Por Tiago Pereira, da RBA, no Sul21
Ainda no final da tarde, Tizumba abriuo festival Lula Livre, trazendo os ritmos africanos para o palco principal nos Arcos da Lapa, centro do Rio de Janeiro. Os apresentadores ressaltaram o “período de breu, etapa indigna” do Brasil pós-golpe do governo Michel Temer e convocaram os artistas a lutar com as suas armas da música e da poesia contra as injustiças. Também lembraram o compositor Vinicius de Moraes, que dizia, em uma de suas canções, que “mais que nunca, é preciso cantar e alegrar a cidade”.
“A partir de agora, vamos combater os usurpadores do presente e sequestradores do nosso futuro”. A cantora Ana Cañas cantou à capela O bêbado e o equilibrista, composição de Chico Buarque [corrigindo: os autores são João Bosco & Aldir Blanc] celebrada na voz de Elis Regina, que Lula contou a ela ser a sua música preferida. “Democracia nessa porra”, clamou Cañas, lembrando ainda que a vereadora Marielle Franco completaria, nesta sexta-feira (27), 39 anos se não tivesse sido assassinada em março deste ano. Abayomy Orquestra trouxe a cultura negra e lembrou a figura do rei africano Malunguinho, ex-escravo que liderou um quilombo em Pernambuco.
A cada apresentação, a plateia entoava o grito Lula Livre, a marca do festival. Os organizadores também anunciaram a agenda de mobilizações entre os dias 10 e 15 de agosto, que começa com mobilização das centrais sindicais no Dia do Basta contra as ameaças aos direitos trabalhistas. No dia seguinte, um ato inter-religioso em frente ao STF em defesa da liberdade de Lula, com a presença do Nobel argentino Adolpho Perez Esquivel, quando também vão apresentar abaixo-assinado com cerca de 300 mil assinaturas que denunciam a prisão política a que Lula está submetido em Curitiba. No dia 15, o registro oficial da candidatura de sua candidatura. A população foi também chamada a se organizar em comitês populares em defesa da libertação de Lula e pelo direito de concorrer nas eleições. Na sequência, a Gang 90 trouxe hits brasileiros dos anos 1980 e 1990.
Ao lado do escritor Eric Nepomuceno, Lucélia Santos fez a leitura do manifesto convocatório do festival. “Todo o julgamento do presidente Lula foi um erro jurídico sem limites. Não havia, na primeira instância, uma única e mísera prova dos crimes dos quais ele foi acusado. Não se trata de opinião, mas de constatação.”
Os apresentadores lembraram que uma “acusação fajuta” serve de pretexto para a prisão de Lula, já que o ex-presidente não dormiu, nem nunca teve chaves ou escritura do dito apartamento que a ele atribuem. “No processo a Jato, vem antes a condenação, baseada apenas em convicção. Faltou combinar com o povo. A indignação cresce a cada dia. Exigimos a imediata libertação de Lula”.
“Eles sabem que se soltarem Lula nessa altura do campeonato, ele leva a eleição”, comentou da plateia a arquiteta Júlia Ribeiro, 36 anos, antes de todo o público entoar sucessivos gritos Lula Livre. “Lutem como Marielle Franco”, concluiu Lucélia Santos.
O Frei Leonardo Boff lembrou os tempos sombrios da ditadura civil-militar que se instalou no país nos anos 1960. “Faz escuro, mas eu canto, disse o poeta Thiago de Mello, na época sombria, da ditadura militar, de 1964”, afirmou. “Está confuso mas eu sonho, digo eu, nesses tempos não menos sombrios. Sonho ver um Brasil construído de baixo para cima e de dentro para fora, forjando uma democracia popular, participativa, reconhecendo os novos cidadãos, que a natureza é a mãe Terra. Sonho em ver organizado o povo em redes e movimentos sociais. Povo cidadão, com competência para gerar suas próprias oportunidades, e moldar o seu próprio destino, livre da dependência dos poderosos, mas resgatando a própria autoestima.”
Dezenas de artistas passaram pelo palco ao longo da tarde e da noite, como Gabriel Moura, Lisa Milhomem, Claudinho Guimarães e Dorina. Aíla cantou que todo mundo nasce artista, e “depois vem a repressão”. “Essa doença tem cura, existe uma salvação. Faça arte, mesmo que a sua mãe diga que não”, dizia o verso da música.
“É uma série de mobilizações que vem desde a prisão dele em São Bernardo. E agora no Rio, na Lapa, berço do samba e da cultura popular, a gente espera que o recado fique ainda mais claro quanto à partidarização do judiciário. Dá mais um impulso na luta contra as ilegalidades que vêm ocorrendo no Brasil”, afirmou dos bastidores o jornalista Luis Nassif.
Chico e Gil para fechar a noite
Ao final, o momento de maior emoção. Chico Buarque e Gilberto Gil, que não se reuniam para uma apresentação musical desde o período da ditadura militar no Brasil, subiram ao palco para cantar “Cálice”, canção emblemática que retrata o silenciamento, a censura, as torturas, desaparecimentos e mortes ocorridas durante os anos de chumbo no Brasil. Os artistas foram massivamente acompanhados pelo público, que gritava “Cale-se!” entre os versos da música.
Na sequência, Chico Buarque cantou “As Caravanas”, que demonstra com ironia a aversão das classes abastadas em relação ao povo. Gil emendou com “Aquele Abraço”, considerada um hino da cidade. Beth Carvalho, que já havia se apresentado, subiu ao palco, formando um trio com Chico e Gil para encerrar com o samba “Deixa a vida me levar”.
Carta de Lula
Durante o evento, também foi lida uma carta enviada pelo ex-presidente Lula agradecendo o apoio e a solidariedade de todos os artistas e do público que estiveram presentes. “Vocês não sabem quantas vezes a música, os livros, e a arte tem me ajudado a atravessar essa provação”, diz a carta.
Leia a íntegra da carta abaixo:
“Queridos artistas, estudantes, trabalhadores, meus queridos amigos reunidos nesse sábado,
Eu só posso agradecer a solidariedade de vocês.
Quantas vezes, quando a sociedade calou diante de barbaridades, foram os nossos músicos, escritores, cineastas, atores, dramaturgos, dançarinos, artistas plásticos, cantores e poetas que vieram lembrar que amanhã há de ser outro dia?
Que ousaram acreditar em esperanças equilibristas e em flores vencendo canhões.
Que se rebelaram contra o “Cale-se!” imposto pela censura, gritando que era proibido proibir.
Que disseram que o povo da favela só quer ser feliz e andar com tranquilidade e consciência.
Que denunciaram o sofrimento de quem sai do nordeste expulso não pela seca, mas pela miséria e ganância dos coronéis.
Ou que eram expulsos de sua casa e vê ela ser demolida para passar “o progresso” que não inclui o trabalhador, como cantou Adoniram.
Os que sempre estiveram onde o povo está, e que agora, nesta que é mais uma página infeliz da nossa história, se juntam novamente ao povo brasileiro para soltar a voz em nome da liberdade.
Onde querem silêncio, seguiremos cantando.
Vocês não sabem quantas vezes a música, os livros, a arte, tem me ajudado a atravessar essa provação, que não é maior que a de tantos pais e mães de família brasileiros que hoje não sabem como irão trazer comida para casa. É em nome deles que não podemos desanimar jamais.
Porque a gente ainda vai festejar, e muito. A alegria, a liberdade e a justiça de um povo que não tem medo e que não se entrega não.
Muito obrigado pelo carinho de vocês.
Aquele abraço!
Luiz Inácio Lula da Silva”
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Milhares de pessoas reunidas nos Arcos da Lapa escrevem uma noite histórica em defesa da cidadania e direitos. Foto: Ricardo Stuckert /Divulgação