Por trás do MárciaGate

O caso envolvendo o prefeito do Rio de Janeiro descortina práticas de clientelismo que ferem a universalidade e equidade do SUS

Maíra Mathias – EPSJV/Fiocruz

No dia 4 de julho, o Palácio da Cidade, localizado no arborizado bairro de Botafogo na zona sul do Rio de Janeiro, foi palco de uma reunião que ameaçou causar o impeachment do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Batizado de “Café da Comunhão”, o encontro não estava na agenda oficial do chefe do Executivo municipal. Disparado por WhatsApp, o convite foi direcionado a pastores e lideranças religiosas evangélica e recomendava que levassem “por escrito” reivindicações. Chegada a hora marcada, cerca de 250 pessoas se reuniram no salão do prédio. Uma assessora da prefeitura pediu, então, que os presentes não usassem o celular. Tinha chegado o momento. O prefeito começou a falar.

“Na prefeitura, estamos fazendo mutirão da catarata. A Márcia trabalha comigo há 15 anos. Ela conhece os diretores de toda a rede federal – Ipanema, Lagoa, Andaraí, Bonsucesso, do Fundão… Ela conhece os diretores de todos os hospitais da rede municipal, que eu já apresentei a ela, que já vieram e almoçaram conosco, de maneira que ela me representa em todos esses setores: Miguel Couto, Souza Aguiar, Lourenço, Salgado, Piedade e por aí afora. Nós estamos fazendo o mutirão da catarata. Contratei 15 mil cirurgias até o final do ano. Então se os irmãos tiverem alguém na igreja com problema de catarata, se os irmãos conhecerem alguém, por favor falem com a Márcia. É só conversar com a Márcia que ela vai anotar, vai encaminhar, e daqui a uma semana ou duas eles estão operando”, garantiu Crivella, que também ofereceu facilidades na obtenção de um procedimento para varizes (“uma benção”, definiu ele) e da cirurgia de vasectomia. “É muito importante os irmãos ficarem com o telefone da Márcia ou do Marquinhos porque às vezes ocorre um imprevisto”, recomendou, ressaltando a importância de que os presentes tivessem “um canal” a que pudessem recorrer “num momento de emergência”.

Por fim, depois de oferecer outras facilidades, como ajuda para que templos religiosos consigam mais rapidez no processo de isenção do IPTU (imposto que representa uma das principais fontes de arrecadação das prefeituras brasileiras) e instalação de quebra-molas na frente das igrejas, Crivella ainda sugeriu que seus convidados procurassem Douglas Marques Correia, conhecido como “Manassés”, coordenador da Política Antidrogas da secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos. “Se tiverem problema, tem o Manassés, o nosso companheiro, que cuida das pessoas com problema de vícios em drogas. Contem conosco, este Palácio está aberto a vocês. Qualquer coisa, nossa equipe está aqui. Se as igrejas estiverem bem, crescendo, quantas tragédias não vamos evitar?”, disse.

O episódio é pedagógico porque mostra a violação e, portanto, a importância de alguns princípios que orientam o Sistema Único de Saúde (SUS). A maioria das pessoas talvez nunca tenha ouvido falar em  universalidade e equidade,  mas eles estão presentes, mesmo que de maneira indireta, nas milhares de manifestações de indignação popular desde que o caso veio à tona, no dia 6 de julho, com a publicação de uma reportagem no jornal O Globo.

“Foi muito estarrecedor o que a sociedade escutou”, destaca Cíntia Teixeira, do movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos, criado no ano passado quando a gestão Crivella anunciou o fechamento de unidades e serviços e que, desde então, vem denunciando a situação do sistema de saúde na capital e a parcela de responsabilidade dos três níveis de governo. “Um dos princípios do SUS é a universalidade e as propostas do prefeito ferem de morte esse princípio que prevê que todos e todas sejam atendidos de maneira igual, independentemente da renda, da cor, do gênero, da crença religiosa, do local onde moram, do sobrenome…”, enumera.

E fere, continua ela, porque, no caso em questão, discrimina setores da sociedade que, por vinculação a uma igreja ou através da mediação de um líder religioso, passam a ter acesso a cirurgias de maneira diferenciada, mais rápida e sem seguir nenhum dos critérios do sistema de centrais de regulação das filas no Sistema Único, conhecido pela sigla Sisreg. “Crivella demonstrou que usa a máquina pública a seu favor e em favor dos interesses privados de grupos religiosos a ele vinculados. Com isso, passa por cima do Estado laico que está inscrito na Constituição brasileira e das regras que existem na administração pública. As pessoas podem até não saber citar que leis são essas, mas se revoltam porque está disseminado no senso comum que é errado privilegiar um segmento da sociedade em detrimento do conjunto”, destaca Cíntia.

Já a equidade é um princípio importante, que tem tudo a ver com o episódio do Café da Comunhão. Isso porque, ao oferecer contatos no interior da máquina pública para que pessoas que não estão inscritas na fila da regulação passem na frente de quem está, o resultado pode não se ‘resumir’ a uma grande injustiça com aqueles que estão esperando, muitas vezes, há anos por procedimentos e cirurgias. Pode, efetivamente, resultar em mortes ou deterioração das condições de saúde dos usuários lesados pela manobra. “Os mais graves precisam ser operados primeiro, é uma questão de equidade”, resume o conselheiro municipal de saúde Alexandre Telles, diretor do Sindicato dos Médicos do Município do Rio de Janeiro.

Falta transparência

O órgão de controle social debateu na terça (10) os problemas de falta de transparência na regulação e ouviu vários usuários que relataram a longa espera por procedimentos, todos revoltados com a possibilidade de serem prejudicados por “ligações da Márcia”, conta Telles. O conselho solicitou à secretaria municipal de Saúde a relação de todos aqueles que têm acesso ao Sisreg. “Queremos saber o nome, a formação profissional e a lotação dos reguladores. Há denúncias de que até políticos estariam fazendo essa regulação dentro do sistema”, diz. Ele explica que todos os médicos têm um cadastro de solicitante. E que há outro cadastro (ou login), de regulador. “Neste caso, o regulado normalmente é um médico por unidade, o responsável técnico. E há procedimentos que são regulados no nível central, na Prefeitura. A gente quer saber quem são os usuários que estão regulando desde a ponta até o nível central”, diz.

No dia 5 de julho, o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (TCM) votou um relatório elaborado pelos técnicos do órgão de controle que tratava justamente sobre o Sisreg. A auditoria, que aconteceu no ano passado, revelou dois problemas. De um lado, um problema histórico – a falta de eficiência na relação entre marcação e solicitações – continuou. Em 2012, o Tribunal já havia apontado a falha e feito recomendações ao município para sanar o problema. Não adiantou e entre 2012 e 2017, a fila aumento 92% e a eficiência caiu de 72% para 57%. Mas a grande questão, que revela a um só tempo que faltam universalidade e equidade no manejo do Sisreg, diz respeito ao número de procedimentos realizados fora da fila do SUS. É que ao cruzar informações da produção dos hospitais com os dados do Sisreg, o TCM concluiu que “parcela significativa da produção é efetuada à margem da regulação, inviabilizando um controle mais efetivo e fragilizando a transparência do processo”.

A auditoria dá um exemplo bastante significativo: 48 páginas do relatório são dedicadas a analisar irregularidades nas consultas feitas pela Clínica Nova Guanabara, unidade particular conveniada ao SUS de propriedade do pai e da irmã do subsecretário de Saúde Complementar da secretaria municipal de Saúde, João Araújo. Das 28.890 vagas oferecidas pela clínica no Sisreg, apenas 3.910 foram agendadas, o que coloca em suspeição 24.980 vagas. Enquanto isso, 1.860 pessoas continuavam na fila de atendimento.

“O que tem na produção das unidades não condiz com os dados do Sisreg, temos uma clara evidência de transposição de fila”, diz Telles. Por isso, o Conselho Municipal de Saúde decidiu criar uma comissão para propor medidas de transparência para a fila. “Queremos que o usuário possa acessar sua posição na fila através de um portal. Lógico que essa posição não é uma questão de data de inserção. O que vai dizer se uma pessoa vai ser operada antes ou não é isso, mas principalmente o histórico clínico dos pacientes. Mas o poder público precisa dar transparência a essa fila. É um desafio. Ou ter mecanismos para cruzar melhor as informações dos hospitais com as informações do Sisreg para garantir que não estão sendo operadas pessoas que vêm de fora do sistema de regulação”, afirma o conselheiro.

“Hoje temos certeza de que o sistema está vulnerável. A auditoria mostra claramente que dois terços dos serviços prestados pela prefeitura não passam pelo Sisreg e estão vulneráveis para qualquer Márcia da vida utilizar”, destaca o vereador Paulo Pinheiro. “Precisamos descobrir o que está acontecendo com o Sisreg, que é um sistema importante e não pode ser desmoralizado como foi. A ideia é abrir uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] sobre o Sisreg”, anuncia. O parlamentar lembra um episódio de fevereiro deste ano que já tinha dado o que falar em relação ao acesso ao SUS. A mãe do prefeito passou por uma cirurgia no punho no hospital municipal Salgado Filho. Até aí, nada demais. O problema é que a internação de Eris Bezerra Crivella chamou atenção dos usuários da unidade. Segundo eles, ela foi atendida prontamente e os funcionários esvaziaram um leito, limparam e reservaram para sua internação como se fosse um quarto particular de hospital privado. A secretaria municipal de Saúde e a direção do hospital negaram as acusações de atendimento diferenciado.

Depois daquele Café

O vazamento do discurso de Marcelo Crivella vem sendo considerado por muitos um caso fora da curva, não por representar uma prática incomum no universo político brasileiro, mas justamente por escancarar o clientelismo presente na administração pública. “Evidentemente tínhamos suposições, não certezas em relação à prática de furar a fila do Sisreg. Mas depois daquela reunião absurda, ficou claro”, diz o vereador João Batista de Araújo, o Babá, para quem a prefeitura tem funcionado através de distribuição de benesses que vão na contramão da universalidade no âmbito do conjunto das políticas públicas. “Quando se faz uma obra que beneficia diretamente um bairro ou comunidade em que um agente político aliado tem interesse, pode ser tanto um pastor, quanto um vereador – e às vezes essas duas figuras se misturam – isso acontece em detrimento de todo o resto e para atingir um resultado: influenciar uma comunidade nas eleições, atrair mais fiéis para uma igreja – e, de novo, essas coisas têm se misturado muito não só no Rio, não só na Câmara de Vereadores, mas também nas assembleias e no Congresso Nacional”, afirma, dando o exemplo da vez: “Na reunião promovida por Crivella havia dois pré-candidatos – um a deputado federal e outro a deputado estadual. Vamos entrar com processo pedindo inelegibilidade de ambos, por fazerem campanha antecipada naquela reunião”.

As consequências do Café da Comunhão foram além. Três pedidos de impeachment contra Marcelo Crivella foram apresentados na segunda (09), sob o argumento de que o prefeito estaria favorecendo integrantes da denominação religiosa da qual foi bispo, a Igreja Universal do Reino de Deus. Dois deles foram protocolados na Câmara dos Vereadores pelo vereador Átila Nunes (MDB) e pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), adversário de Crivella na disputa pela prefeitura em 2016. O terceiro foi apresentado pelo Sindicato dos Servidores Públicos do Rio (Sepe) ao Tribunal de Justiça.

Os vereadores da oposição ao governo municipal iniciaram um movimento para que o recesso parlamentar fosse interrompido e os pedidos de cassação fossem analisados. Conseguiram obter as 17 assinaturas necessárias para convocar a sessão extraordinária na terça (10).

A sessão aconteceu ontem (12) e o processo de impeachment não foi aceito em uma votação que teve 16 votos favoráveis e 29 contrários. As denúncias contra Marcelo Crivella devem ser apuradas no âmbito da ação civil pública por improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro na noite de quinta (11). A principal acusação contra o prefeito é ferir o princípio constitucional do Estado laico, que determina a separação entre Estado e religião.

Mas para Cíntia Teixeira, o caso do Café da Comunhão abriu uma janela de oportunidade para que os militantes do SUS dialoguem com a população sobre a importância de princípios como universalidade e equidade: “Precisamos avançar no nível de consciência da população sobre seus direitos, que foram conquistas, não foram dados de presente. E um desses direitos é a universalidade da saúde. Quando você burla a universalidade, você burla a equidade, que é atender de acordo com as diferenças, as patologias, as vulnerabilidades. Associado a isso, temos um desfinanciamento, corte de verbas, sucateamento… O episódio mostra que é possível aprofundar mais ainda o caos”.

Protesto realizado no dia 11 de julho, em frente à prefeitura do Rio (Foto: Maíra Mathias)

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