O poder é ilegítimo e brutal contra os que efetivamente o questionam
Na Folha
“A ré tem uma personalidade distorcida, voltada ao desrespeito aos Poderes constituídos, o que pode ser constatado, no tocante ao Judiciário, por ter descumprido uma das medidas cautelares impostas pela 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (proibição de frequentar manifestações e protestos), o que acarretou a decretação de sua prisão preventiva (vide fls. 4.522/4.523) [“¦]. Já o desrespeito ao Poder Executivo pode ser evidenciado, por exemplo, pelo enfrentamento aos policiais militares nas passeatas e ao ‘Ocupa Cabral’ (é inacreditável o então governador deste estado e sua família terem ficado com o direito de ir e vir restringido). O desrespeito ao Poder Legislativo, por sua vez, pode ser verificado, por exemplo, pelo ‘Ocupa Câmara’.”
Este é um trecho da sentença do juiz Flavio Itabaiana contra 23 manifestantes que participaram das manifestações de 2013 e 2014, condenando-os a penas de cinco e sete anos de prisão em regime fechado por formação de quadrilha, corrupção de menores, dano qualificado e lesão corporal.
Nenhum policial foi condenado por incitação à violência, por infiltração em grupos de manifestantes com o intuito claro de iniciar confrontos, por lesão corporal contra manifestantes que ficaram cegos ou tiveram ferimentos graves.
Mas há uma condenação de manifestantes que lutavam contra aumentos abusivos de tarifas de transportes, contra o esvaziamento da democracia parlamentar, contra os gastos com a Copa do Mundo e a corrupção.
De toda forma, a pérola escrita pelo referido juiz expõe, de forma didática, a matriz do pensamento autoritário nacional, assim como o caráter meramente formal da “democracia” que impera em nossas terras.
Ao que se vê, na sociedade que o senhor Itabaiana defende, alguém que desrespeita “poderes constituídos”, que se manifesta em frente à casa de um governador corrupto, que não admite ser limitado em seu direito de se manifestar e protestar só pode ter uma “personalidade distorcida”.
Nesse caso, podemos nos perguntar o que seria uma personalidade não distorcida. Alguém para quem os ditos Poderes nunca devem ser criticados de forma aberta e através de manifestações populares? Alguém que faz deferência quando um governador passa na rua?
No entanto, a “personalidade distorcida” em questão é exatamente aquela que a democracia produz, ou deveria produzir. Como dizia Condorcet na aurora da Revolução Francesa: “A função da educação pública é tornar o povo indócil e difícil de governar”.
Um povo indócil faz barricada, impede o direito de ir e vir dos governantes, quebra vidraças de banco quando precisa se fazer ouvir, pois sabe que para um poder surdo essa é a única linguagem compreensível.
Esse poder só ouve àquilo que não o coloca em questão, a quem, no fundo, procura reforçá-lo. Ou seja, a capacidade de se colocar contra o poder, de não se submeter à violência estatal e ao seu braço armado, é algo que só existe naqueles que entenderam o que afinal está em jogo quando se fala em emancipação e liberdade social.
A democracia nunca viu problemas em aceitar essa indocilidade do povo, pois ela sabe que o poder deve temer o povo que ele julga representar, e não o inverso.
Mas, no Brasil, uma das funções principais do Poder Judiciário é procurar, de todas as formas, criminalizar a revolta, nem que seja utilizando um vocabulário digno do psicologismo mais rasteiro à serviço da servidão.
Esses 23 manifestantes que correm o risco de prisão a partir de agora são claramente presos políticos.
À parte, na morte acidental de um cinegrafista por um rojão disparado por manifestantes —fato que merece uma análise isolada—, o único “crime” em questão é a existência política insubmissa.
Algo que em nossas terras parece ser cada vez mais imperdoável. Mas faz parte de um poder cada vez mais ilegítimo ser cada vez mais brutal contra todos aqueles que efetivamente o questionam.
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Protesto na Cinelândia. Junho de 2013. Foto: G1