MPF defende manutenção da sentença que condenou responsáveis por trabalho escravo na Usina Gameleira

Mais de 400 trabalhadores foram submetidos a jornadas exaustivas e condições degradantes em Mato Grosso

Procuradoria Regional da República da 1ª Região

Para o Ministério Público Federal, deve ser mantida a decisão que condenou Eduardo de Queiroz Monteiro e Antônio Francisco Custódio por reduzirem cerca de 400 trabalhadores a condição análoga à de escravos, na Destilaria Gameleira, em Confresa/MT. Eles ocupavam os cargos de diretor e gerente administrativo da empresa, respectivamente, e recorreram ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região para reverter a sentença que estabeleceu uma pena de 12 anos de reclusão e 360 dias-multa a cada um.

Segundo a denúncia julgada parcialmente procedente pela 5ª Vara Federal de Mato Grosso, os dois envolvidos associaram-se, em abril ou maio de 2005, com a finalidade de aliciar e trazer mais de 400 trabalhadores do estado do Maranhão para o corte de cana nas lavouras da Gameleira. Depois, submeteram os lavradores a trabalhos forçados, jornadas exaustivas e condições degradantes, condutas essas que, segundo o juiz João Moreira Pessoa de Azambuja, individualmente consideradas, já seriam suficientes para caracterizar o delito previsto no artigo 149 do Código Penal.

A denúncia descreve jornadas diárias de 7h às 17h, acomodações sem ventilação, espaço físico ou limpeza adequados e acidentes de trabalho por conta de o facão “escapar” e acertar os pés dos trabalhadores que, sem dinheiro para comprar botas, começavam a safra laborando descalços. “Não há dúvidas da existência de diversos acidentes de trabalho no cotidiano da Usina Gameleira devido à ausência de proteção mínima aos obreiros e, por conseguinte, da condição degradante à qual se submetiam os trabalhadores, tendo em vista que eram deliberadamente expostos a toda sorte de riscos durante a colheita”, estabelece a sentença.

O juiz também nota a má qualidade da alimentação fornecida, que estragava por vários fatores: o forte calor, o tempo excessivo entre o momento de produção da comida e da efetiva entrega aos trabalhadores e a grande distância percorrida pelos obreiros entre as frentes de trabalho e os locais onde eram deixadas as marmitas, aumentando o tempo de exposição dos alimentos ao ambiente. “Nas imagens é possível ver alguns trabalhadores sentados no chão ou sobre a cana cortada, outros de pé, porém todos, sem exceção, expostos ao sol, sem nenhum tipo de abrigo para que se alimentassem com o mínimo de conforto possível, situação próxima a um estado animalesco”, diz.

Sobre os alojamentos, foi verificado calor excessivo dentro dos dormitórios, ausência de camas suficientes para todos os obreiros, permissividade da empresa em deixar que trabalhadores utilizassem redes para dormir a falta de ventilação e higiene adequadas. Fotos evidenciam ambiente escuro, insalubre e de baixo nível de limpeza onde os trabalhadores tinham que ficar, caso optassem pelos alojamentos da usina.

Para o Ministério Público Federal, ficaram configurados a autoria, materialidade e dolo do delito do artigo 149 do Código Penal, devendo ser mantida a condenação nos termos da sentença. “A tolerância quanto aos fatores degradantes e insalubres a que expostos os obreiros somente contribui para a permanência do grave quadro de trabalho indigno vislumbrado no Brasil”, escreve a procuradora regional da República Michele Rangel Vollstedt Bastos.

Segundo ela, não se deve tachar de normalidade a ocorrência dos inúmeros acidentes de trabalho descritos na frente de trabalho por comparação aos ainda elevados números ocorrentes na lavoura de cana-de-açúcar brasileira. “Ou seja, a ausência de concessão adequada de Equipamentos de Proteção Individual – EPI – no caso concreto não pode ser mascarada pela prática generalizada na produção sucroalcooleira”, diz.

Sobre os alojamentos, conforme explica, ficaram demonstradas pelas fotos e relatos as condições insalubres e degradantes sofridas pelos trabalhadores. “E nem se diga que a utilização das acomodações não era obrigatória, podendo o lavrador recolher-se na cidade, pois sabe-se que a condição de migrante em território nacional – justamente pela falta de condições de sustento próprio – aliada à situação de pobreza da condição do trabalhador braçal, torna impossível a utilização de outra estalagem que não seja aquela fornecida pelo empregador”, sustenta.

Ela transcreve trecho do Roteiro de Atuação Contra Escravidão Contemporânea, elaboradora pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, em trabalho coordenado pela atual procuradora-geral da República, Raquel Dodge: “Assim, os casos de escravidão contemporânea estão, em regra, relacionados à miséria, à baixa instrução e à falta de oportunidade das vítimas, sendo os locais de exploração da mão de obra escrava diversos e distantes do local de origem dos trabalhadores, pois é justamente em razão da busca destes trabalhadores por melhores condições de vida que se dá a exploração pelo empregador e seus prepostos”.

O MPF também afirma que houve correta valoração da prova e correta dosimetria da pena, rebatendo os argumentos da defesa. Para a procuradora, as fotos que constam nos autos são claras e transparecem as acomodações insalubres, sem ventilação, trabalhadores lacerados pela falta de equipamento adequado, o acondicionamento impróprio das refeições, dentre outras condições degradantes. Além disso, os depoimentos de obreiros corroboram as constatações visuais.

Domínio do fato – Em relação à desvinculação do diretor da usina do crime, o MPF entende que o pedido não deve ser atendido, uma vez que não se está diante de condenação por pura e simples ocupação de cargo de direção. De acordo com a procuradora, a sentença delimitou o notório conhecimento da operação da Destilaria Gameleira pelo diretor, que reconheceu em Juízo as acomodações e condições oferecidas aos empregados. Há depoimento, inclusive, ligando o recorrente em questão às contratações, fato que serve para a concorrência para o crime.

Ela também traz lição sobre a teoria do domínio do fato, extraída igualmente do Roteiro de Atuação Contra Escravidão Contemporânea: “a eventualidade de um dos réus vir a delegar a intermediário qualquer a orientação das tarefas dos trabalhadores escravizados não retira a sua responsabilidade por ter decidido contratar pessoas para trabalharem em seu nome e na sua propriedade, sem prover condições dignas de moradia, segurança, higiene, alimentação, água e transporte”.

Apelação 0020643-29.2010.4.01.3600

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