Resistência teórica e política

Pesquisadores acreditam que, para defender o SUS, é preciso compreender o movimento mais amplo do capitalismo contemporâneo, abandonar as ilusões quanto à neutralidade do Estado e travar uma luta anti-regime, que vá além da aposta num capitalismo democrático e social

Portal EPSJV/Fiocruz

“Um espaço de resistência”. Assim o pesquisador Leonardo Carnut, da Universidade de Pernambuco, definiu a mesa-redonda ‘Movimento do capital, Política, Estado e Saúde’, coordenada por ele e composta pelos professores Áquilas Mendes, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), e André Dantas, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), realizada no último dia do 12º Abrascão. Resistência, disse, porque pretende “reavivar o inconsciente coletivo” para mostrar que existe uma outra forma de analisar o momento que estamos vivendo, principalmente depois do “golpe”. Na sequência, Áquilas abriu sua fala reforçando o quanto, na sua avaliação, algumas reflexões – como as que derivam da economia crítica marxista – “estão sendo simplesmente apagadas” de um congresso como aquele. “O pensamento requer uma qualidade infratora”, defendeu.

Aparência e essência

O “desfinanciamento” provocado pela Emenda Constitucional 95, a priorização do pagamento de juros da dívida pública pelos governos, as renúncias fiscais que fortalecem o grande empresariado, as formas de privatização da gestão pública e mercantilização da saúde – temas tratados de alguma forma no congresso são, todos, elementos concretos. Mas o pesquisador alertou: é preciso ir além do fenômeno e investigar a “essência” desses processos. A insistência num “diagnóstico institucional”, que substitui o esforço de se compreender de forma mais ampla o movimento do capitalismo, do qual o setor saúde faz parte, reduzindo os problemas à “irresponsabilidade” dos diversos governos, e a aposta, sem questionamentos, na construção de um “Estado social” são exemplos das posturas que, segundo ele, não têm conseguido ir além da “aparência” dos processos que atingem diretamente a saúde.

Também a naturalização e repetição de categorias como ‘democracia’, ‘direito’ e ‘cidadania’, que ele caracterizou como “fracas” são, segundo Áquilas, outra expressão desse meio de caminho em que o movimento sanitário tem se posicionado. “Porque isso esconde a contradição de classes”, definiu, lamentando que setores importantes da esquerda – muito bem representados no campo da saúde – insistem em seguir um caminho institucional e reformista, acreditando ainda na ideia de que “esse Estado, do capital” possa estar a serviço de todos. “Nossa política de saúde é cada vez mais expressão do capital”, disse, denunciando que as propostas reformistas, que apostam apenas na promoção de políticas públicas, acabam sendo “coniventes” com os problemas que elas querem denunciar.

Crise

O pesquisador defendeu que é preciso, portanto, discutir o contexto particular do capitalismo contemporâneo – dominado pelo capital financeiro e particularmente pelo capital fictício – em que a saúde vem sendo imersa. “O capitalismo vive de crises”, explicou, ressaltando a importância de se compreender a crise como expressão da tendência declinante da taxa de lucro do capital. Mais do que isso, é necessário compreender que o capital tenta, a todo custo, fugir dessa tendência e, para isso, busca novas formas de produtividade, que garantam um caminho mais rápido de lucratividade. E, para isso, destacou o debatedor, conta com a ajuda primordial do Estado que, embora seja de fato espaço de luta de classes, precisa ser compreendido também como portador de uma “razão estrutural” do capital. É ilusão, portanto, na avaliação de Áquilas, acreditar que o Estado pode se opor ao capital.

Superar as ilusões na relação com o Estado é esforço antigo – e nada fácil – da “classe trabalhadora”, reconheceu André Dantas, logo no início da sua fala. O desafio, disse, é travar uma luta que se dá, necessariamente, no cotidiano – entendendo que nenhum processo revolucionário se resume a um ‘Dia D’ – mas sem limitar as lutas à solução parcial desses problemas imediatos. “Não é errado lutar por política pública. O problema é esse ser o teto da luta, como se um acúmulo de democracia ou de políticas públicas pudesse produzir a superação dessa ordem. Não há experiência histórica que nos autorize a dizer isso”, constatou.

Estado social?

Segundo ele, é preciso discutir, criticamente, uma “sombra que paira sobre as esquerdas”, com forte expressão no campo da saúde: a aposta na construção, ainda hoje, de um Estado de Bem-Estar Social, que ele caracterizou como um processo datado, localizado e “irreproduzível”. “Não podemos descolar aquela experiência da sua história”, defendeu, explicando que foram necessárias “duas guerras quentes e uma guerra fria” para gerar aquele arranjo. Num processo que ele chamou de “abuso metodológico e conceitual”, uma experiência histórica singular foi transformada numa categoria e num modelo a ser buscado, permitindo, inclusive gradações na sua implementação, como se a conquista de qualquer política pública pudesse ser considerada um passo na direção do Estado de Bem-Estar Social. “Essa tem sido a pretensão das esquerdas. E neste congresso de saúde coletiva, essa aposta se repete o tempo inteiro”, disse, destacando que isso é ainda mais estranho num país de formação social dependente como o Brasil.

Segundo André, a tentativa das esquerdas de se afastar, ao mesmo tempo, da direita e dos desvios autoritários do socialismo real, gerou a defesa de uma espécie de “caminho do meio”, que ele chamou de um “capitalismo democrático”, associado a um “Estado social”. “Isso é conversa mole”, criticou, ressaltando que o momento atual deixa claro que, mesmo nos países centrais, esse capitalismo social é desmontado tão logo as taxas de lucro caiam significativamente. É preciso compreender que o Estado de Bem-Estar Social foi um “desvio conjuntural” e não uma “contratendência” ao processo de acumulação do capital, disse, citando o “insuspeito” economista francês Thomas Piketty, que caracteriza o Estado de Bem-Estar Social como uma “anomalia”. Ressaltando a importância de uma perspectiva internacionalista na análise, ele destacou que, mesmo onde o Estado de Bem-Estar Social se realizou, nas nações mais desenvolvidas da Europa, isso se deu ao custo da exploração dos trabalhadores nos países periféricos.

Desconstruir essas ilusões é fundamental, de acordo com o pesquisador, para que se construam “táticas e estratégia” de luta consequentes, o que implica, entre outras coisas, não continuar apostando na luta institucional descolada das lutas pela base. “O que a gente precisa encarar é que não há alternativa de sobrevivência no capital se não fizermos uma luta anti-regime. Se não enfrentarmos o regime do capital, se não denunciarmos a propriedade privada, não haverá conquistas nem no interior da ordem do capital”, alertou.

Política (pública?)

Leonardo Carnut encerrou a mesa alertando que, no interior do movimento sanitário, a ideia de política vem se diversificando ao longo do tempo. Dito de forma mais precisa, ela vem sofrendo uma “redução da sua carga semântica”, restringindo-se ao âmbito das “políticas públicas”. Segundo ele, na década de 1970 – marco do movimento da Reforma Sanitária -, por exemplo, trabalhava-se com um conceito mais ampliado, que, mesmo agindo sobre uma pauta setorial, permitia “interpretações mais radicais e totalizantes”.

Esse processo veio se modificando até que, nos anos 2000, de acordo com o pesquisador, a política se torna sinônimo de política pública, associada, ainda, a uma concepção de gestão pública. Leonardo citou um trecho do Pacto pela Saúde, de 2006, como exemplo de uma tentativa de reverter essa tendência, embora sem sucesso. “A concretização desse Pacto passa por um movimento de repolitização da saúde, com uma clara estratégia de mobilização social envolvendo o conjunto da sociedade brasileira, extrapolando os limites do setor e vinculada ao processo de instituição da saúde como direito de cidadania, tendo o financiamento público da saúde como um dos pontos centrais”, dizia o texto.

Para Leonardo, o contexto atual, que ele nomeou como “pós-golpe de 2016”, torna urgente repensar esse processo, inclusive na própria interpretação do impeachment que, segundo ele, não pode continuar refém da crença na neutralidade do Estado nem, tampouco, da tendência de compreender os processos políticos de forma separada da dinâmica econômica. “A crise do pós-golpe é mais profunda do que os jogos políticos”, explicou.

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