Audiência Pública em Nova Iguaçu envia encaminhamentos sobre violações de Direitos Humanos na Baixada para ALERJ

por Fabio Leon, em RioOnWatch

A música “Mãe”, do rapper Emicida, ecoa infinitamente no som ambiente do confortável auditório do Centro de Formação da Diocese de Nova Iguaçu (Cenfor NI). Dali a pouco, o conforto dará lugar a uma sensação de incômodo, tristeza e indignação. A exibição do documentário Nossos Mortos Têm Voz, produzido pela Quiprocó Filmes e apresentado pelo Fórum Grita Baixada e Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, além do apoio de Misereor e Fundo Brasil de Direitos Humanos, traz essas sensações que são atravessadas pela crueza de sua narrativa. Ele retrata a luta de mães e mulheres da Baixada Fluminense, que tiveram seus filhos e familiares assassinados brutalmente por agentes públicos de segurança. O relato dolorido das mães, acompanhado das contextualizações históricas e judiciárias de especialistas entrevistados no filme, como o professor de sociologia José Claudio Souza Alves, da UFFRJ, e o advogado João Tancredo, problematizam, respectivamente, as trajetórias de chacinas, milicianos, grupos de extermínio e desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense. O impacto resulta em silêncio durante a exibição. Após, as palmas vão emitindo aplausos tímidos e, em segundos, libertos com entusiasmo ao seu final.

O filme ajudou a fomentar a discussão, enquanto instrumento de denúncia, estimulando a construção da Audiência Pública Violações de Direitos Humanos na Baixada Fluminense, especificamente nos eixos de segurança e violência, na última segunda-feira, 25 de junho. A iniciativa foi articulada entre a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), através do mandato do deputado estadual fluminense Flávio Serafini, o coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araújo, e o membro da coordenação ampliada do Fórum Grita Baixada, Fransérgio Goulart. Integrante da Comissão, Serafini já havia intercedido politicamente como um dos integrante da campanha “Liberte Nosso Sagrado”–que gerou um premiado documentário sobre a campanha–que denuncia a dessacralização de peças litúrgicas provenientes de religiões de matriz africana. O documentário Liberte Nosso Sagrado também pertence a dupla de cineastas Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, que assinam a autoria de Nossos Mortos Têm Voz.

Contando com mais de 100 participantes, representando quase 50 movimentos, entidades e instituições da Baixada Fluminense, município do Rio, além de outras regiões do Estado, a audiência se propôs como um evento no qual a população pautasse o poder público de forma a acolher as demandas reivindicadas por esses grupos para a redução de violações, e para transformar estas demandas em efetivas políticas públicas contra a violência de Estado.

O coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araujo,  disse que a região é uma síntese do próprio país, fazendo uma alusão ao relatório Um Brasil Dentro do Brasil Pede Socorro que perfaz a história de violência na Baixada nos últimos 50 anos, assim como um minucioso levantamento de dados sobre as letalidades violentas em várias categorias. “A Baixada é invisibilizada de tal forma que vivemos sob o âmbito de uma cultura de violência que existe há muito tempo, mas a mídia nos ignora, só noticiando o que lhe é conveniente. Talvez por sermos a Baixada da baixa escolaridade, dos pobres que pegam transporte público deficiente, dos negros e nordestinos, essa invisibilidade tente se ‘justificar’, por mais que discordemos dela”, disse Adriano.

Percival Tavares, membro da Pastoral Operária e da coordenação ampliada do Fórum Grita Baixada, disse que uma das preocupações de quem convive diariamente com a violência na Baixada está no  temor de quem deveria zelar pela segurança pública da população, não importa sua classe social ou cor. “Nós não sabemos, nas delegacias, quem está acolhendo as denúncias, quem vai estar à frente das investigações. O que deveria ser uma prestação de serviço do poder público, acaba se transformando em risco para a população pobre, negra e periférica da Baixada”, disse Percival.

Ramon Chaves, do recém-criado Centro de Pesquisas do Ministério Público, disse que as demandas surgidas na audiência pública serviriam de aprendizado, especialmente no que se refere às dinâmicas de um dos temas tratados no documentário e cuja problemática está em vias de ser investigada pelo órgão: os desaparecimentos forçados. “É preciso pesquisar, fomentar um banco de dados, avaliar quais os impactos que esse fenômeno traz para a Baixada e o Rio de Janeiro como um todo. Pois todas as sub-notificações (registros não oficiais) dos desaparecidos ocorrem em lugares violentos e as famílias não realizam os registros, muitas vezes por medo e pelas circunstâncias ocasionadas pelos desaparecimentos”, explica Ramon. Uma outra faceta cruel desse cenário, explicada pelo pesquisador, diz respeito aos chamados “corpos não reclamados”, assim chamados por não haver a devida identificação dos cadáveres. “Já chegamos a contabilizar mais de 500 corpos nessa condição. As famílias sequer sabem que seus parentes estão mortos”, diz Ramon.

A ativista Fabi Silva, do movimento Apadrinhando Um Sorriso e também representando a Ouvidoria da Defensoria Pública de Duque de Caxias, endossou o quanto a questão dos desaparecimentos forçados é grave em regiões periféricas. Relatou que a DP local havia adentrado as comunidades da Mangueirinha em Duque de Caxias e Chapadão na Pavuna para acolher denúncias de violações provocadas por policiais militares. “O lugar de escuta e fala dessas e outras favelas precisa ser respeitado. No momento que entramos nesses territórios, já sabíamos de quatro mortes e quatro desaparecidos nos últimos meses.”, disse Fabi.

As demandas surgidas ao final da audiência  

O assessor parlamentar do Deputado Estadual Flavio Serafini, Jorge Santana, leu os encaminhamentos das instituições presentes na audiência. O próximo passo é uma reunião conjunta entre Fórum Grita Baixada, a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense e a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ para sistematizar ações futuras através do Legislativo e Executivo em função das demandas apresentadas. Vejam algumas delas:

  1. Investigação e localização de cemitérios clandestinos, bem como a identificação e devido fim das ossadas encontradas.
  2. Investigar denúncias de maus tratos à população carcerária feminina, dentre eles estupros e falta de higiene das detentas.
  3. Aprovação de projeto de lei para a criação de Centros de Atendimento Psicológico a Vítimas da Violência de Estado de forma permanente.
  4. Mais rigor na investigação de assassinatos de integrantes da comunidade LGBT.
  5. Monitorar e aplicar a devida punição a quem cometer ataques a terreiros e outros locais de prática de religiões de matriz africana.

O documentário Nossos Mortos Têm Voz também foi exibido, no início de junho, em outra audiência pública intitulada Violência do Estado contra Jovens Pobres e Negros, pela Comissão de Participação Legislativa da Câmara dos Deputados, em Brasília, da qual também participaram o Fórum Grita Baixada, o Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu e a Rede de Mães Vítimas e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada.

Instituições participantes na audiência Violações de Direitos Humanos na Baixada Fluminense: Visão Mundial, Cecom, MJPop, Escola Municipal Áurea Pires da Gama, Escola Municipal Iramar, Avicres, ONG Defesa, Paróquia São Franscisco de Assis (Queimados), Casa Fluminense, Coletivo Minas da Baixada, Aduff,  Setorial LGBT PSOL Baixada Fluminense, Secretaria Municipal de Saúde de Nilópolis, CTBR, Aspas, Ecocidade, Conseg, ISER, UFRRJ, UFF, Ministério Público do Rio de Janeiro, Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Quiprocó Filmes, Movimento Apadrinhe Um Sorriso, AMAR Rede de Mães, OAB, Prefeitura de Queimados, Ocupa Nova Iguaçu, Secretaria Estadual de Cultura, Pastoral Operária, Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, Ação Cidadania Nova Iguaçu, GCS, Fórum de Mulheres de Mesquita, LSR PSOL, Portal de Notícias Eu Rio, Movimento Negro Unificado (Duque de Caxias), Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência na Baixada, Rede Anarquista de Nova Iguaçu, CEDIM, NAPAVE, Conselho Regional de Psicologia, COMPIR (Mesquita), SEMAS (Prefeitura de Nova Iguaçu), SEMPS (Mesquita), Movimento Cultura de Paz/ CDHNI, Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, Pastoral da Diversidade de Nova Iguaçu, além de jornalistas, assistentes sociais, pedagogos.

Matéria escrita por Fabio Leon e produzida por parceria entre RioOnWatch e o Fórum Grita Baixada. Fabio Leon é jornalista e ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada. O Fórum Grita Baixada é um fórum de pessoas e instituições articuladas em torno da Baixada Fluminense, tendo como foco o desenvolvimento de estratégias, o fomento de articulações e a incidência política no campo da segurança pública, entendida como elemento para a cidadania e efetivação do direito à cidade. Siga o Fórum Grita Baixada pelo Facebook aqui.

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