“Esse denuncismo anônimo é uma face imediata e perversa da cultura persecutória que se instalou no país”

Os professores Gilberto Maringoni, Giorgio Romano e Valter Pomar estão sendo alvo de uma Comissão de Sindicância instalada pela direção da UFABC a partir de denúncia anônima (AQUI). O texto abaixo é da presidente da Associação dos Docentes da Universidade. No link citado acima, está também a íntegra da nota por ela assinada em nome da ADUFABC. Aqui, em um texto pessoal, ela revela que denúncias anônimas vêm se tornando parte do cotidiano nas universidades brasileiras, ameaçadas pelo fascismo:

Por Maria Caramez Carlotto

Falando agora não como presidente da ADUFABC, mas como docente dessa universidade, o que mais me indigna nessa história toda da sindicância aberta pela Corregedoria contra três colegas (pelo que, não sabemos bem ainda) é o contexto de fundo.

Não sei o quanto vocês sabem, mas as universidades públicas estão recebendo, mensalmente, dezenas de denúncias anônimas. Sobre essas denúncias, pouco sabemos porque elas são tão bizarras, que acabam arquivadas sob sigilo. Mas o pouco que sabemos sugere que se tratam de acusações contra funcionários públicos, em particular professores, que estariam se desviando das suas “funções normais” para fazer proselitismo político, doutrinação, mal versasão de fundos etc. etc. etc.

Esse denuncismo anônimo é uma face imediata e perversa da cultura persecutória que se instalou no país nos últimos anos, de judicialização dos conflitos sociais, criminalização da política e demonização do Estado e de tudo o que é público. Igualmente importante é o anti-intelectualismo que inspira os impulsos autoritários neoconservadores e persegue a ciência e o pensamento crítico.

O resultado é um gasto gigantesco de tempo e recurso, material e humano, das instituições públicas para “se defender” ou “apurar essas denúncias”. Sobre esse (eu diria o verdadeiro) desvio de função, ninguém fala nada.

São professores que, ao invés de estar pesquisando e ensinando, são obrigados a presidir sindicâncias contra colegas sem ter nenhuma orientação para tanto. Funcionários técnico-administrativos que ao invés de sustentar as atividades-fins da universidade, perdem horas lendo, arquivando ou encaminhando denúncias sem sentido. Outros professores que precisam parar suas atividades normais para se defender ou defender colegas. É a administração universitária que tem que preservar a autonomia e, ao mesmo tempo, prestar contas aos órgãos superiores de controle do sistema judiciário, que cobram providências em nome da accountability. Perdem todos, menos os denunciantes, que permanecem anônimos.

A meu ver, só temos duas formas de lidar com isso.

Ou naturalizamos a cultura do medo que passa, sutilmente, a reger a nossa vida cotidiana nas instituições de ensino e pesquisa, uma vez que o que todos queremos, sem dúvida, é apenas ensinar e pesquisar em paz.

Ou fazemos um enorme esforço coletivo de nomear o problema, politizar a questão, e sair em defesa do ambiente acadêmico e da democracia que têm, ambos, na autonomia e na liberdade de crítica, pensamento e opinião bases fundamentais.

Eu podia escolher o caminho mais fácil, do silêncio e da reclusão individual. Mas fiz, há muito tempo, uma escolha íntima por defender, veementemente, a universidade pública e a democracia. Como eu, muitos. E nesse percurso, não existe caminho de volta. Então, por mais difícil que seja, seguimos. Até porque, a outra opção pode ser fácil, mas é falsa. Como disse Freud, “ao cantar na escuridão, o andarilho nega seu medo, mas nem por isso, enxerga mais claro”.

Os que querem ver a verdade vencer, no fundo, não têm escolha. E não se iludam, como eu disse, não somos tão poucos assim.

Destaque: Cena do filme Fahrenheit 451

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