Como as mulheres argentinas venceram

Direito ao aborto: um país majoritariamente católico começou a rever seus preconceitos. O voto no Senado permanece incerto. Mas a mobilização cresce, embalada pelo movimento “Ni Una a Menos”

Por Emily Stewart | Tradução: Inês Castilho, em Outras Palavras

Em toda a América Latina, 97% das mulheres vivem em países com leis restritivas ao aborto. A Câmara de Deputados da Argentina votou nesta quinta-feira uma lei que descriminalizaria o aborto até as primeiras 14 semanas de gravidez. A votação foi apertada, de 129 a 125, e é improvável que a lei passe pelo Senado. Contudo, ativistas veem o fato de que a questão está sendo votada como um grande passo para os direitos das mulheres no país e em toda a região.

A Câmara começou na quarta-feira a debater se permite o aborto seguro, legal e gratuito para as mulheres, em todo o país, até as primeiras 14 semanas de gravidez. O assunto é parte de um movimento pelos direitos das mulheres mais amplo, o “Ni Una Menos” – “Nem Uma a Menos” –, contra a violência às mulheres, incluindo assassinato.

Os debates que antecederam a votação duraram a noite inteira, até a manhã de quinta-feira, já que muitos parlamentares – vários dos quais receberam ameaças de grupos religiosos – mantinham-se indecisos. A votação a favor da lei, apertada, aconteceu no final da manhã desta quinta.

Apesar do cenário favorável, é pouco provável que a lei passe no Senado, mais conservador. Mas, aconteça o que acontecer, os proponentes da descriminalização do aborto na Argentina afirmam que o simples fato de o tema estar sendo debatido é uma grande vitória e um sinal de que há mais por vir.

“Mesmo que a lei não passe, é um passo enorme para a legalização do aborto”, disse Emma Conn, escritora argentina no site de notícias argentinas em língua inglesa the Bubble. [As ativistas] esperam que ela passe, mas todo mundo notou que essa foi uma mudança cultural significativa, de modo que mesmo sendo rejeitada a questão não irá desaparecer.”

O aborto é ilegal na Argentina, com exceção dos casos de estupro ou quando a vida ou saúde da mulher estão em risco. Mas mesmo nessas circunstâncias é difícil conseguir fazer de fato um aborto, especialmente em províncias onde não há diretrizes sobre como o serviço de saúde deve proceder ou o que os profissionais devem fazer, segundo a lei, disse Shena Cavallo, da Coalizão Internacional de Saúde da Mulher (International Women’s Health Coalition). E muitos profissionais ainda se recusam a praticar o aborto, mesmo em casos em que é legal. “Na situação atual, tudo depende realmente da sorte. Depende do lugar de onde você mora e do tipo de profissional com que se depara ”, disse Shena.

Contudo, embora seja ilegal, não significa que o aborto seja incomum na Argentina. De acordo com o ministério da Saúde do país, são praticados 500 mil abortos clandestinos ou ilegais a cada ano, numa população de aproximadamente 44 milhões de pessoas. Segundo as mesmas estatísticas, das 245 mortes maternas ocorridas na Argentina em 2016, 43 foram causadas por aborto, o que o torna uma das maiores causas de mortalidade materna.

Seis projetos de lei pela descriminalização do aborto foram apresentados ao Congresso da Argentina nos últimos 13 anos, com pouco sucesso. Mas um novo impulso fez com que os parlamentares retomassem o debate. Grupos ativistas como a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito e Católicas pelo Direito de Decidir na Argentina foram capazes de incluir a causa no movimento Ni Una Menos, voltado às causas mais amplas dos direitos das mulheres no país.

O movimento Ni Una Menos, iniciado em 2015, é uma campanha contra a violência de gênero. Começou depois de notícias na mídia sobre mulheres assassinadas por seus maridos, namorados ou companheiros, e espalhou-se por vários países latino-americanos. A Argentina tem uma história de manifestações de protesto públicas – não é incomum que grandes ruas das cidades e estradas do país sejam fechadas durante horas ou dias por causa de protestos – e foram feitas muitas marchas do Ni Uma Menos.

Essa nova onda do feminismo incentivou mais mulheres a falar sobre uma variedade de questões, inclusive do aborto. As ativistas veem o aborto ilegal como mais uma forma de opressão às mulheres. “Se a lei não passar, as mulheres argentinas estarão presas ao atual status quo, em que são forçadas a submeter-se a abortos ilegais e inseguros que colocam suas vidas e saúde em risco”, disse José Miguel Vivanco, diretor norte-americano do Observatório de Direitos Humanos (Human Rights Watch), que testemunhou diante do Congresso Argentino em maio, argumentando que a descriminalização do aborto é um imperativo de saúde pública e direitos humanos.

O presidente da Argentina, Mauricio Macri, convocou o Congresso a debater a questão do aborto no início deste ano, apesar da oposição da Igreja Católica, ainda uma grande força na Argentina e em toda a América Latina. Macri não se manifestou a favor da lei e vem tentando manter distância do debate, encorajando seu partido a manter a discussão em termos laicos. Ele disse que não vetará a lei caso ela passe.

“O grande fator tem sido, sem dúvida, o movimento de mulheres e o modo como ele vem se tornando uma poderosa força de mudança na Argentina —  e a demanda por aborto seguro, legal e gratuito está no centro do movimento”, disse Shena Cavallo, da Coalizão Internacional pela Saúde das Mulheres. “O patriarcado penetra e impregna toda a sociedade argentina. Há uma ligação entre violência contra as mulheres e a proibição de serviços de interrupção da gravidez seguros e legais.”

O debate politico não é fácil – ou dividido por linhas partidárias.

O futuro da lei atualmente em debate no Congresso argentino é tênue. O debate na Câmara dos Deputados durou 23 horas antes da votação, e a lei enfrenta uma batalha ainda mais dura no Senado, mais conservador. A organização argentina Economia Feminista está mantendo a contagem dos votos sim, não e indecisos em ambas as Casas, e ela indica que os senadores que planejam rejeitar a lei são quase o dobro dos que pretendem aprová-la. (Cerca de dez senadores ainda estão indecisos.)

Conn, da Bubble, disse que os parlamentares não estão votando segundo os partidos, e que estão sendo liberados pelos líderes a “votar com sua consciência”. Membros conservadores parecem mais inclinados a votar contra a lei do que os progressistas, mas não há uma separação clara. “É difícil delimitar os votos pelas linhas partidárias”, disse ela.

O presidente Macri (que na quarta-feira revelou ter um cisto benigno no pâncreas) manteve distância da questão, embora tenha encorajado o debate e prometido não vetar a lei, caso seja aprovada. As próximas eleições presidenciais serão em 2019, e ele está tentando não correr riscos. Cristina Kirchner, a ex-presidente argentina, também oscilou, disse Conn, às vezes parecendo ser a favor, às vezes contra a lei. “Tudo é parte de um jogo político”, disse. “Todo mundo está sendo meio cuidadoso.”

O papa Francisco, que é argentino, não disse nada explicitamente sobre a lei, mas tem sido claro sobre sua posição contrária ao aborto, disse Tamara Taraciuk Broner, pesquisadora sênior do Observatório de Direitos Humanos. Ele adotou um documento, em março de 2018 – no meio do debate na Argentina sobre a apresentação da lei de aborto no Congresso –, dizendo que a oposição da Igreja Católica ao aborto precisa ser “clara, firme e apaixonada”.

Dada a influência da Igreja Católica na Argentina e em toda a América Latina, se a lei de aborto passar, isso será um “passo significativo” para a região, disse Vivanco, do Observatório de Direitos Humanos. “Um país como a Argentina adotar uma lei progressista como a que está sendo considerada, logo depois da recente reforma no Chile, que acabou com a proibição absoluta do aborto, mandaria uma forte mensagem de que atores chave da região estão se movendo na mesma direção de outras democracias desenvolvidas pelo mundo”, disse Vivanco.

As ativistas acreditam que só o fato de haver a votação no Congresso já é uma vitória, independentemente de seu resultado, e um sinal de que haverá mais avanço pela frente. “Vencemos. Seja qual for o resultado”, tuitou a jornalista e defensora argentina dos direitos das mulheres Mariana Carbajal, referindo-se aos lenços verdes usados pelas mulheres do movimento de direitos pró-aborto. “A onda verde é inexorável. Nós abrimos as consciências. E não há caminho de volta.”

O movimento de apoio à legalização do aborto pretende continuar na ofensiva atual e aproveitar a atual cobertura da mídia, boa parte da qual posicionou-se no campo dos direitos pró-aborto. “Muita gente se abriu para a demanda por aborto seguro e legal”, disse Cavallo. “Essa tornou-se também uma demanda ligada à cidadania e aos direitos humanos na Argentina, e pensamos que o processo pode continuar a avançar.”

Mesmo que a lei passe e o presidente Macri a assine, isso não significa que a questão do acesso ao aborto estará resolvida. A percepção da sociedade mais ampla pode estar mudando, mas ainda há um sistema de crenças católicas profundamente enraizado, em especial fora de Buenos Aires e em províncias mais rurais, ao norte e oeste do país. “Se [a lei] passar, garantir que seja implementada e aplicada para todas as mulheres será uma outra batalha”, disse Conn.

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