A Vale está atropelando quilombolas com processos para duplicar ferrovia no Maranhão

Por Sabrina Felipe, no The Intercept Brasil

“O senhor se vê em alguma dessas quatro fotos, seu Benedito?”, pergunto ao lavrador Benedito Pires Belfort, 75 anos. Ele aperta os olhos, ajeita os óculos no rosto, se aproxima da tela do computador e examina as imagens. “Não, não me vejo.”

Informo a ele que foi com base em um boletim de ocorrência e nas quatro fotos em preto e branco apresentadas, bastante granuladas e com a maioria das 28 pessoas aparecendo de costas que ele e mais cinco quilombolas foram processados pela mineradora transnacional Vale S.A. em 2014. É impossível ver com nitidez o rosto das cinco que aparecem de frente. “É mesmo?!”, pergunta, rindo da inconsistência da ação de reintegração de posse ajuizada pela empresa.

Em 23 de setembro daquele ano, mais de 500 quilombolas de Itapecuru-Mirim, no Maranhão, bloquearam os trilhos da Estrada de Ferro Carajás, a EFC, da Vale. O bloqueio aconteceu na altura do quilombo Santa Rosa dos Pretos para exigir que a mineradora e o poder público fossem transparentes no processo de consulta à população sobre as obras de duplicação da ferrovia, em curso desde 2013. Os quilombolas exigiam também que o governo federal cumprisse demandas relativas à demarcação das terras remanescentes de quilombos.

O processo de titulação de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo foi segurado por pelo menos três anos pela Vale, que em 2009 contestou a demarcação dos dois territórios alegando que não foi deixada terra suficiente para a duplicação da ferrovia. O protesto durou cinco dias e só terminou em 27 de setembro, quando uma comitiva do governo federal se apresentou no acampamento para conversar com a população.

Benedito Belfort está acostumado a defender a terra quilombola. Só não esperava um inimigo sem rosto. Foto: Sabrina Felipe

Belfort não só não aparece nas fotos que a Vale usou para processá-lo, como também não participou do primeiro dia de protesto, mesma data em que a ação de reintegração de posse foi movida. Ele havia passado por uma cirurgia em 2011 para a retirada de um coágulo no cérebro, e a família quis poupá-lo do calor antes que o acampamento estivesse totalmente montado, com proteções contra o sol. “No dia 24 [segundo dia de protesto], não me seguraram mais. Eu fui e fiquei até o dia que levantamos nossas baterias e viemos pra casa.”

De autores a réus

Anacleta Pires da Silva, 52 anos, é outra quilombola de Santa Rosa dos Pretos processada. Assim como Belfort, ela não se reconheceu em nenhuma das quatro fotos. Ela e as outras cinco pessoas citadas na ação da Vale são lideranças dos territórios Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo.

Com exceção do lavrador, todas apresentaram denúncias contra a mineradora em ação civil pública ajuizada em 2011 pelo Ministério Público Federal contra a Vale e o Ibama. A ação, que ainda tramita, foi aberta por que o grupo alega que há irregularidades no estudo de impacto ambiental das obras de duplicação da estrada de ferro. Segundo o MPF, a mineradora foi omissa ao não considerar no estudo Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo como territórios impactados pelo empreendimento. Em 2012, a Justiça Federal obrigou a empresa a realizar uma série de ações de mitigação e compensação nos dois territórios.

Seis anos após a decisão, a Vale ainda não cumpriu todo o acordo, segundo manifestação do juiz federal Ricardo Macieira e depoimentos de quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo. Já a duplicação da EFC está 85% finalizada, de acordo com a empresa, com 542 km duplicados do total de 637 km. A conclusão das obras está prevista para o fim deste ano.

Anacleta Silva também é uma das processadas. E também não está na foto. Foto: Sabrina Felipe

No dia do protesto, a mineradora enviou um ofício ao juiz informando sobre o bloqueio. Disse não ter nada a ver com o assunto, alegou ser a única prejudicada com o fechamento da EFC e pediu uma audiência sobre o tema. No dia seguinte, o juiz federal negou o pedido alegando que a insatisfação das comunidades não seria resolvida em audiência, mas, sim, no momento em que a Vale cumprisse as obrigações já demandas pela Justiça na ação civil pública.

Questionei a Vale sobre como a empresa identificou as pessoas nas fotos apresentadas como provas e pedi que apontasse nas imagens cada indivíduo citado na ação de reintegração de posse. A mineradora não respondeu a essas e outras questões relativas ao processo e informou que “não comenta decisões judiciais.”

Segundo Caroline Rios Santos, da rede Justiça nos Trilhos, advogada dos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo no processo, mover ações de reintegração de posse com provas inconsistentes é uma prática comum da mineradora.

“Na maioria das ações decorrentes de protesto nas quais a gente tem atuado, a identificação é super vaga. Não há uma preocupação, por exemplo, de indicar os motivos de aquelas pessoas serem apontadas como rés na ação. Em alguns casos são apenas moradores da região que nem participaram da manifestação”, ela me disse. “Mas a jurisprudência entende, em casos como esse, que é um ônus grande para a parte autora ter que identificar especificamente cada pessoa, e aceita uma identificação mais genérica.”

Nunca mais ocupar a EFC

Mesmo após três anos desde que a ação de reintegração de posse foi movida, e mesmo com a desobstrução da via – objeto da ação – ao fim do protesto, a juíza Mirella Freitas, titular da 2a. Vara da Comarca de Itapecuru-Mirim, intimou os seis quilombolas para uma audiência de conciliação com a Vale em junho de 2017.

A proposta do advogado da Vale foi que os quilombolas nunca mais, por qualquer motivo, ocupassem os trilhos da EFC, segundo Anacleta Pires da Silva, uma das líderes do movimento. Como contraproposta, Silva exigiu que a mineradora retirasse das terras quilombolas todos os trilhos da estrada de ferro. Não houve acordo.

No último dia 9 de julho, quase quatro anos depois da desobstrução da EFC, a juíza Mirella Freitas determinou que fosse feita “a citação por edital das demais pessoas que participaram da invasão à EFC.” A advogada da rede Justiça nos Trilhos afirmou que não há, nos autos do processo, nenhuma notícia de nova manifestação ou perturbação da posse da empresa. “Inclusive, ao assumir obrigações com as comunidades na ação civil pública, ela [Vale] reconhece a legitimidade da reivindicação”, explicou a advogada. Considerando todos esses fatos, a defesa dos quilombolas considera que o processo perdeu a razão de existir, especialmente porque a EFC foi desocupada em setembro de 2014.

Belfort é escolado na defesa de sua terra. Há quatro décadas, enfrentava grileiros e fazendeiros face a face. Sua luta pelo quilombo Santa Rosa dos Pretos seguia o rastro da batalha pregressa dos homens e mulheres sequestrados na Guiné-Bissau nos séculos 18 e 19 e trazidos a Itapecuru-Mirim para trabalharem como escravos em fazendas de algodão, café e cana de açúcar de invasores europeus.

Belfort brigava por uma terra conquistada na ponta da chibata. “Eu conversava com grileiro de olho a olho e dizia ‘o senhor está errado, nós vamos resolver o problema aqui, e, se não resolver, vamos levar pra justiça. E levava. Eu nunca tive medo”, ele me disse. Nos anos 1980, chegou a peitar o então vice-governador, João Rodolfo Ribeiro Gonçalves, que havia colocado gado para pastar na roça de mandioca de Benedito, destruindo a produção. Na ação direta e no argumento, a briga foi vencida pelos quilombolas.

Hoje, porém, as coisas mudaram. O antagonista não tem rosto e nem se apresenta para o confronto. Age à distância e em silêncio. Para o lavrador, a continuação do processo, tanto quanto seu início, não tem sentido.

“Quando eu recebi a notícia do processo, pra mim aquilo não existiu. A gente não tava tirando nada da Vale. A gente tava brigando pelo nosso direito, e, se a Vale tava com a culpa, ela tinha que desocupar o que era nosso”, diz o lavrador. “Ser processado pela mineradora intimidou o senhor na sua luta?”, perguntei. “Não. Na época que eu era delegado sindical, eu resolvia as coisas sozinho. Agora, nós temos vários companheiros, amigos, não só daqui de Itapecuru, como de São Luís, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Estados Unidos, e com isso a gente se fortalece muito mais. Agora é que não dá de ter medo. Essa luta eu só deixo quando morrer.”

Foto: Reprodução

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