Cartas sobre a mesa, por Vladimir Safatle

“Projeto é transformar a República em Estado tutelado pelas Forças Armadas”, escreve Vladimir Safatle, filósofo e professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo), em artigo publicado por Folha de S. Paulo

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Cada dia que passa, fica mais evidente qual é o verdadeiro jogo que está em curso no campo político brasileiro.

Ele passa, atualmente, pela nova configuração do lugar das Forças Armadas na vida brasileira. Ou seja, o jogo consiste a terminar o período de pactos e de democracia aparente da Nova República por meio da transferência do poder político real para as Forças Armadas. Mais importante do que as eleições presidenciais, o verdadeiro deslocamento do poder já terá ocorrido e ele não passa pelos clássicos atores políticos.

Hoje, inexiste agenda importante de governo que não passe pelas Forças Armadas. Greve de caminhoneiros, decomposição do governo carioca, fragilização do governo por casos de corrupção. Em todos esses casos, as Forças Armadas são convocadas ou ouvidas.

Em um governo que aparelhou todo o corpo gerencial do Estado, os únicos grupos intocados foram as armas e o corpo diplomático.

Um governo pateticamente desprovido de base social esconde sua impotência apelando sistematicamente à sombra dos fuzis. Isso explica porque, nos últimos tempos, o comandante das Forças Armadas, general Villas Bôas, age como um verdadeiro candidato a presidente, inundando o espaço público com pretensas análises sobre a crise brasileira, sobre os medos atávicos a respeito de segurança e seus desafios.

No entanto, seria importante lembrar que, em uma democracia, quem tem as mãos no fuzil cala a boca. Nenhum oficial fala em democracia porque falar, quando você tem o monopólio das armas, equivale a quebrar o espaço de fala livre.

Pois é claro que o monopólio das armas não é um atributo político, mas é o que quebra simplesmente a existência do político. Daí vem a sabedoria da democracia: tirar a palavra de quem tem as armas.

Isso tudo desapareceu do Brasil. Temos agora, em nosso país, um chefe de Forças Armadas que recebe candidatos a presidente da República, tira fotos com candidatos e diz que, a partir de agora, todos os candidatos serão “ouvidos”.

Mesmo que escutar fardado um candidato nunca foi exatamente “escutar”.

Além disso, somos, ao contrário, obrigados a escutar até mesmo professores degradados de filosofia dizendo que as Forças Armadas na política respondem pelo desejo de “redenção moral” do Brasil.

De fato, o Brasil é um país singular. Aqui, adoradores de torturadores, de estupradores e ocultadores de cadáveres passam por redentores morais.

Redenção moral feita por aqueles que corromperam o Estado, que alimentaram regiamente as empreiteiras que sempre corromperam o Estado e por presidentes que comandavam assassinatos contra opositores.

Como vemos, uma bela moralidade e que diz muito, na verdade, a respeito da moralidade de seus enunciadores.

Tudo isso demonstra que o verdadeiro projeto consiste em transformar a República brasileira em um Estado tutelado pelas Forças Armadas.

Essa seria uma saída muito menos onerosa que um golpe militar clássico. O Brasil sempre foi capaz de criar situações aparentemente contraditórias e funcionar sob contradições.

Criamos uma ditadura que continha ilhas nas quais se podia comprar livros de Marx e ouvir música de protesto.

Agora, criaremos uma democracia de farsa assumida na qual o verdadeiro poder não estará nem no Poder Executivo, nem no Legislativo, nem no Judiciário.

O lado cômico dessa história é que estamos, neste momento, todos discutindo eleições da qual a grande maioria da população já desertou. Com Lula preso, o “candidato” mais popular são os votos brancos e nulos.

No entanto, o destino do poder em nossa sociedade está a ser decidido em outra esfera, de um forma que nada tem a ver sequer com noções elementares de democracia formal.

 

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