Manicômios judiciários funcionam como prisão e têm ‘novo conceito de tortura’

Relatório da Pastoral Carcerária lança luz sobre a condição desumana de portadores de transtornos mentais esquecidos em hospitais de custódia

Por Giovanna Costanti, na Carta Capital

“Dizem que não tem prisão perpétua no Brasil. Mas sabe onde tem? É aqui”. Esse foi o desabafo ouvido por uma equipe da Pastoral Carcerária em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico no interior de São Paulo.

O relato foi feito por um portador de transtornos mentais. Ele cometeu um delito, adentrou o sistema penal, mas não pode ser responsabilizado por suas ações. Em um local que a Pastoral chama de “manicômio judiciário”, ele cumpre sua pena, mascarada por um nome: medida de segurança.

O relatório Hospitais-prisão: notas sobre os manicômios judiciários de São Paulo, produzido pelo grupo de trabalho Saúde Mental e Liberdade, da Arquidiocese de São Paulo e obtido com exclusividade por CartaCapital lança luz sobre a forma como operam as medidas de segurança e os hospitais de custódia.

O que se viu, em visitas mensais e quinzenais aos hospitais de Franco da Rocha e Taubaté, foi que esses locais funcionam como o cárcere. Lá estão esquecidas pessoas com as quais o Estado não sabe ao certo como lidar. A situação, segundo o grupo de trabalho, é desumana.

“A lógica é totalmente manicomial. As pessoas ficam confinadas por tempo indeterminado, sem liberdade de ir e vir. O hospital de custódia é um prolongamento do sofrimento. A medida de segurança não tem prazo para acabar”, explica Caio Mader, membro do grupo de trabalho.

Além do prolongamento do cumprimento da medida, a forma como esses anos são gastos nos hospitais também preocupa a Pastoral. Há poucas atividades lúdicas ou de lazer. Em algumas unidades, os quartos – que muitas vezes abrigam uma ou duas pessoas – são chamados de celas e o horário de convivência no pátio é chamado de banho de sol. São claras alusões ao cotidiano prisional.

O sono, a refeição e as necessidades fisiológicas são todos feitos dentro da cela. Segundo Caio, há experiência de trabalho, mas a remuneração corresponde, em média, a apenas três quartos de um salário mínimo e o trabalho é manual e repetitivo.

Mauro Aranha, presidente do Conselho Regional de Medicina de SP, desaprova a situação. “Não adianta tratar o transtorno mental sem prover condições mínimas de vida e ressocialização”, explica.

O que mais chamou a atenção do grupo de trabalho, entretanto, foi o que Caio chamou de “um novo conceito de tortura”: a medicalização exacerbada. Segundo eles, os remédios são usados para acalmar qualquer tipo de comportamento mais agitado. Caio afirma que é comum ver pacientes babando ou em estado de dormência. “Talvez isso seja justificado como terapêutico, mas no fim serve a outros propósitos”.

Segundo o grupo de trabalho, são as mulheres as principais vítimas desse tratamento. O remédio é uma forma de controle das emoções do que Caio chama de “feminino patologizado”, uma clara violência de gênero. Os relatos demonstram o uso excessivo de antidepressivos e calmantes. “Muitas delas enfatizam que basta chorar para que sejam imediatamente medicadas”, afirma o documento.

Para Mauro Aranha, essa forma de tratamento, pautada no uso excessivo de remédios e no isolamento, passa longe de ser eficiente. Pior ainda: configura desrespeito aos direitos humanos. “Do ponto de vista humanitário, é inaceitável. Essas pessoas não tiveram responsabilidade pelo ato infracional”, explica ele. “Não é uma lógica da saúde, é a lógica do crime. Não é uma lógica de um Estado que cuida da reabilitação de pessoas.”

“Se eu te der o telefone, você liga pra mim?”

Segundo Caio, a questão familiar gera muita ansiedade nas pessoas que estão sob tratamento. Mauro complementa que o isolamento social, comprovadamente, pode levar até mesmo o suicídio, quão grave é à saúde mental.

Em um dos hospitais havia apenas dois assistentes sociais, que não conseguiam prover o contato adequado das pessoas com o mundo externo, nem seu processo de ressocialização. “Pedi para encontrarem meu pai, mas até agora não tive resposta. Se eu te der o telefone, você liga pra mim?”, foi o que ouviu o grupo em uma das visitas.

Esse tipo de pedido não aconteceu só uma vez. Em quatro anos de visitas, a ânsia pela localização da família foi uma constante. O sentimento de impotência também se personifica nos pedidos de laudos para a desinternação. “Chegamos a conhecer pessoas que ficaram por 30 anos institucionalizadas. Quanto mais tempo ela fica internada, menos ela tem autonomia ou laços familiares para que ela continue uma vida fora dos muros.”

O Supremo Tribunal Federal estabelece um tempo máximo de 30 anos para o cumprimento de pena, mas nos hospitais de custódia esse prazo não costuma ser respeitado. Muitas vezes, segundo Caio, é exigido um vínculo familiar para que a pessoa possa ser desinternada. A ironia é que os laços com parentes são quase que completamente perdidos nesse período.

“Como só há três hospitais no estado de São Paulo, você rompe totalmente os laços de pessoas que são do interior. As vezes a família tem que viajar mais de 500 km, isso sem ajuda financeira”, completa Caio, afirmando que, em geral, os pacientes vêm de cidades pequenas no interior ou de periferias da capital paulistana.

A Reforma Psiquiátrica de 2001, também conhecida como Lei Antimanicomial, gerou um modelo comunitário de tratamento e atenção à saúde mental. Os CAPS – Centros de Atenção Psicossocial – têm o papel de não afastar o paciente da sociedade. Os hospitais de custódia, segundo o relatório, colocam por água abaixo esse formato.

Quem são os “pacientes-detentos”?

“Aquele pátio tem uma cor, e não é a cor branca das pessoas de Pinheiros”, explica Caio, ao contar a sensação visual que tem ao adentrar um hospital de custódia. Segundo o relatório, assim como no sistema carcerário, os pacientes cumprindo medida de segurança são, em sua maioria, negros, de classes mais baixas e não frequentaram o sistema superior de ensino.

“Algumas vezes perguntamos para a assistência social como é a família do paciente. Em geral a gente recebe como resposta: É uma família desestruturada”, conta Caio. “Nesses ambientes, uma família desestruturada é sinônimo de pobreza, de relações conflituosas. Mas é também um jeito de criminalizar. Esse termo tem uma carga preconceituosa muito forte, porque é sempre referenciado para famílias de baixa renda”.

Mauro Aranha explica que a miséria agrava o transtorno mental. Segundo o doutor, é um “ciclo injusto”, que segue a lógica da exclusão social. “É perverso você induzir a sociedade a pensar que a miséria decorre das drogas e do transtorno, quando o que acontece é o contrário”. A miséria, na verdade, é facilitadora e perpetuadora do transtorno mental.

De fato, o documento mostra que a maioria daqueles que cumprem a medida de segurança passou por uma vida repleta de entraves sociais e econômicos relacionados à pobreza e à desigualdade social. “Eles não têm uma solução mágica para a desigualdade no Brasil de um dia para o outro, o que eles têm é o antidepressivo”, afirma Caio, em uma crítica ao Estado.

“Então eles dão medicamento como se fosse uma questão ideológica. A gente tenta mostrar que não basta fechar o hospital de custódia e construir CAPS, porque o que for construído no lugar pode muito bem continuar reproduzindo essa lógica”,

Imagem do documentário “A Casa dos Mortos”, da antropóloga Débora Diniz.

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