Morador/a de rua pode ser despejado sem ordem judicial? Por Jacques Távora Alfonsin

“É pela costumeira insensibilidade classista e antissocial com que a lei é interpretada e aplicada que o despejo – despejo como esse, forçado sim – conta com a aprovação comum de quantas/os acham normal tratarem-se essas pessoas com a tranquilidade inerente a cultura praticamente generalizada de que pobre não tem direito algum”, escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos. Eis o artigo.

Na IHU OnLine

Um contingente da Brigada militar do Rio Grande do Sul promoveu na semana passada uma violenta remoção de dezenas de moradoras/es de rua, gente miserável, abrigada sob o Viaduto Otavio Rocha, zona central da cidade de Porto Alegre.

As versões da autoridade militar encarregada de comandar a ação não coincidem com as de algumas pessoas que sofreram o despejo forçado, segundo noticiou o Sul 21 de 2 deste agosto. Para a primeira, o local estava facilitando o assalto de pedestres e o tráfico de drogas. Para as segundas, algumas ali vivendo há anos, até o poder ficar com as poucas coisas que tinham lhes foi negado.

Nenhum juízo pode ser feito sobre a justificativa oferecida pelo comandante do despejo para agir como agiu, nem sobre a queixa de quem ficou sem teto e o pouco que tinha de seu, sem consulta ao conflito interpretativo que o caso impõe a, pelo menos, um artigo da Constituição Federal. O 5º da nossa chamada Carta Magna diz expressamente que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” Entre esses termos, dois chamam bastante a atenção, o LIV, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”; e o LV – “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

Ao que se sabe, a Brigada Militar não levou ao conhecimento daquelas pessoas qualquer mandado judicial para a remoção indiscriminada e autorização para confiscar lá o que encontrasse. Não serve de desculpa para isso a ausência da possibilidade de se identificar no conjunto das pessoas despejadas, quem lá assaltava ou traficava de quem lá se refugiou por não ter um teto para se abrigar. Inocentes e pobres, justamente por serem inocentes e pobres, não deixam de viverem nessa condição por vizinharem com criminosos.

Que vida, que igualdade, que liberdade, que devido processo legal, então, foi respeitado nesse caso? Ainda assim, entre o rigor técnico do juridiquês interpretado seletivamente, não faltará quem apoie a forma como tudo aconteceu pelo fato de o local em questão ser público, passagem de pedestres, o poder de polícia da administração pública ser “auto executável”, e a palavra despejo ser reservada na lei do inquilinato apenas para quem paga ou deixa de pagar aluguel. Isso seria suficiente para não se cogitar, no caso, nem de despejo, nem de direito à moradia, pois esse é inconcebível sob ponte, via pública, marquise, viaduto etc…

Consagra-se então a meia verdade de não existir direitos em tais casos sob evidente conflito, pondo-se em prática uma duríssima negação de justiça para o pobre ou miserável sem dinheiro nem para comprar, nem para alugar, nem tampouco de outro lugar para viver e morar. É pela costumeira insensibilidade classista e antissocial com que a lei é interpretada e aplicada que o despejo – despejo como esse, forçado sim – conta com a aprovação comum de quantas/os acham normal tratarem-se essas pessoas com a tranquilidade inerente a cultura praticamente generalizada de que pobre não tem direito algum. Mesmo que o de moradia, por exemplo, esteja previsto no artigo 6º da mesma Constituição.

Um abrigo improvisado, um barraco, um acampamento de sem teto ou sem terra não constituem moradia para essa cultura, ainda que outra alternativa não exista para um ser humano se defender da chuva, do frio, do sol, da intempérie. Despejar então, forçar violentamente o desapossamento, são verbos bastante reveladores do que acontece em casos tais. Quem despeja uma coisa lança-a sem rumo, atira de qualquer jeito. Só não é indiferente ao destino do que é despejado se a coisa incomodar como lixo. Aí então se dá ao trabalho de separar o seco, o orgânico, o reciclável etc… No caso, como acontece em quase todos os semelhantes, as pessoas despejadas não merecem sequer saber para onde vão e, se não bastassem incerteza e insegurança, ficam quase com a certeza de serem tratadas como lixo.

Pontes de Miranda, um famoso jurista brasileiro do século passado, escreveu um volumoso estudo sobre o Habeas Corpus, essa medida de defesa da liberdade, tão lembrada por quem se sinta ameaçado ou já tendo até perdido esse direito. Lá, ele afirmava que a liberdade não era só a de ir e vir, como se fosse reduzida apenas a movimentação dos seres humanos. Ela era também a de ficar, se uma tal disposição da pessoa estivesse sendo contrariada injustificadamente.

Se não podiam ficar onde estavam, no mínimo espaço de liberdade e posse que a sua pobreza ou miséria permitiam, a Força Pública que despejou essas pessoas do viaduto Otavio Rocha tinha a obrigação de não tratar a todas como criminosas, e mesmo a essas, não proibir defenderem-se. Lamentavelmente, o fato acabou evidenciando como, num sistema econômico, político e jurídico como o nosso, a tão proclamada liberdade, a igualdade de todas/os perante a lei, se medem é pela classe social, a renda, a posição, o dinheiro de cada um/a, e não pela dignidade pela qual devam ser reconhecidos/as.

Sob uma cultura viciada em exclusão social os direitos sociais também acabam vitimas da mesma doença. Tornar pública essa vergonha pode ser o primeiro remédio para a sua cura.

Moradores de rua tentam de proteger do frio com papelões e cobertores no Centro de São Paulo. Foto: Martha Alves /Folhapress

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