Liberdade para desacatar. Por Conrado Hübner Mendes

A condição de agente público confere responsabilidades especiais, não direitos especiais

Na Época

O crime de desacato é indispensável à violência policial brasileira. Por meio dele, prende-se frentista que não deixa policial furar a fila da gasolina; fiscal de trânsito que multa magistrado; assistente social que questiona abordagem policial a crianças; estudante que rejeita assédio de policial; jovens que protestam; a viúva de Amarildo. Monitoram-se também as redes sociais. Márcio França, governador de São Paulo, sintetizou esse caldo de cultura: “Se você ofender a farda, ofender a integridade do policial, você está correndo risco de vida. É assim que tem de ser”.

Diversas democracias do mundo já aboliram esse crime, por violação da liberdade de expressão. Tribunais e comissões internacionais de direitos humanos convergem. No Brasil, o tema está em aberto. Após algumas decisões pela inconstitucionalidade do crime de desacato, tomadas por tribunais estaduais e pelo STJ, o tema chegou ao STF por via de duas ações: um habeas corpus indeferido e uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) pendente.

A decisão do habeas corpus alegou que a “liberdade de expressão não é absoluta”. Dessa premissa, porém, saltou para a conclusão sem explicitar, no meio do caminho, a métrica que relativiza a liberdade. Quando há desacato? A decisão do STF procurou ajuda no Dicionário Houaiss e nos manuais de Direito. Achou nove verbos, quatro substantivos e nenhum critério. O que faltou em elaboração conceitual sobrou na enumeração de sinônimos: destratar, desprezar, afrontar, insultar, vituperar, ofender, humilhar, espezinhar, agredir; irreverência, grosseria, causar vexame ou desprestígio. Se já não é fácil para o discernimento judicial, imagine para um policial no calor das trocas cotidianas. Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski aceitaram a constitucionalidade do crime de desacato. Os mesmos ministros que, nos casos da Lava Jato, abraçam o chamado “garantismo penal” em nome da liberdade também validam a previsão de crime cuja natureza convida ao arbítrio. Ignoram que garantismo e desacato não bailam a mesma valsa.

A condição de agente público confere responsabilidades especiais, não direitos especiais.

Suportar eventual tratamento ríspido e grosseiro por qualquer cidadão é ônus da função pública.

Se a integridade física ou moral de qualquer um deles for afetada, invocar desacato é desnecessário. O desacato não serve para proteger a honra da pessoa do agente público, pois para isso o Código Penal oferece a injúria. Não serve para preservar a autoridade do Estado, pois para isso há, entre outras coisas, os crimes de desobediência e resistência. Não serve sequer para catalisar um “governo das leis”, pois o conceito de desacato é tão aberto que, na prática, se presta a manipulação. Põe a legalidade de escanteio e dificulta o diálogo crítico entre cidadãos e agentes públicos.

Oficialmente, o desacato almeja proteger o “prestígio da administração pública”. Vale-se do Direito Penal, mão repressiva do Estado, para promover um objetivo abstrato. Há algo suspeito nessa história. A explicação passa pela sociologia do desacato no Brasil. Variáveis de raça, de classe e de gênero, em geral nessa ordem, explicam a quase totalidade dos casos em que um policial se sente desacatado. Adivinhe quem costuma ser preso.

“Prestígio” se conquista por meio de políticas públicas eficientes, transparentes e sensíveis à dignidade dos cidadãos. Na escala de valores da democracia, é um bem menor. O crime de desacato não produz prestígio, mas medo. A relação entre um agente público e um cidadão passa a ser permeada pelo espectro da prisão em flagrante. Eventual prisão poderá ser relaxada pelo juiz, mas o desacato já terá cumprido sua função intimidatória. Mesmo para manifestar indignação a uma conduta injusta ou meramente descortês de agente público ou em situações de descontrole emocional, cidadãos têm de medir as palavras e os gestos. Afinal, qualquer palavra ou gesto poderá ser entendido como desacato.

O crime de desacato, em vez de semear respeito à autoridade, corrói as condições de sua existência. Uma relação tensa e reverencial não se confunde com respeito à autoridade. O desacato infantiliza o cidadão. A liberdade para desacatar fortalece a democracia.

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