Servidores divulgaram carta e participaram de audiência, denunciando “ingerências político-partidárias” na Funai e uso dos direitos indígenas como “moeda de troca” pelo governo
por Tiago Miotto, em Cimi
Servidores da Funai mobilizados divulgaram uma carta em que denunciam o loteamento político da Fundação Nacional do Índio (Funai) e o desmonte da política indigenista no governo Temer. A carta foi divulgada durante uma audiência pública na Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara, na qual foi lida pela deputada Érika Kokay (PT-DF).
“O órgão indigenista vem sofrendo com ingerências político-partidárias por meio de nomeações sem critérios técnicos nem comprometimento com as questões indígenas”, denunciam os servidores na carta (leia abaixo), para quem “o atual Governo vem sistematicamente utilizando os direitos indígenas como moeda de troca”.
Os servidores e servidoras denunciam o “clima de tensão e insegurança” que vivem no órgão e afirmam que “a imposição de medidas restritivas aos direitos indígenas” tem comprometido a sua possibilidade de atuação em defesa dos povos indígenas.
O ato dos servidores e servidoras da Funai vem na esteira da denúncia que culminou na exoneração do Diretor de Administração e Gestão da Funai, Francisco José Nunes Ferreira, após a divulgação de áudios que apontam o favorecimento de empresas por meio de compra irregular de equipamentos. Indicado pelo PSC, o caso de Ferreira é citado na carta assinada pelos servidores do órgão indigenista e apoiado por mais de 40 organizações.
Insegurança e “aberração jurídica”
A influência de partidos – especialmente o PSC – e da própria bancada ruralista sobre as nomeações de diretores e da própria presidência da Funai ao longo do governo Temer é conhecida. No último ano, dois presidentes foram indicados ao órgão e caíram por pressão destes setores – um deles, Toninho Costa, chegou a afirmar que foi exonerado “por ser defensor da causa indígena diante de um ministro ruralista”.
Participante da mesa da audiência pública, a servidora da Funai e presidente do INA – Indigenistas Associados, Andrea Prado, lembrou da declaração do então ministro de Justiça – pasta à qual a Funai é vinculada – do governo Temer, o ruralista Osmar Serraglio (PMDB-PR), quando afirmou que “a Funai é do PSC, do deputado André Moura”.
“Viemos aqui para dizer que não, a Funai é um órgão de estado, a Funai é do cidadão brasileiro, a Funai é dos povos indígenas”, criticou Andrea.
Ela também citou os problemas e a insegurança que servidores e servidoras da Funai vem enfrentando no dia-a-dia do órgão, em função das ingerências políticas em favor de inimigos dos povos indígenas e, no último ano, em função também do Parecer 001/2017 da AGU.
O Parecer da AGU, chamado por indígenas de “Parecer antidemarcação”, obriga toda a administração pública federal a aplicar parâmetros restritivos às demarcações de terras indígenas, entre eles o marco temporal, que Andrea caracterizou como uma “aberração jurídica”.
“Se o servidor da Funai hoje não corresponder ao Parecer 001 da AGU, estamos passíveis de processos administrativos e disciplinares. Vivemos sob permanente estado de insegurança e incerteza. Se nós cumprirmos o que a Constituição nos determina, podemos sofrer processos”
“Se o servidor da Funai hoje não corresponder em seus pareceres técnicos ao Parecer 001 da AGU, estamos possíveis e passíveis de processos administrativos e disciplinares”, explicou a indigenista. “Nós vivemos sob permanente estado de insegurança e incerteza, porque se nós cumprirmos o que a Constituição nos determina, podemos ser penalizados”.
“Agora vemos a fragilidade da nossa Funai”, afirmou Hosana Puruborá, uma das lideranças indígenas de Rondônia que acompanharam a audiência pública. “Projetos que já estavam prontos para serem demarcados são devolvidos para a Funai, isso é uma tristeza muito grande para nós”.
Certificados de cacique
A servidora denunciou a tentativa de interferência de políticos em processos demarcatórios e as consequências das indicações políticas de pessoas sem qualquer compromisso com os povos indígenas também nas coordenações regionais da Funai – 37 ao todo. Como exemplo, citou o caso da Coordenação Regional de Campo Grande (MS), comandada atualmente por Paulo Rios Júnior, indicado pelo atual secretário de governo de Temer, Carlos Marun (PMDB-MS).
O coordenador vem fornecendo “certificados de cacique”, nos quais reconhece a suposta legitimidade de indígenas como lideranças de suas terras e aldeias.
“Isso é uma afronta à autonomia dos povos indígenas. O estatuto da Funai diz que devemos respeitar suas formas próprias de organização social. Jamais caberá ao Estado brasileiro certificar quem é uma liderança indígena”, denunciou Andrea.
Retrocesso socioambiental
A audiência pública na CLP da Câmara teve como tema “os riscos de retrocesso ambiental com a possibilidade de nomeação política do novo presidente do ICMBio”. A proposta, que acabou incorporando as denúncias sobre a Funai, demonstra uma situação generalizada de ingerência política.
Servidores do ICMBio, Ibama e de outros órgãos ambientais federais participaram da atividade, denunciando o loteamento de cargos e diretorias para pessoas sem nenhum compromisso ou relação com a área.
Uma das motivações para a atividade foi recente indicação de Cairo Tavares, do PROS, para a presidência do ICMBio, órgão responsável pela gestão de 333 Unidades de Conservação em todo o Brasil, sendo parte delas incidentes sobre terras indígenas. Sócio de uma empresa de comércio de bebidas, o indicado político não tinha nenhuma experiência na área socioambiental. Depois da pressão de servidores, entidades ambientais e de um abaixo-assinado que reuniu mais de 37 mil assinaturas, o governo Temer recuou e desistiu da nomeação.
Leia a carta dos servidores da Funai:
CARTA PÚBLICA CONTRA O LOTEAMENTO POLÍTICO DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO E O DESMONTE DA POLÍTICA INDIGENISTA
Os servidores mobilizados da Fundação Nacional do Índio (Funai), com apoio das organizações indicadas ao final desta carta, vêm a público se posicionar contra o sucateamento e loteamento político do órgão, a desvalorização do corpo técnico e o desmonte da política indigenista por meio de sucessivos cortes orçamentários, agravados no atual Governo. Diante da repercussão de reportagem do jornal O Estado de S. Paulo (acesse aqui), reveladora de áudios que sugerem a tentativa de favorecimento de empresas por meio da aquisição irregular de equipamentos, e da subsequente exoneração do até então Diretor de Administração e Gestão da Funai (acesse notícia aqui) vimos repudiar a ingerência de interesses alheios ao indigenismo na instituição e exigir a indicação, para assumir a Diretoria em questão, de um(a) servidor(a) do próprio quadro técnico efetivo do órgão ou pessoa com expertise técnica compatível com as atribuições do cargo.
Não é de hoje que o loteamento político dos cargos da Funai compromete a missão primordial da instituição, qual seja, a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas no Brasil (acesse notícia aqui). Como extensamente noticiado na mídia, o Partido Social Cristão (PSC), sobretudo na figura do líder do governo no Congresso Nacional, dep. André Moura (acesse notícia aqui), tem sido o mais influente na indicação de cargos de chefia. A Funai, no entanto, converteu-se em espaço de manifestação de interesses de parlamentares também de outros partidos, notadamente os de integrantes da chamada bancada ruralista, de cuja pressão resultou a mais recente troca de Presidente do órgão (acesse notícia aqui) e que já havia sido responsável pela indicação da Diretora de Proteção Territorial (acesse notícia aqui). Também nas Coordenações Regionais da Funai (CRs) têm ocorrido nomeações de chefias por indicação de políticos, em detrimento de aspectos técnicos. O órgão indigenista, responsável por promover e proteger os direitos de mais de 300 povos indígenas, cujos territórios abrangem aproximadamente 14% do território nacional, vem sofrendo com ingerências político-partidárias por meio de nomeações sem critérios técnicos nem comprometimento com as questões indígenas. Chama a atenção, neste cenário, a nomeação como assessor da presidência do ex-gerente de licitações e contratos da Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A., vinculada ao Ministério dos Transportes, exonerado da estatal em 2011, após denúncias de fraudes em obras do trecho tocantinense da ferrovia Norte-Sul (acesse notícias aqui e aqui).
Além da distribuição de cargos em órgãos responsáveis por promover direitos socioambientais, como também vem ocorrendo no ICMBio (acesse notícia aqui), o atual Governo vem sistematicamente utilizando os direitos indígenas como moeda de troca. Entre as mais recentes manobras estão: a aprovação do Parecer nº 001/2017/AGU pelo Presidente Michel Temer, que ameaça as demarcações de terras indígenas (acesse notícia aqui); ataques ao componente indígena do licenciamento ambiental, especialmente evidenciados nos projetos de construção de hidrelétricas e no caso da linha de transmissão de energia Manaus-Boa Vista, que atravessaria a terra indígena Waimiri Atroari (acesse reportagens a aqui e aqui); e a ameaça de adoção de medidas que permitam a exploração de recursos naturais e o arrendamento em terras indígenas.
Combinados, esses fatores – a utilização da instituição para interesses político-partidários e a imposição de medidas restritivas aos direitos indígenas – têm gerado um clima de tensão e insegurança entre os servidores do órgão e comprometido a sua atuação. Abusos de autoridade, perseguições e desvios de finalidade têm sido parte da rotina de trabalho e impedem a seriedade e continuidade da política indigenista, prejudicando, enfim, e sobretudo, os povos originários. Ao denunciar a recorrência de tais interferências sobre a instituição e a política indigenista, os servidores mobilizados da Funai exigem a reversão de medidas contrárias aos direitos constitucionais dos povos indígenas – principalmente o Parecer nº 001/2017/AGU –, o fortalecimento do corpo técnico com a aprovação de um plano de carreira, bem como a aplicação de critérios técnicos, desvinculados de interesses clientelistas, nas nomeações de cargos de chefia – a começar pela vacante Diretoria de Administração e Gestão.
Servidores Mobilizados da Funai
Apoiam esta carta:
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
Amaaic – Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre
Anaí – Associação Nacional de Ação Indigenista
Amim – Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão
Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Apina – Conselho das Aldeias Wajãpi
Arpinsul – Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul
Ascema Nacional – Associação Nacional dos Servidores Ambientais
Asibama/DF – Associação dos Servidores do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis no Distrito Federal
Associação Indígena Pariri
Associação de Mulheres Wakoborun
Cimi – Conselho Indigenista Missionário
Coiab – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
CGY – Comissão Guarani Yvyrupá
Conselho Indígena do Distrito Federal
CPI-AC – Comissão Pró-Índio do Acre
CPI-SP – Comissão Pró-Índio de São Paulo
CTI – Centro de Trabalho Indigenista
Esocite.br – Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias
Faor – Fórum da Amazônia Oriental
Fepipa – Federação dos Povos Indígenas do Pará
Foirn – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
Formad – Fórum mato-grossense de Meio Ambiente e desenvolvimento
Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social
Fórum Teles Pires
Greenpeace
HAY – Hutukara Associação Yanomami
IEB – Instituto Internacional de Educação do Brasil
Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
INA – Indigenistas Associados
Índio É Nós
ISA – Instituto Socioambiental
ISPN – Instituto Sociedade, População e Natureza
Justiça Global
Laboratório de Antropologias da T/terra
Maré – Movimento Amplo de Resistência Contra o Desmonte da Política Socioambiental Museu de Arqueologia e Etnologia – UFSC
Opan – Operação Amazônia Nativa
Opiac – Organização dos Professores Indígenas do Acre
RCA – Rede de Cooperação Amazônica
SAB – Sociedade de Arqueologia Brasileira
SINDSEP-DF – Sindicato de Trabalhadores dos Servidores Públicos do DF
Terra de Direitos
Umiab – União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira
Nós, brasileiros, precisamos apoiar essa causa. É muito grave o que esse governo ilegítimo está fazendo contra o povo indígena.
Marilene Borralho Ferreira Leforestier, ex-funcionária da Funai(1970 -1979).