por João Vitor Santos, em IHU On-Line
Numa semana em que o Brasil ainda rescaldava o resultado de sua seleção de futebol, o clima estava quente na Câmara Federal. Apesar de gritos e trocas de ofensas, o tema não era futebol, assunto que muitas vezes esquenta os ânimos. Tratava-se de mais uma sessão da comissão especial que discute o Projeto de Lei 7180/14, apelidado de Escola Sem Partido. Na última quarta-feira, 11-07, foram três horas de discussão – na comissão especial, instância que antecede a votação em plenário –, até a suspensão do debate, deixando o assunto “de molho”. “O que vemos é uma reação a um processo de democratização da sociedade brasileira que tem sido marcado pelo avanço dessa onda conservadora”, avalia a professora Fernanda Pereira Moura. Ela desenvolveu uma pesquisa de mestrado que buscou entender o que é o Escola Sem Partido, projeto que tem um autor na Câmara, Erivelton Santana – PSC/BA, mas que também “pipoca” desde a Câmara Federal até Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores.
Embora tenha se detido na esfera federal, a professora, que atua na rede pública, considera que projetos como esse visam subverter a ideia de Estado, aquele que provê a educação como um bem público e visa à formação integral de seus jovens. “A esfera privada toma a esfera pública. Os direitos das famílias sobre seus filhos se tornam mais importantes do que o dever do Estado de formar seus cidadãos para o convívio em sociedade”, destaca, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Fernanda ainda reflete que o próprio direito da individualidade infantil não é respeitado. “A criança perde seu direito à educação, que é substituído pelo direito dos pais a que seus filhos tenham a educação que esteja de acordo com suas próprias convicções”, resume.
Ao longo de sua pesquisa, a professora detecta no projeto a forte incidência dos parlamentares mais conservadores, atrelados às chamadas bancas “da Bala” – defensora do armamento e ações mais duras das polícias –, “do Boi” – ligado a ruralistas e setores do agronegócio – e “da Bíblia” – ligada a alas religiosas mais conservadoras. “Não devemos atrelar o projeto apenas aos evangélicos. O criador e coordenador do movimento e autor dos projetos de lei, Miguel Nagib, se declara um cristão conservador”, alerta. Para Fernanda, o grande alvo do Escola Sem Partido é “o combate às desigualdades de gênero, sexualidade, raça, racismo religioso e classe”. E acrescenta: “o discurso defendido por eles é que essas desigualdades são naturais e que defender igualdade é ir contra a própria doutrina cristã”.
Fernanda Pereira Moura possui mestrado em Ensino de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, especialização em Gênero e Sexualidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e graduação em História também pela UERJ. Atualmente é professora da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Ainda atuou como professora da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro e da rede particular de ensino. É autora da dissertação Escola Sem Partido: Relações entre Estado, Educação e Religião e os impactos no Ensino de História, com a qual obteve o título de mestre em 2016.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que revela a volta de discussões de projetos como o “Escola sem Partido”?
Fernanda Pereira Moura – O Escola Sem Partido e o seu combate ao comunismo e a sua tentativa de censurar a educação não nos permitem esquecer que há muito pouco tempo vivíamos em um regime ditatorial. O que vemos é uma reação a um processo de democratização da sociedade brasileira que tem sido marcado pelo avanço dessa onda conservadora.
IHU On-Line – Uma das medidas previstas no projeto Escola sem Partido trata da afixação de placas e cartazes que defendem a “não doutrinação ideológica”. Como analisa medidas como essa? E que outras medidas desse tipo, que revelam a fragilidade da proposta, você destaca?
Fernanda Pereira Moura – A respeito do cartaz, três coisas precisam ficar claras. A primeira é que um dos itens do cartaz diz que os pais têm direito a que seus filhos recebam educação moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. E que, a respeito deste item, o criador do movimento e do projeto de lei, o procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, diz que não inventou, mas que apenas copiou o que já constava na convenção americana de direitos humanos. O que o procurador não menciona é que o item citado não se refere à educação escolar, e sim à educação moral dada em casa pelos pais, o que está claro pelo artigo mencionado encontrar-se no capítulo sobre religião e não em um capítulo sobre educação.
Inclusive, nesta convenção não há nem mesmo um capítulo sobre o tema. As questões relativas à educação são tratadas em um protocolo adicional no qual está dito com todas as letras que a educação de todos os países signatários deve ser voltada para a defesa dos direitos humanos.
A segunda coisa que precisa ficar clara é que não se trata apenas de um cartaz. Segundo o PL, os princípios do Escola Sem Partido valeriam não apenas para as práticas de professores em sala de aula, mas para os conteúdos trazidos em materiais didáticos e paradidáticos, para o Exame Nacional para o Ensino Médio – Enem e para os concursos de acesso à carreira docente. Ou seja, o Escola Sem Partido agiria sobre a totalidade das políticas públicas para a educação.
Por fim, é necessário destacar também que, apesar dos projetos de lei trazerem o combate à suposta doutrinação, em nenhum momento eles conceituam o que seria essa doutrinação. Isso já foi apontado por diversos pareceres jurídicos como sendo mais um dos traços claros de inconstitucionalidade do projeto: proibir algo que ele não esclarece o que é. De forma que a interpretação de que se alguma denúncia seria ou não doutrinação ficaria a cargo apenas de quem fosse julgá-la.
IHU On-Line – Você fez um mapeamento de todos os projetos de lei que tramitam em torno dessa mesma ideia da “escola sem partido”. O que esses seus estudos revelaram?
Fernanda Pereira Moura – Minha dissertação foi defendida em dezembro de 2016. Analisei os textos de todos os PLs federais e observei quem eram os proponentes dos projetos de censura à atuação docente, do tipo Escola Sem Partido, mas sem receber o nome ou projetos voltados especificamente para barrar as discussões relativas ao gênero nas esferas municipal, estadual e federal. Naquela época, eram por volta de 50 PLs. Como faço parte do Professores Contra o Escola Sem Partido, continuo atualizando o mapeamento em conjunto com a Renata Aquino e o Diogo Salles, que também fazem parte deste coletivo. Nossa última atualização foi em janeiro deste ano, quando constatamos que já eram mais de 150 PLs apresentados. Claro que já foram apresentados novos projetos, mas não muitos mais. O momento de maior crescimento no número de PLs foi o segundo semestre de 2017, devido ao dia nacional pelo Escola Sem Partido que foi promovido pelo Movimento Brasil Livre – MBL em 15 de agosto.
Alguns dos PLs sofreram mudança de status depois de janeiro, mas, de maneira geral, a maioria dos PLs está no Sul e Sudeste, especificamente em São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Com relação ao total, 12 eram federais, 21 estaduais e 114 municipais. Desses quase 150 projetos, 40 tratavam especificamente da questão de gênero. Quanto ao status, 103 ainda estavam em tramitação, 26 haviam sido rejeitados e 18 estavam em vigor. Destes em vigor, sete eram Escola Sem Partido ou tipo Escola Sem Partido e 11 específicos sobre gênero, o que mostra a grande disponibilidade dos parlamentares em aprovar projetos desse tipo. A minha pesquisa focou bastante no perfil dos proponentes.
IHU On-Line – Qual o perfil dos parlamentares que propõem projetos como esses?
Fernanda Pereira Moura – Os parlamentares proponentes do Escola Sem Partido estão distribuídos entre inúmeros partidos, mas a maioria concentra-se no PP, no PSC, no MDB [antigo PMDB] e no PSDB. Ou seja, o Escola Sem Partido não tem a adesão de um partido, no sentido de uma sigla partidária. Ele tem um partido no sentido de ser um projeto de um grupo que defende determinados interesses.
Analisando os proponentes, apenas na esfera federal, é possível observar que, em sua maioria, eles pertencem a três bancadas simultaneamente, a do Boi, a da Bala e a da Bíblia. Ou seja, são da bancada BBB, a mais reacionária, antidemocrática, e a maior ameaça aos direitos humanos que temos no nosso congresso. Foi possível observar que praticamente todos os proponentes do Escola Sem Partido votaram a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o que não causa nenhum espanto uma vez que o movimento responsabiliza o governo do PT pela suposta doutrinação nas escolas.
IHU On-Line – Que associações podemos fazer entres os projetos em torno das ideias do Escola Sem Partido com a religião?
Fernanda Pereira Moura – A ligação do Escola Sem Partido com a religião é total. No entanto, não devemos atrelar o projeto apenas aos evangélicos. O criador e coordenador do movimento e autor dos projetos de lei, Miguel Nagib, se declara um cristão conservador. Ele é católico como o vice-coordenador do movimento e professor da Universidade de Brasília – UNB, Bráulio Porto de Mattos. No Congresso Federal, os proponentes estão divididos entre os pertencentes à bancada evangélica e à bancada católica. Entre os proponentes, é comum membros da Renovação Carismática Católica – RCC. A RCC é um movimento neopentecostal dentro da Igreja Católica, tanto que a doutrina e forma de atuação são muito similares à dos evangélicos.
Como destaca o professor Luiz Antônio Cunha, a bancada da Bíblia tem um projeto reacionário para a educação que procura frear a laicidade do estado e a secularização da cultura. Esse projeto se daria em duas frentes, uma seria caracterizada pela contenção, impedir que discussões cheguem à escola. Essa frente teria como arma o Escola Sem Partido. E, em outra frente, haveria uma imposição da moral cristã aos estudantes. Essa teria como arma o Ensino Religioso e a Educação Moral e Cívica.
É importante lembrar que o Ensino Religioso é o único componente curricular previsto na nossa Constituição e que ele pode ser oferecido de maneira confessional a critério das redes de ensino. Outro destaque importante é que há inúmeros projetos para a volta da disciplina Moral e Cívica.
IHU On-Line – Durante o período do regime militar, os anos de redemocratização, chegando até a década de 1990, as escolas brasileiras continham disciplinas como Educação Moral e Cívica e Organização Social Política Brasileira – OSPB. Como analisa o teor e o propósito dessas disciplinas? Em que medida podemos associar a lógica de disciplinas como essas com o Escola Sem Partido?
Fernanda Pereira Moura – O professor Luiz Antônio Cunha destaca que a moral da Moral e Cívica sempre foi a moral cristã. Mesmo nos períodos em que o Estado brasileiro não tinha o Ensino Religioso como disciplina, a moral cristã (mormente católica) continuava a ser imposta.
OSPB tinha o objetivo de estimular o nacionalismo e incutir um sentido de civismo ligado ao respeito às instituições, e não a “capacitação” para lutar por instituições justas. Quando o Escola Sem Partido diz que os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções e deixam claro que essa precisa ser uma moral conservadora cristã, quando chamam uma educação voltada para a cidadania de doutrinação, vemos que o Escola Sem Partido entende que a educação atual deve ter os mesmos objetivos que tinha durante a ditadura militar.
IHU On-Line – Quais são os maiores alvos do “escola sem partido”. Por quê?
Fernanda Pereira Moura – O maior alvo é o combate às desigualdades de gênero, sexualidade, raça, racismo religioso e classe. O discurso defendido por eles é que essas desigualdades são naturais e que defender igualdade é ir contra a própria doutrina cristã. Gênero devido à complementaridade dos papéis de homens e mulheres; sexualidade por apenas a heterossexualidade ser aceita. Assim, a tentativa de discutir estas questões se configuraria em uma tentativa de destruição da família tradicional. A valorização da cultura negra e indígena e a discussão sobre a intolerância religiosa é apontada como tentativa de doutrinação em umbanda e candomblé.
Qualquer discussão a respeito das desigualdades de classe são marxismo e o marxismo enquanto materialismo se oporia à espiritualidade cristã, logo uma tentativa de destruí-la. São muitas as falácias utilizadas. Tenta-se difundir um pânico moral. Minorias são vistas como ameaças. Mas, realmente, a maior ameaça de todas é representada pelo espantalho da “ideologia de gênero”. Foi a maneira que eles encontraram de associar as discussões de gênero com uma suposta tentativa de transformar as crianças em gays e lésbicas.
IHU On-Line – Em que medida o “escola sem partido” reconfigura a ideia de Estado?
Fernanda Pereira Moura – A esfera privada toma a esfera pública. Os direitos das famílias sobre seus filhos se tornam mais importantes do que o dever do Estado de formar seus cidadãos para o convívio em sociedade. O direito da família, na verdade, do homem que é o pai nesta família, é mais importante que o direito de quaisquer outros sujeitos desta família, como as mulheres e as crianças. Os direitos delas não devem ser discutidos nas escolas. O direito das crianças, inclusive, desaparece por completo uma vez que a criança perde seu direito à educação, que é substituído pelo direito dos pais a que seus filhos tenham a educação que esteja de acordo com suas próprias convicções.
IHU On-Line – Pensando em termos de aprendizagem e desenvolvimento humano integral dos alunos, como a implantação de projetos como o Escola sem Partido pode incidir na formação dos alunos?
Fernanda Pereira Moura – A nossa Constituição diz que a educação brasileira deve ter por finalidade formar a pessoa, o cidadão e o trabalhador. É o que Gert Biesta chama do caráter de subjetivação, socialização e qualificação da educação, respectivamente. Mas, para o Escola Sem Partido, o professor não é um educador. É um técnico, um burocrata que deve apenas ensinar o conteúdo e preparar para o mercado de trabalho. No fim vemos que nenhuma das dimensões da educação é respeitada uma vez que o educador tem por trabalho muito mais do que capacitar as pessoas para o mercado de trabalho que, aliás, prefere que este trabalhador permaneça incapaz de reconhecer que seu trabalho é alienado.
IHU On-Line – Especificamente sobre o campo da História, quais os impactos do Escola sem Partido?
Fernanda Pereira Moura – Sem possibilidade de crítica, voltamos a uma história baseada em decorar nomes e datas. Podemos inferir que a história pretendida pelo Escola Sem Partido é a velha história política. Aquela das grandes narrativas nacionais e dos grandes homens. Sem luta de classes, sem questões identitárias e que não permite que os alunos se reconheçam como sujeitos históricos.
IHU On-Line – Como projetos como o Escola sem Partido repercutem nas escolas? Como tem observado a forma como esse debate tem se dado entre professores e alunos?
Fernanda Pereira Moura – Mesmo sem se tornar lei, o discurso do Escola Sem Partido vem conquistando adeptos. Em todo o Brasil, professores vêm sendo expostos nas redes sociais, ridicularizados, sendo denunciados como criminosos por falarem sobre questões de gênero ou debaterem assuntos importantes do presente. Muitos professores já têm medo de abordar determinados temas em sala de aula. Inclusive temas que até bem pouco tempo atrás eram vistos como temas absolutamente normais na escola, como teoria da evolução e nazismo.
IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre a nova Base Comum Curricular e as ideias em torno do Escola sem Partido?
Fernanda Pereira Moura – As relações são muitas. Primeiro que o Escola Sem Partido cria um discurso de ódio aos professores, como explica o professor Fernando Penna, ao mesmo tempo a Base Nacional Comum Curricular – BNCC foi formatada para tornar possível avaliações educacionais em larga escala que em todo o mundo têm sido utilizadas não para melhorar a educação, mas para responsabilizar o professor sobre o suposto fracasso escolar. Gert Biesta, Diane Ravitch e Luiz Carlos de Freitas há muito se dedicam a explicar essas políticas de responsabilização que recebem o falacioso nome de meritocracia.
Por fim, vemos o professor sendo apresentado não apenas como incompetente e mal formado – como se isso não fosse ruim o bastante –, mas também como alguém que não ensina porque não quer, uma vez que está preocupado apenas em doutrinar os seus alunos. Mas essa é apenas uma questão com relação à Base de maneira geral. Existe uma relação muito estreita do Escola Sem Partido com a última versão da BNCC de ensino fundamental. Um grupo chamado professores contra a ideologia de gênero – que faz parte das redes do Escola Sem Partido e cujo líder é um dos intelectuais orgânicos do ESP – produziu uma BNCC alternativa e fez pressão sobre o ministro da Educação com o apoio da bancada evangélica e conseguiu fazer com que a terceira e, supostamente, última versão da BNCC fosse tão modificada que não pode nem ser considerada ainda a terceira versão, sendo na verdade uma quarta.
IHU On-Line – Diante de um contexto de polarizações e disputas violentas, que vazam do mundo virtual ao mundo real, quais os maiores desafios do campo da Educação?
Fernanda Pereira Moura – É preciso combater o Escola Sem Partido, mas não apenas os projetos de lei. É preciso combater também o seu discurso e discutir que educação, que escola e que sociedade queremos. É preciso lutar por uma educação democrática. Precisamos de uma educação que combata os discursos de ódio e que seja voltada para o respeito aos direitos humanos.
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Ilustração por Guilherme Peters