Em plena Copa do Mundo de Futebol, reconheço que há no mundo muita expectativa e até admiração pelos feitos da seleção brasileira. Algo bom, pois o esporte ainda dá um certo sentido de unidade e compartilhamento coletivo como povo. Mais do que isso: faz nos sentirmos parte de um mundo belo em sua diversidade de povos e estilos de viver. Sem dúvida, um refresco na conjuntura política e econômica em que estamos mergulhados nos últimos anos. De toda forma, o futebol pouco ou nada nos pode ajudar diante do monumental retrocesso em termos de princípios e valores de convivência democrática como nosso piso básico comum, com sistemático esforço de destruição dos sonhos e imaginários mobilizadores para que outro Brasil seja possível. Estamos totalmente esgarçados em termos de tecido social, com falta de pão, teto, salário e dignidade para muitos, com ódios, intolerâncias e violências se alastrando como um virulento câncer, parecendo incapazes diante da barbárie que se impôs. Apesar das eleições gerais logo ali, predomina um perigoso descrédito na política, nos partidos, nos políticos.
Por sinal, a vitória brasileira no futebol diante do México deixou em plano secundário a monumental vitória eleitoral conquistada pela centro-esquerda mexicana nas eleições de domingo, com maioria de aproximadamente dois terços no Congresso Nacional, vários governos regionais e, sobretudo, a eleição de López Obrador como presidente e líder legitimado pelo seu próprio povo. A vitória se deu com uma agenda democrática reformista, na contramão dos retrocessos recentes em toda a América Latina. Claro, levando em conta as interdependências mundiais criadas pelo predomínio das corporações econômicas e financeiras do capitalismo globalizado, permeadas com as grandes mudanças e conflitos geopolíticos pela perda relativa de poder dos EUA, reformas democráticas num país, por mais importante que ele seja, vão exigir muito esforço e determinação. Mas trazem alguma esperança e podem inspirar movimentos semelhantes pelo mundo afora.
Algo que na nossa conjuntura não estamos discutindo suficientemente são, exatamente, os desafios num mundo de interdependências. Estou me referindo à necessidade de considerar o mundo atual, com sua estrutura, dinâmica e diversidade, junto com as possibilidades contidas nos limites de nosso bem comum, o Planeta Terra, como uma variável fundamental na construção política de outros caminhos para nós junto com outros povos. Precisamos nos pensar como parte do mundo com conceitos, análises e propostas que vão muito além da estreita visão nacionalista soberana dos “donos de gado e de gente”. Para ser claro, é sim necessário desnudar e combater o esforço de entreguismo descarado e submisso que está sendo proposto e praticado pelas nossas classes dominantes e pelo ilegítimo e fraco governo que impuseram pelo golpe ao país. Mas, para mudar, precisamos nos libertar do colonialismo internalizado que nos faz pensar como única possibilidade alternativa seja um soberano capitalismo nacional, quando ele mesmo é parte do problema que temos pela frente.
Sei que estou levantando pontos polêmicos. O título desta minha crônica lembra um artigo que escrevi ainda no espírito do Fórum Social Mundial, de outro mundo possível, na primeira década de 2000. Devemos, sim, nos perguntar sobre o Brasil que queremos, mas fazendo ao mesmo tempo a pergunta sobre qual Brasil o mundo precisa da gente. Penso que nos deve mover uma perspectiva de mudança de paradigma como a grande visão estratégica. Só ela pode nos dar luz para o que fazer no aqui e agora para começar o caminho da mudança. Tenho clareza que a gente nunca escolhe as condições históricas para a ação política, pois estamos falando de lutas em meio de estruturas e relações com muitas determinações e contradições. Com afirma Gramsci, a luta é forjada pela nossa vontade – que depende de nós – em combinação com as circunstâncias históricas dadas pela situação e pelo confronto com a vontade de outros. Trata-se de forjar-se como bloco de forças, combinando vontade e arguta análise histórica dos momentos, mas sempre com perspectiva estratégica de longo alcance, para não ser conduzido por outros blocos e ficar refém deles nas conjunturas imediatas.
Assim, posto o problema, o desafio de nossa reconstrução como bloco de forças democrático-populares, tendo em vista a transformação da sociedade brasileira, não tem como ser enfrentado sem a construção de um pensamento estratégico que nos leve a rever criticamente análises e propostas recentes sobre desenvolvimento e alianças, bem como a compreender os limites e as possibilidades do Planeta e do mundo histórico que compartimos. O segredo para fazer isto para além das “fronteiras nacionais”, que nos são dadas como condições de ação política hoje, é lutar a partir do nosso endereço e de nosso tempo, com uma visão estratégica que não se submete aos limites dados pelos dominadores de sempre.
Isto parece um tanto abstrato. Um desafio é torná-lo inteligível, capaz de dialogar com o bom senso contido no senso comum (novamente Gramsci). A prioridade é construir correntes de pensamento no seio da sociedade civil pelo debate, pela comunicação, pela educação popular e cidadã. Trata-se de disputar hegemonia de pensamento, de modo de ver e fazer, construindo movimentos irresistíveis em sua capacidade de soldar o diverso em torno a sonhos, ideias e propostas de outro mundo, aqui e em todo o planeta. O exemplo da ativista Marielle, nossa mártir cidadã, mostra o potencial do que estou falando. Os direitos iguais na diferença são poderoso cimento agregador. A segregação e machismo são desagregadores no seio da sociedade.
Termino levantando uma questão de fundo, espinhosa, muito presente na conjuntura e central no debate que, penso, devemos fazer. Trata-se do petróleo e dos seus derivados. O que isto tem a ver com a democracia e o futuro? Eu diria: tudo. Mas depende do modo como encaramos o desafio energético que nós enfrentamos e que o mundo todo enfrenta. A greve dos caminhoneiros deveria servir de alerta sobre o quanto o tema é explosivo. Precisamos de petróleo e a sociedade precisa controlar a sua exploração e uso. Isto é claro. Mas não é só. O petróleo é energia fóssil, causa principal da mudança climática. Como parte do mundo, podemos explorar o petróleo como nossa tábua de salvação num modelo de desenvolvimento dependente de energia fóssil e condenado pelo seu impacto? Sem contar que o petróleo e tudo mais que está nos tornando dependentes economicamente do extrativismo não passam de uma “maldição”, um modelo não sustentável. Como fontes não renováveis, acabam antes do que a gente espera. Não seria melhor conservar para gerações futuras, apostando em sua capacidade de descobrir usos mais nobres do petróleo do que queimar e poluir?
Mas a lista de questões espinhosas e quentes, que nos dividem até, é grande. Na perspectiva de que tais perguntas me parecem necessárias para construir um outro Brasil, não temos como fugir delas. A cidadania planetária espera que sejamos capazes de fazer isto, sem medo. Afinal, se o Fórum Social Mundial nasceu aqui é porque temos um campo fértil no seio da sociedade civil brasileira para contribuir decisivamente para um mundo melhor para todas e todos.
Rio, 03/07/2018
*Sociólogo, do Ibase.