Governo Jaime Cruz (PSDB) de Vinhedo censura liberdade de expressão: Servidor público que se manifestou na rede social em relação a problema ambiental sofre demissão por justa causa em função de sua atitude
Por Potiguara Lima
Imagine que você é um agente de serviços em uma empresa responsável pelo saneamento básico na cidade onde reside. Recebe cerca de um salário mínimo e meio e no dia a dia você cumpre com dedicação suas tarefas para contribuir com o funcionamento ininterrupto do tratamento de água da cidade.
Durante uma manhã de domingo em que não está trabalhando, decide ir com sua mulher e filha de um ano a uma área de lazer municipal. Em seu passeio sente um odor desagradável vindo da lagoa situada nessa mesma área de lazer. Incomodado com a situação, você faz uma postagem na rede social dizendo:
“Poxa, que descaso. Esgoto sendo jogado na lagoa. Está com cheiro forte e os peixes estão ficando sem oxigênio. Cadê os responsáveis por isso?”
É difícil concordar sempre com os motivos pelos quais as pessoas se manifestam nas redes sociais. Há por certo muitas manifestações de ódio e intolerância. Mas nesse caso, você acredita que sua percepção de um problema e sua opinião podem contribuir para, quem sabe, solucioná-lo.
E você não entende ser necessário se preocupar em expressar sua opinião, pois acredita estar vivendo sob um regime democrático em que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” conforme um dos primeiros artigos da Constituição Federal.
O quadro de mau cheiro da lagoa expressa, em seu entender, uma situação que precisava ser remediada e, assim, comunicar isso seria uma atitude de cidadania a ser tomada.
Cabe lembrar que você não estava em seu horário de trabalho e sim em um dia de folga, no qual escolheu um local público para passear com sua família.
Alertar para uma situação anormal, nesse caso, contribuiria tanto para o bem-estar das pessoas que frequentam essa área de lazer quanto para o ecossistema local. Expressar isso para outras cidadãs ou cidadãos costuma contribuir para tornar mais céleres as respostas da sociedade e do poder público a esse tipo de problema.
Trata-se de um problema ambiental, que nesse caso foi mais facilmente percebido em função do cheiro exalado.
Sempre um problema é consequência de uma ou mais causas e, por isso, é comum que a partir de um exercício de raciocínio lógico se busque a causa ou as causas dos problemas. Como é mais recorrente que atividades humanas estejam associados à produção de líquidos fétidos do que processos naturais, também por raciocínio lógico costumamos tomar os problemas ambientais como algo associado a responsabilidade humana.
As justificativas para sua atitude estariam dadas, portanto, a partir da sua condição humana que percebe e compreende o ambiente ao seu redor, a partir de sua condição social que interage, se comunica, sobre suas percepções e compreensões e a partir de sua condição cidadã, que procura melhorar o meio ambiente e a vida social.
Qual seria o desdobramento de sua atitude?
Infelizmente há muitos casos de postagens apontando problemas nas redes sociais que não têm repercussão. Isso ocorre porque para uma série de problemas, a maior parte das pessoas ainda não está predisposta a se sensibilizarem.
Mas felizmente a sociedade, de maneira geral, tem estado mais atenta aos problemas ambientais. Por isso, sua postagem sensibilizou outras pessoas, que interagiram com sua publicação e trouxeram relatos e opiniões pessoais diversas associadas ao problema.
O que se esperaria a partir da repercussão do breve apontamento e reflexão que você fez sobre o problema sócio-ambiental observado?
Seria muito interessante que se democratizasse ainda mais as discussões sobre esse e outros problemas. Caberia então à sociedade civil e ao poder público, articulados preferencialmente, criar e fortalecer mais espaços para aprofundar o entendimento desse e de outros problemas ambientais de sua cidade. Isso faria com que aumentasse a consciência social sobre um tema tão caro quanto a gestão de recursos hídricos. Consequentemente, seriam criadas as condições para medidas mais adequadas tanto para a solução quanto, principalmente, para a prevenção de problemas.
Pronto! Um desdobramento razoável para um ato de cidadania.
A que ponto chegou o coronelismo político em Vinhedo?
Há algum tempo uma professora me disse que pessoas que assumem papéis públicos podem ser divididas em dois grupos: o daqueles que lutam para fazer com que os desejos e sonhos de justiça se tornem realidade; e, por outro lado, o grupo daqueles que atuam de forma a tornar a realidade um pesadelo para quem quer que exija seus direitos e não se conforme com as injustiças. O atual governo de Vinhedo tem tomado medidas que o colocam junto a esse segundo grupo.
A situação descrita acima ocorreu em Vinhedo, mas o desdobramento da manifestação de cidadania do servidor, diferentemente do que esperaríamos, não resultou no fortalecimento da reflexão coletiva e da democracia. Pelo contrário, a atual administração municipal, através da autarquia pública responsável pelos serviços de tratamento de água e esgoto, abriu um processo contra o servidor que culminou em sua demissão “por justa causa”.
Essa medida, tomada na primeira quinzena de julho perpetua uma cultura de assédio moral e perseguição política que procura sistematicamente asfixiar qualquer manifestação que busque refletir sobre os problemas da cidade. Talvez a prática da censura não fosse tão nociva caso não houvesse problemas a serem criticados. Mas o histórico e a situação atual da cidade mostram justamente o contrário.
Existem problemas a serem criticados em Vinhedo?
Existe um histórico de casos já apurados pela justiça de corrupção e mau uso de recursos públicos. Vinhedo teve um ex-prefeito condenado em última instância por recebimento de propina para a aprovação de condomínios, por exemplo. Também houve condenação de outros agentes por conta do mau uso do dinheiro público. E mesmo o atual prefeito é réu, junto a outros agentes públicos e empresários, em um processo de investigação sobre possível superfaturamento em itens de merenda escolar. As contas públicas do governo em 2015 foram reprovadas pelo Tribunal de Contas do Estado em relatório que questionou, dentre outros itens, a prioridade dada à contratação de shows musicais custosos enquanto contribuições patronais deixavam de ser realizadas.
Do ponto de vista administrativo, a gestão Jaime Cruz será sempre lembrada pela iniciativa decretada em junho de 2017 que passou a punir com a retirada do auxílio-alimentação servidores públicos afastados para tratamento de saúde (a partir do 2o dia afastado não consecutivo ou do 5o dia consecutivo). O “decreto da maldade” prejudicou servidoras e servidores com vários tipos de problemas de saúde, incluindo acidentes ou mesmo doenças gravíssimas, como alguns casos de câncer. Antes de completar um ano de vigência, essa infeliz medida se tornou insustentável e, na iminência de ser desmoralizado por uma decisão da Câmara dos Vereadores, o prefeito revogou seu decreto (saiba mais sobre o decreto da maldade aqui).
Também podemos destacar outras dificuldades vividas pela população da cidade, como a restrição do atendimento em unidades de saúde e a falta de medicamentos, além de tentativas de restrição no direito ao transporte escolar.
Casos emblemáticos de perseguição política a servidores públicos
Apesar de notarmos a existência de uma série de problemas que direta ou indiretamente se relacionam à atuação do poder público municipal, verificamos em cerca de um ano, duas situações emblemáticas que revelam uma indisposição do governo de Vinhedo em lidar com críticas que possam remeter à sua gestão.
O primeiro caso ocorreu em 2017, após a greve de um dia realizada no serviço público municipal contra o Decreto da Maldade e contra o arrocho salarial. Logo após a greve, o governo municipal retaliou uma professora desligando-a da função de coordenadora que havia assumido em sua unidade de ensino. Tanto a escolha da coordenadora quanto o trabalho que vinha realizando eram referendados tanto por seus colegas quanto pela comunidade escolar. Mas a sanha por retaliação falou mais alto que as relações e objetivos pedagógicos construídos no interior da escola (o episódio pode ser melhor entendido aqui)
Agora, em 10 de julho, o governo Jaime foi ainda mais longe e demitiu um servidor concursado como retaliação à crítica feita a um problema ambiental ocorrido no município. Entre a postagem do servidor e a demissão foram 3 meses e 2 dias, uma rapidez que impressiona quando comparamos com a velocidade que se costuma levar para a realização de outros processos no interior do serviço público municipal, como reformas necessárias em unidades que levam anos para se concretizarem, por exemplo.
Esse caso traz algo de inacreditável também, que talvez possamos buscar paralelo na ficção científica de obras como 1984 de George Orwell. Dessa vez a perseguição extrapolou a relação de trabalho, de forma que o processo se deu contra uma manifestação do trabalhador fora de seu expediente. Realizar um ato de cidadania que possa ser interpretado como crítica ao governo passou a ser passível de punição.
Qual foi a atitude que o governo municipal condenou? Constatar e dar visibilidade a um problema ambiental trazendo a reflexão sobre a quem caberia as responsabilidades para que a situação de poluição não mais ocorresse.
Ao invés de reconhecer e ampliar o debate sobre o problema apontado, o governo Jaime optou por abrir um processo contra o servidor alegando que a constatação e reflexão sobre o problema feita na rede social buscava, na verdade, prejudicar a empresa conduzida pela administração que cuida do tratamento de esgoto na cidade. É importante notar que o post não fazia nenhuma menção do cidadão a essa empresa.
O coronelismo político e a cultura de assédio moral têm que acabar
Mais um caso lamentável de perseguição política. É preciso acabar com essa cultura de coronelismo político em Vinhedo. Não podemos mais aceitar que gestores públicos tentem esconder problemas existentes na cidade procurando silenciar aqueles que realizam críticas. Uma família não pode perder suas já limitadas condições de sustento para que se perpetue uma cultura de assédio.
Algumas perguntas nos vêm à mente:
Como fica a cabeça desse trabalhador diante da injustiça sofrida e das contas a pagar? Quais foram seus erros? Expressar seu incômodo com um problema público fora do horário de trabalho? Ser um trabalhador simples, com baixo salário e sem um bom padrinho político?
Como se sentem os servidores presenciando mais um “cala-boca” que dessa vez extrapolou os limites do próprio ambiente de trabalho e chegou à vida pessoal de um colega?
Essa cultura de assédio moral compromete a saúde psíquica das trabalhadoras e trabalhadores do serviço público municipal.
Queremos a reintegração do colega injustamente demitido e o fim do assédio moral no serviço público de Vinhedo. Aproveitamos a oportunidade para manifestar nosso total apoio às manifestações em defesa do meio ambiente e para reafirmar que a cidadania deve ser um direito de todos.
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Potiguara Lima é servidor público da Prefeitura Municipal de Vinhedo e foi eleito por seus pares como membro titular da CIPA para a gestão 2018-2019.
Destaque: Lagoa de Vinhedo onde o servidor constatou a saída de esgoto.
O adoecimento de servidores e servidoras só irá aumentar em um ambiente de trabalho hostil às críticas e/ou propostas de mudança. Não adianta governar com ‘essa’ austeridade. Uma liderança democrática acolhe pontos de vista diferentes do seu e é aberta ao diálogo.
O coronelismo e assédio moral no trabalho inibem as servidoras e servidores de questionarem as práticas estabelecidas nas instituições. Transformam as trabalhadoras e trabalhadores em meros executores de tarefas. Impedindo a crítica, destroem a capacidade de análise e proposição de melhorias, levando inclusive ao adoecimento. No serviço público, um funcionário “de carreira”, não é funcionário de um grupo político. Não serve aos interesses de um determinado grupo. Defende e atua visando o bem público, da população, garantindo o acesso e qualidade dos serviços. Apontar os problemas e buscar soluções deveria ser uma prática incentivada e não alvo de punição.