estado deve prover serviços de saúde para todos os brasileiros e 74,3% de que esses serviços devem ser gratuitos. Na educação, o índice foi ainda maior, cravando respectivamente 92,3% e 86,9%. No transporte, mais baixo (72,10% e 21%). Para os pesquisadores, foi surpreendente que contra “todas as aparências” a opinião dos manifestantes sobre direitos sociais fundamentais era mais fiel ao espírito de Junho do que ao espírito de Adam Smith.

“Que a esquerda tenha entregue essas milhões de pessoas para essa direita que estava tentando converter a insatisfação com a corrupção numa crítica ao papel do Estado, foi uma pena. É um desperdício essa força política ter sido entregue para ser usada contra a outra metade das reivindicações de Junho”, critica Ortellado.

Segundo ele, o racha entre liderança e base pode ser observado sempre que os movimentos anticorrupção fazem campanhas contra os direitos sociais nas redes sociais. E cita como exemplo o período em que a reforma da Previdência esteve em pauta e foi muito defendida nas postagens do MBL. “Eles foram massacrados pela sua base.” Nesse sentido, continua, não é casual que os movimentos tenham feito uma guinada da pauta econômica para uma agenda moral, passando a defender o Escola sem Partido e a vigiar o conteúdo de exposições em museus. “Eles estavam tendo muita dificuldade porque o Brasil defende direitos sociais. Inclusive as pessoas que têm essa pauta anticorrupção muito proeminente defendem os direitos sociais. E as pessoas que defendem os serviços públicos precisam falar com elas também.”

Na leitura de Daniel Guimarães, a pesquisa é “problemática” e não fornece elementos robustos de que há mobilização social progressista entre os manifestantes de 2015. “Essas pesquisas são um tanto positivistas porque você faz uma pergunta e a resposta produz um sentido, mas você não sabe a complexidade da vida daquele sujeito. Me parece que essa defesa da saúde e da educação públicas se expressa por palavras vazias.”

De fato, não fica claro se os brasileiros que foram às ruas para derrubar o governo Dilma topariam rever, por exemplo, a renúncia que têm no seu imposto de renda na compra de planos e procedimentos particulares de saúde. Tampouco é impensável que uma pauta positiva – saúde para todos – possa ser traduzida em uma fórmula na qual não importe ‘muito a cor do gato, desde que ele cace ratos’ (caso da cobertura universal de saúde, bandeira da OMS que, segundo críticos, se baseia no direcionamento de recursos públicos para a compra de um pacote mínimo de serviços privados, uma espécie de seguro pago pelo Estado).

Mesmo assim, Ortellado reforça que há um consenso entre os brasileiros de que o Estado deve prover saúde e educação de qualidade para todos. Embora concorde que é um consenso vago. “E é por esse motivo que os movimentos precisam converter esse sentido de defesa do interesse público, da universalidade – que é positivo – em pactos mais concretos. Porque esse sentimento pode ser manobrado para expressar o seu oposto. Isso é disputa política”, argumenta.

Segundo ele, isso já está acontecendo. E a esquerda está perdendo. Parte desse diagnóstico vem das distinções históricas entre esses grupos políticos no Brasil. “A esquerda tem uma base militante muito grande. São centenas de milhares de pessoas instruídas, convictas, coerentes ideologicamente e que se mobilizam com um sentimento militante. O que acontece na direita não é isso”, compara. Mas apesar de ter um número enxuto de ativistas, é ela que tem, na opinião do pesquisador, conseguido falar com a população em geral, através de sites, redes sociais e campanhas que hoje têm enorme penetração. Já os canais de comunicação da esquerda, garante ele que coordena um projeto que monitora o debate político no meio virtual, falam para convertidos. “A meu ver, esse é o drama da maneira como se constituiu essa separação no pós-Junho. Ao abandonar a pauta anticorrupção, a esquerda perdeu a capacidade de falar com as pessoas comuns. Não só por isso, mas também porque ela fala em jargão e requer muita pureza ideológica das pessoas com quem estabelece diálogo.”

Isso, de acordo com ele, se expressa na incapacidade que esse campo político teve de arrebanhar oposição contra o governo Michel Temer. “A esquerda não teve capacidade de falar com outros setores da sociedade que concordavam na oposição ao governo Temer, e convocá-los para impedir a reforma trabalhista, a PEC do teto dos gastos e mesmo a reforma da Previdência, que não aconteceu. Eu acho que essa sequência de fatos está muito encadeada e se a gente não entender a natureza de Junho e como ela reconfigurou o campo político, a gente não consegue entender a dinâmica que está por trás ou debaixo desses processos políticos no Brasil desde então”, defende.

2013: o ano que não terminou

Se com as manifestações da direita muito da leitura sobre Junho de 2013 já havia se modificado, com o impeachment de Dilma Rousseff passou a prevalecer uma leitura negativa dos acontecimentos. Hoje, Daniel Guimarães considera que talvez seja o caso de diminuir a importância de 2013, por vários motivos. “Não é que o país estivesse sem mobilização social e aí ‘aconteceu’ 2013. As feministas não começaram a luta em 2013, o movimento indígena não começou em 2013, e assim por diante. Nem o MPL. Muitas greves aconteceram”, lembrou. “A minha geração trabalhou muito com essa ideia de novas formas de fazer política, novas formas disso e daquilo, que é um discurso que soa meio publicitário hoje. Acho ruim, esvazia uma história de lutas que estavam acontecendo e obviamente produziram um caldo. Não tinha como acontecer tudo aquilo do nada.”

Para ele, a direita se aproveitou do fato de o MPL ser apartidário e horizontal para desestabilizar politicamente os governos de centro-esquerda. “Eu me pergunto: o que era estranho às lutas que entrou na composição?”, levanta a lebre. Em comparação, lembra, as revoltas da catraca ocorridas em Florianópolis em 2004 e 2005, quando também saíram às ruas pessoas que não eram propriamente militantes e foram no embalo da mobilização, foram muito diferentes do que se viu em Junho. “Em 2013 tinha uma agenda interessada da direita, muito feroz e inteligente, de desestabilização de governos de centro-esquerda. E 2004 e 2005 não tinha isso, então as pessoas que iam paras as ruas com a gente estavam na luta do transporte”. Para ele, a direita que estava nas ruas em 2013 é a mesma direita de 2015. “A gente ficou tentando entender o que estava acontecendo, mas já era o que iria se expressar depois no movimento que vai ser insuflado para o impeachment e assim por diante.”

Daniel se declara cético hoje com 2013 do ponto de vista celebratório. “Eu não acho que aqui em São Paulo teve uma espécie de revolta do precariado. Quando houve uma inflação de pessoas e de pautas, os atos já tinham uma composição de classe não popular. Não é que o saldo tenha sido a união do Brasil contra a roubalheira. O que aconteceu foi a perda de direitos. A juventude que fez parte do Movimento Passe Livre é a mesma que, agora, não tem tanta facilidade para entrar na universidade.” E continua: “A direita conseguiu uma brecha narrativa para poder produzir um movimento de massas a fim de desorganizar a tranquilidade popular ao redor dos governos petistas e estabelecer uma conjuntura favorável a seus projetos. Também havia uma movimentação global ao redor desse tipo de ajuste do capitalismo e talvez, se não fosse Junho, seria de outra forma.”

Já Raisa, que em Junho militava no MPL, considera que em 2013, a rua de fato voltou a ser da esquerda, mas que também virou um campo de disputa. “Como fala o Emicida, se a burguesia conseguiu vender Jesus, porque não ia vender outras coisas?”, brinca. “E aí você tem toda a mídia falando que não era só por 20 centavos, mas contra a corrupção, contra a PEC 37, dentre outras coisas. É um discurso criado ali por quem antes batia nas manifestações e depois da grande truculência do governo do estado, revê isso – e não só revê mas coloca suas próprias pautas”.

Contudo, ela destaca o contexto em que as mobilizações aconteceram: especulação imobiliária, empuxo da população cada vez mais para a periferia da periferia e, com isso, um deslocamento cada vez mais lento. “Beirando o insuportável porque demora em torno de duas horas para chegar ao trabalho; um trabalho provavelmente precário de onde se sai oito, nove, dez horas depois para enfrentar, novamente, duas horas de ônibus até em casa. E ainda por cima, ser obrigado a pagar uma tarifa caríssima para isso. Não é à toa que as pessoas vão se revoltar, tem alguma coisa contida ali”, aponta.

Ela lembra que o MPL, em algumas manifestações, destacava um grupo de militantes para explicar para a população que estava no ponto ou dentro dos ônibus o porquê daquela mobilização. “Em vários momentos, as pessoas saíam do ponto e até desciam dos ônibus para se unir à manifestação. Já entendiam que as pautas eram reivindicação de direitos, e participavam por acharem justas essas reivindicações. Junho abriu um pouco o horizonte das pessoas. E quando tem uma mobilização de professores, elas já não acham tanto que se trata de ‘vagabundos’, muito provavelmente vão discutir mais porque os professores estão mobilizados. Ou porque os caminhoneiros, de uma forma ou de outra, também estão mobilizados e estão em greve. Há hoje um caráter um pouco mais político e mais politizado de rua. Ou que abriu possibilidades para isso, coisa que não existia dez anos atrás”. E conclui: “As pessoas não querem mais ficar em casa, elas vão gritar na rua”.

O que fazer?

A pergunta, simples, não é nada simples de responder. O que a saúde poderia fazer para tentar dialogar com a população desorganizada? E mesmo para organizar essa população? Isso vai ser feito numa luta setorial ou mais ampla? Vai demandar a criação de novos movimentos ligados à saúde? Ou a renovação dos antigos? Ou será que, independente disso, o caminho é pegar carona nos movimentos que já existem? As dúvidas são muitas.

“Eu não tenho uma fórmula mágica. Mas o que a gente fazia no MPL, lá atrás? Nosso discurso era de que sem transporte, a pessoa não vai conseguir chegar até o hospital. Então o hospital não é público de verdade. Se as pessoas não puderem se deslocar pela cidade para poder encontrar amigos, estudar, visitar lugares que não conhecem, isso significa que a cidade não é delas de verdade. Era uma tentativa de localizar a tarifa zero como um meio e não um fim. Um direito que dá acesso aos outros direitos”, relembra Daniel. Então será que tem que dissolver a saúde em todas as outras bandeiras? “Eu sinceramente não sei”, responde.

Segundo ele, talvez um caminho seja criar os 20 centavos da saúde. “Uma coisa pontual, que depois puxa outras”, sugere, para logo ponderar: “Mas, sinceramente, fizemos os 20 centavos e perdemos tudo: a tarifa hoje custa R$ 4, um preço muito maior do que os R$ 3,20 anunciados em 2 de junho. Estamos longe da tarifa zero.”

O fato é que dos três temas sociais que ganharam destaque em Junho, a saúde, que parecia ser em alguns momentos a demanda mais importante, foi a única que, até agora, não se converteu em mobilização que rompa a bolha do setor. “Não sei dizer exatamente o porquê e o que poderia ser feito para mudar isso”, reflete Pablo Ortellado, que destaca que depois de Junho, que surge da mobilização pelo transporte público, a educação viu surgir um movimento grande, que se espalhou por todo o país e ganhou a simpatia popular. Ele se refere, é claro, às ocupações de escolas que, na sua opinião, podem ser uma pista importante.

“Acho que tem um pouco a ver com explorar um episódio muito grave e construir uma mobilização legítima. Os jovens ocuparam escolas, centenas. E tinham muita legitimidade para fazê-lo. Isso gerou um movimento de solidariedade, vimos pessoas que moravam no entorno se ofereceram para levar alimentos, dar aulas, etc.” Houve, portanto, um senso de oportunidade. “Eu acho que o movimento de saúde ainda não conseguiu encontrar uma estratégia parecida. Um caso muito escandaloso e uma atuação que chamasse atenção para aquilo, e pudesse fazer com que a sociedade fosse junto com o movimento”, sugere.

Algo parecido, embora em menor escala, aconteceu no Rio de Janeiro em 2017, quando o prefeito da capital, Marcelo Crivella (PRB), anunciou o fechamento de unidades básicas de saúde e serviços de emergência. “O movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos surgiu de uma organização um tanto espontânea e tem conseguido produzir uma crítica dura das OSs [Organizações Sociais] por exemplo, que são parte do modelo de privatização do SUS. Tem conseguido produzir organização das categorias, a ponto de enfermeiros, psicólogos e até médicos terem feito greve. E esse movimento está muito marcado por um trabalho de base que é também espontâneo, que é dos profissionais na conversa diária com os usuários”, aponta André Dantas.

Há algum tempo, os olhos se voltam para a atuação do MTST que tem conseguido mobilizar uma população historicamente difícil, a urbana. “O que o MTST faz é não esquecer da base. Não ter esquecido de mobilizar quem de fato tem que ser mobilizado. A esquerda decidiu parar de mobilizar 14 anos atrás quando, na verdade, precisava ser o contrário. O MTST nunca esqueceu de que sem base, não existe movimento social. E ganhou a dimensão que tem hoje porque não deixou de estar com o pé no barro, como a gente fala”, afirma Raisa.

Para a coordenadora de saúde do movimento, que também atua no SUS como técnica de enfermagem, há uma descrença da sociedade com os conselhos de saúde, que se institucionalizaram ou “viraram curral eleitoral” em alguns lugares e instâncias. E com os grandes sindicatos. “E aí é óbvio que vai ser difícil mobilizar, porque você não tem apoio popular. Tem um distanciamento”, reflete.

André Dantas pondera que, embora o diagnóstico da necessidade de fazer trabalho de base seja praticamente um lugar comum, o desafio que ele representa está longe de ser superado. Também para o historiador, que milita no Fórum de Saúde do Rio de Janeiro, ligado à Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, e é membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o movimento sanitário desaprendeu a fazer trabalho de base, a conversar com as pessoas, a ir para a porta da fábrica e do serviço e até a produzir panfleto.

“A gente produz panfleto que ninguém lê. E se lê, não entende. Tem um divórcio que não é só da academia com a população. É das instituições que são instrumentos de luta dos trabalhadores na educação para a luta. Isso é elementar, e mesmo sendo elementar a gente não tem feito. E me parece que não tem outro jeito. A história nos autoriza a dizer que toda luta potente de trabalhadores contra a degradação das suas condições de vida sempre precisou e sempre teve na base a organização popular, o aprendizado da luta, o trabalho de formação de consciência. Não há episódio na história em que, pela institucionalidade, sem movimento de base, tenha se produzido conquistas emancipatórias. As conquistas são sempre produtos de luta. Então, que a gente precisa voltar a produzir trabalho de base, não há dúvida.”

Para ele, também é fundamental que a esquerda faça autocrítica para “superar as ilusões” produzidas nos últimos 30 anos. “De como a gente poderia se relacionar com a burguesia, de como a gente deveria canalizar as nossas bandeiras para o aparelho de Estado, de como a gente deveria escantear o trabalho de base para investir na conquista das eleições nas diferentes esferas; sem uma autocrítica sobre isso, a tendência é continuar a dar com os burros n’água. Porque isso não é pouca coisa, institui uma forma de fazer política que gasta as energias da classe trabalhadora que são finitas dentro de determinado período. E quando qualquer abalo da ordem internacional, diminuição da margem de lucro das burguesias que não são nacionais, mas que atuam aqui, acontece, isso basta para que essas conquistas que se inscreveram na letra da lei, mas que não foram acompanhadas da manutenção de um trabalho de base que as sustentasse, reflua. É o que a gente está vendo agora. Com Constituição e tudo, o desmonte do SUS está em curso”. E não parece que essa autocrítica esteja na ordem do dia, observa ele. “Para os operadores políticos majoritários desse período, dentro e fora da saúde, parece que basta que haja um ajuste nas táticas para manter a mesma pegada”.

Raisa Guimarães defende que os movimentos setoriais têm de sair do seu lugar de conforto. “E fazer aquilo que, por exemplo, o movimento de saúde fez nos anos 70 e 80: estar junto na periferia. As pessoas gostam muito do seu consultório, do seu gabinete, da sua sala de aula, de falar nos seus congressos, e não de estar ali acompanhando a população, reivindicando o direito daquela comunidade falar, e não só de falar, mas de construir. Acho que essa ideia de construir foi quase que exterminada”, critica. Estudantes ou universidades poderiam desenvolver estágios não só em unidades de saúde, mas como trabalho de extensão em ocupações, assentamentos, comunidades. E entrar em contato com os movimentos sociais que já estão inseridos nesses territórios, aponta.

“E é justamente isso que as pessoas da saúde não gostam de fazer porque quebra certos protocolos acadêmicos e profissionais”, diz. E questiona: “Mas a questão é até onde o seu conhecimento acadêmico, sindical, chega na periferia? Ou chega na população? Ou constrói mobilização? Porque podemos discutir bastante o corte de verbas nas farmácias populares, por exemplo. Mas o quanto disso chega na população que tem que ser mobilizada para que os cortes não aconteçam?”.

Com isso em mente, diz ela, o MTST foi se enraizando mais nos territórios. E, para além das ocupações, hoje vê necessidade em participar da mobilização nos bairros junto com outros movimentos e lideranças. Raisa dá como exemplo uma ação no Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo, onde a prefeitura anunciou o fechamento de uma unidade básica de saúde. Essa disputa, diz ela, conseguiu mobilizar não só as pessoas da ocupação, mas também a comunidade. “A população está ali para ser mobilizada, para mobilizar. Você chega em qualquer território, em qualquer lugar, da ocupação à paróquia, e as pessoas vão falar de saúde. As mulheres especialmente, porque são intimadas a cuidar, levam para consulta. E os idosos”, destaca. O que não dá é para mobilizar a distância, pondera.

“Porque não é imediato. A discussão de saúde, para mobilizar, precisa de escuta também. É onde o calo aperta e onde a academia não gosta de estar. Onde muitos dos sindicatos também não gostam de apostar. Se a gente pensar que saúde é moradia, é transporte, é assistência social, é educação, a saúde enquanto movimento teria que estar enraizada em todos esses lugares. E não está. Se você tem uma população mobilizada, com suas principais referências mobilizadas, grupos de profissionais da assistência que querem debater saúde aí, sim, vai conseguir fazer grandes mobilizações de saúde: em saúde, em transporte, em creche, em moradia…”. Apesar de tudo, ela vê uma sinalização de mudança. “Acho que as pessoas também não estão gostando muito do rumo das coisas engessadas tomaram. Vamos voltar à base”, convida.

 

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