América Latina e a busca de um modelo econômico pós-extrativista. Entrevista especial com Dário Bossi

Por: Patricia Fachin, no IHU

“Muitos pensam que não é um problema para um país depender economicamente dos recursos naturais que tem à disposição em seu território”, diz Dário Bossi à IHU On-Line. Entretanto, adverte, a pauta extrativista que visa à exploração de bens naturais propicia ao país “um desenvolvimento instável, fortemente dependente das flutuações dos preços internacionais das matérias-primas, de visão curta e sem futuro, pela finitude dos recursos à disposição”.

Lamentavelmente, comenta, essa é a política que tem orientado muitos países da América Latina, que são governados por partidos à direita e à esquerda. A consequência dessa opção, frisa, é que “vários países latino-americanos estão se desindustrializando por achar mais conveniente no curto prazo investir pesadamente no extrativismo. O Brasil está experimentando uma das maiores desindustrializações da história, em um período muito curto: nos anos 80 e 90 o setor industrial representava 35% da produção nacional, mas hoje está abaixo dos 12% e segue em diminuição”.

Na avaliação de Bossi, a América Latina precisa de uma alternativa pós-extrativismo, que “não significa proibir todas as formas de extrativismo, mas sim redimensionar este setor, deixar de depender economicamente dele e manter as operações que sejam realmente necessárias e tenham impactos socioambientais aceitáveis”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Dário Bossi também comenta o Encontro com Afetados(as) pela mineração na América Latina, que foi realizado entre 7 e 10 de agosto, em Brasília, e os impactos ambientais e sociais gerados pela mineração no Brasil.

O grupo Iglesias y Minería é uma rede latino-americana de comunidades cristãs, religiosas e religiosos que, com o apoio de diversos bispos, da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, do departamento Justiça e Paz da Conferência Episcopal Latino-Americana – Celam e do Consejo Latino Americano de Iglesias – Clai, articula-se há dois anos para fazer frente aos impactos da mineração.

Dário Bossi, padre comboniano, é membro da rede Justiça nos Trilhos e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais foram os temas centrais debatidos no Encontro com Afetados(as) pela mineração na América Latina, que foi realizado entre 7 e 10 de agosto?

Dário Bossi – A rede Igrejas e Mineraçãojá promoveu três grandes assembleias de comunidades afetadas na América Latina. O recente encontro, convocado em Brasília, foi iniciativa desta rede, do Departamento de Justiça e Solidariedade do Conselho Episcopal Latino-Americano – Celam, do GT Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e da rede Cidse(a aliança internacional das agências católicas para o desenvolvimento).

Tratou-se de um encontro temático, com o objetivo de qualificar e relançar a incidência junto às igrejas a respeito dos graves impactos da mineração, a partir da recente Carta Pastoral do Celam “Discípulos Misioneros, Custodios de la Casa Común”. Essa carta é a contextualização latino-americana da Laudato Si’ e é considerada um marco importante para a Doutrina Social da Igreja em nosso continente. Já foi traduzida informalmente para o inglês, o francês e o alemão; por ocasião do encontro de Brasília, a CNBB comunicou oficialmente que será também traduzida em português e divulgada em todas as dioceses do Brasil.

Participaram 35 pessoas, de oito países latino-americanos: leigas(os), religiosas(os) e padres atingidos e/ou comprometidos a serviço das comunidades. Estava presente também dom Sebastião Duarte, bispo presidente do GT Mineração da CNBB. Iluminados e incentivados pela Carta Pastoral, os participantes avançaram na definição dos eixos de trabalho e dos compromissos das igrejas frente às violações e ameaças da mineração nos territórios. Entre eles, relançou-se o empenho da comunicação a serviço das comunidades e sua articulação em rede, o aprofundamento da ecoteologia e da espiritualidade popular que alimenta a defesa da terra, a interação e incidência com as hierarquias das igrejas.

Também foi apresentada a campanha “Desinversão Mineira”, que propõe uma contranarrativa do modelo econômico sustentado pelas grandes empresas e convida as instituições religiosas a retirarem seus investimentos do capital dessas corporações.

Mas o tema mais importante é o compromisso em defesa da vida em cada território local. Foi por isso que nosso encontro em Brasília começou com uma visita a campo, encontrando as comunidades atingidas de Paracatu-MG, e concluiu-se com um envio de todos os participantes às comunidades de base e às suas igrejas locais.

IHU On-Line – Qual é o atual cenário da mineração no continente latino-americano?

Dário Bossi – Desde a época colonial nosso continente foi considerado um fornecedor de recursos para o desenvolvimento alheio. Nos anos 90, especialmente, houve uma série de grandes investimentos em mineração na América Latina, tornando esta macrorregião o primeiro provedor mundial de muitos minerais, mas provocando assim consequências em larga escala de dor, morte, doenças, contaminação e destruição, impossíveis de reparar ou compensar. Entre 2004 e 2008, houve o chamado “boom das commodities”, um superciclo de exploração mineira diretamente ligado à expansão da economia chinesa. Nestes poucos anos, as corporações e as médias empresas de mineração aumentaram muito seus lucros e acumularam grandes quantidades de capital. Por ocasião da crise de 2008, começou uma certa estagnação também na economia mineral e uma queda dos preços internacionais dessas commodities. As empresas aproveitaram esse período para preparar condições para novos cenários de expansão, havendo assim pressão das associações empresariais e das corporações transnacionais sobre os poderes públicos de cada estado em vista da desregulação social e ambiental.

No Brasil, consolidam-se lobbies que solicitam abertura da mineração em terras indígenas e flexibilização do código ambiental. É decretado o novo marco legal da mineração, com condições favoráveis à expansão desse setor. Em toda América Latina, há sérios retrocessos em matéria de políticas ambientais e de proteção dos direitos dos povos e da natureza, enfraquecendo-se o direito dos povos e das comunidades à terra e ao território.

Confirma-se evidentemente o papel dos estados a serviço do extrativismo, também através de incentivos financeiros e da legitimação da mineração como um dos caminhos principais para o desenvolvimento. Mais recentemente, os fluxos de investimento em mineração estão se reativando, seja na pesquisa, seja em equipamentos, extração mineral, infraestrutura e plantas de beneficiamento. Com isso, volta a aumentar o número de conflitos territoriais.

O mapa dos empreendimentos mineiros vem quase sempre a coincidir com o mapa destes conflitos. Vejam-se, a título exemplificativo, dois documentos extremamente interessantes: o mapa de conflitos do Observatorio de Conflictos Mineros en América Latina – Ocmal e o Atlas de Justiça Ambiental. Ocmal apresenta a cada ano um estado da situação da mineração e seus conflitos no continente. Pode-se acessar aqui o último relatório, de 2017.

IHU On-Line – Quais são os principais problemas ambientais e sociais gerados pelo extrativismo na América Latina? Pode nos dar exemplos de implicações sociais e ambientais geradas por essa prática?

Dário Bossi – Para os leitores(as) entenderem a situação global, prefiro partir de um exemplo concreto: a visita do grupo convocado a Brasília às comunidades atingidas de Paracatu-MG. Todos os participantes destacaram muitas coincidências com as situações vividas em seus países de origem, mostrando assim que a mineração se encaixa num padrão internacional de violações e ameaças à vida.

Desde 1987, funciona em Paracatu a maior mina de ouro a céu aberto do mundo, hoje operada pela companhia canadense Kinross. É a mina com mais baixo teor de ouro entre as que operam no mundo: para conseguir 1 g de ouro é necessário explodir e tratar quimicamente com cianeto 2,5 toneladas de minério! Todo ano, assim, a Kinross explode e retira do solo 61 milhões de toneladas de terra, depositando-as de novo, contaminadas com arsênio, nas represas de rejeitos que circundam a cidade.

Uma delas, com 440 milhões de toneladas de rejeitos, já está cheia. Outras duas estão sendo utilizadas — todos lembramos o crime ambiental da Samarco, em Mariana, onde o rompimento de uma barragem de rejeitos provocou a morte de 20 pessoas e a contaminação de uma bacia hidrográfica inteira.

As águas da chuva penetram nesses imensos depósitos de descartes contaminados e são escoadas nos igarapés e rios da região. Um relatório do Centro de Tecnologia Mineral do Governo Federal atesta que mais de 95% da população amostrada apresentou teores de arsênio em urina. Esse veneno provoca diversos tipos de câncer, diabetes, alterações endocrinológicas e vários problemas de pressão arterial e respiratórios.

A comunidade de pequenos produtores rurais de Santa Rita, muito pobre, foi dividida pela empresa, que comprou a terra de alguns, afastando-os da região, mas não mostrou interesse por outros, que ainda continuam num território completamente contaminado e esquecido. São os descartes do sistema, que esmolam sobrevivência e reivindicam dignidade, mas que até hoje não foram escutados por ninguém.

Apesar de tudo isso, a mineradora estrangeira opera há anos com todas licenças sociais e ambientais aprovadas. A previsão de vida da mina é até 2040. No espaço de mais uma geração, a corporação canadense se retirará, provavelmente deixando só um enorme buraco e milhões de toneladas de lixo tóxico na região.

IHU On-Line – Pode nos dar um panorama da situação dos afetados pela mineração na América Latina? Qual é o perfil dos atingidos e quais são os principais relatos e demandas deles?

Dário Bossi – Além das violações socioambientais acima exemplificadas, uma outra grave violação que está aumentando é a expulsão de famílias, comunidades ou povos originários de seus territórios. Uma agressão gritante é a criminalização do protesto popular, que é considerada uma “re-vitimização”, porque as pessoas são atingidas pela segunda vez quando tentam denunciar as violações que elas sofrem.

As empresas e os agentes estatais, frequentemente aliados aos grandes canais de divulgação midiática, estruturam campanhas de desprestígio e difamação das lideranças ou entidades que se opõem aos grandes projetos de mineração.

O Estado, que deveria a princípio defender os cidadãos em condições mais frágeis, passa a ser um aliado do capital das corporações mineiras e uma sentinela que garante a segurança dos investimentos delas. É comprovado, nos últimos anos na América Latina, um aumento da participação das forças públicas (polícia e exército) nos ataques e repressões à população em protestos contra os danos da mineração.

Da mesma forma, está aumentando a impunidade sistêmica e a falta de atuação do poder público nos inúmeros casos de agressão violenta (e frequentemente morte) de defensores de direitos socioambientais.

O último relatório anual de Global Witness (2017) reporta o número mais alto até agora de defensores da terra e do meio ambiente que foram mortos: 197 num só ano, sendo quase 60% deles na América Latina. O documento destaca que as causas principais dessas mortes são o agronegócio e a mineração.

O jornal inglês The Guardian comenta que nesses casos a abundância dos recursos é inversamente proporcional à autoridade da lei e à regulamentação ambiental. Associa estas mortes à responsabilidade de “uma economia global guiada pela expansão e o consumo”.

IHU On-Line – Quais são as implicações econômicas para a América Latina ao se apostar num modelo econômico ancorado no extrativismo?

Dário Bossi – Muitos pensam que não é um problema para um país depender economicamente dos recursos naturais que tem à disposição em seu território. A pauta extrativista, vinculada ou não à privatização das empresas que exploram os bens naturais, orientou a grande maioria dos governos da América Latina, seja de direita ou de esquerda. Estes últimos têm baseado seu projeto de desenvolvimento popular sobre uma política econômica que vem sendo definida como “neoextrativismo progressista”.

O desenvolvimento é associado única e exclusivamente ao crescimento econômico; a maneira mais simples para garantir um balanço comercial positivo e capital monetário rapidamente à disposição dos governos é a exploração e exportação das commodities. Os gestores mais progressistas têm investido os lucros gerados por esta economia primária em políticas estatais de distribuição de renda, geração de emprego, aumento dos salários e fortalecimento do consumo interno.

Trata-se, porém, de um desenvolvimento instável, fortemente dependente das flutuações dos preços internacionais das matérias-primas, de visão curta e sem futuro, pela finitude dos recursos à disposição. Em muitas regiões mineiras estruturou-se uma economia de enclave, totalmente dependente destes recursos, sem algum interesse ou incentivo à diversificação ou à qualificação profissional da força de trabalho.

Vários países latino-americanos estão se desindustrializando por achar mais conveniente no curto prazo investir pesadamente no extrativismo. O Brasil está experimentando uma das maiores desindustrializações da história, em um período muito curto: nos anos 80 e 90 o setor industrial representava 35% da produção nacional, mas hoje está abaixo dos 12% e segue em diminuição.

Assim, os estados se tornam cada vez mais dependentes do ponto de vista comercial e econômico; como num círculo vicioso, cresce a necessidade de exportar para poder financiar crescentes importações de bens de consumo.

Opção extrativista

Os países que fazem a opção extrativista, a fim de atrair o investimento de capital para seus grandes projetos, se veem frequentemente obrigados a reduzir a regulação estatal, abaixar taxas e impostos e abrir-se à instalação de corporações transnacionais em seus territórios, que representam literalmente “um estado dentro do estado”.

No caso de violações de direitos cometidas por essas multinacionais, por exemplo, é muito difícil responsabilizar as empresas estrangeiras e processá-las no território em que operam; chega-se até ao limite das corporações reivindicarem o direito de processar os próprios estados nacionais, pela cláusula de proteção de seus investimentos, nos casos em que projetos de exploração mineral viessem a serem suspensos por protestos da sociedade civil (é o caso do litígio Pacific Rim/Oceana Gold versus El Salvador, felizmente concluso com a Lei Nacional de veto à mineração metálica em todo o país).

Finalmente, consideremos que a economia extrativa é aquela que mais abundantemente desvia dinheiro para paraísos fiscais, e o Brasil é o quarto país do mundo nessa prática: em 2010 calculou-se um desvio de mais de 1 trilhão de reais. Não se pode afirmar, portanto, que o extrativismo beneficia a economia nacional, e sim, de maneira descontrolada, a acumulação de capital das grandes corporações.

IHU On-Line – Entre os que são favoráveis ao extrativismo, argumenta-se que os indígenas e quilombolas deveriam ter suas terras reduzidas para dar espaço ao extrativismo e ao agronegócio, por exemplo. O que seria um modo adequado de vida dessas comunidades nos seus territórios, sem apelar ao extrativismo?

Dário Bossi – Essa argumentação de quem apoia a opção extrativista confirma o fato que estamos no campo de disputa de dois modelos radicalmente diferentes. A Carta Pastoral do Celam o descreve como o conflito entre o modelo predatório e aquele de convivência do ser humano com o resto da Criação. O modelo predatório baseia-se sobre uma produção ilimitada, extensiva (que precisa de grandes áreas geográficas) e intensiva (que busca produtividade cada vez maior, através da tecnologia aplicada à natureza).

Não podemos negar ou fugir deste conflito, precisamos explicitá-lo e nele assumir uma posição. O papa Francisco denuncia o modelo de desenvolvimento “anônimo, asfixiante, sem mãe, com sua obsessão pelo consumo e seus ídolos de dinheiro e poder” (trecho do documento de estudo em preparação ao Sínodo especial para a Amazônia).

Por outro lado, os povos indígenas mantêm um modo de vida e uma cultura fundada no cuidado da Mãe Terra. Eles vigiam os rios e são protetores da floresta e dos recursos. A eles, em Puerto Maldonado (Peru), o papa Francisco disse: “é justo reconhecer a existência de esperançosas iniciativas que surgem das vossas próprias bases e organizações, procurando fazer com que os próprios povos originários e as comunidades sejam os guardiões das florestas e que os recursos produzidos pela sua conservação revertam em benefício das vossas famílias, na melhoria das vossas condições de vida, da saúde e da instrução das vossas comunidades”.

Pesquisas demonstram que somente pelo fato de ser uma terra indígena homologada, diminui de 20 a 30 vezes a chance de ocorrer desmatamento, quando comparada com áreas adjacentes a esses territórios. Guardiões da Floresta é um título com o qual diversos povos indígenas se autodenominaram; lembremos, por exemplo, a aldeia Apiwtxa, no Acre ou os Ka’apor, do Maranhão.

O modo de vida dos povos originários na América Latina resgata a perspectiva do Bem Viver e desafia nossa cultura ao diálogo respeitoso com tradições que convivem com as diferenças multipolares da vida, valorizam a complementariedade e a unidade indissolúvel de espaço e tempo, lutam de forma permanente para a descolonização de suas terras, pensamentos e tradições.

IHU On-Line – O que tem sido sugerido como um modelo alternativo ao extrativismo?

Dário Bossi – Não é mais suficiente buscar um “desenvolvimento alternativo” (melhorar a tecnologia, diminuir os impactos, compensar os danos deste modelo econômico-produtivo); precisamos urgentemente visualizar, propor e construir “alternativas ao desenvolvimento”. Eduardo Gudynas, especialista uruguaio em temas relacionados ao meio ambiente e desenvolvimento, nos orienta bastante nessa reflexão.

É necessário transformar as próprias bases ideológicas do desenvolvimento, nossas concepções sobre a qualidade de vida, o crescimento econômico e o consumo. Abandonar a fé no desenvolvimento ilimitado e resgatar princípios mais profundos, como o Bem Viver.

Uma alternativa é o “pós-extrativismo”. Não significa proibir todas as formas de extrativismo, mas sim redimensionar este setor, deixar de depender economicamente dele e manter as operações que sejam realmente necessárias e tenham impactos socioambientais aceitáveis.

É claro que essa transformação não poderá acontecer rápida e radicalmente. Gudynas faz referência a “transições”, como passagens de um extrativismo “predador” para ritmos e taxas “sensatos” e, finalmente, às atividades “indispensáveis”.

As transições rumo ao pós-extrativismo devem declarar o que está proibido (por exemplo a mineração de ouro; na Amazônia, o saque de qualquer recurso natural), o que precisa ser reformado (escalas, tecnologias e destinos da mineração) e quais são as possibilidades a serem incentivadas (por exemplo, a agricultura diversificada e orgânica).

Para sustentar essas transições, é necessário construir uma base social consistente, que as apoie e exija políticas econômicas inspiradas no pós-extrativismo. Deve-se recuperar o papel do Estado e da sociedade para a regulação do mercado. Precisa impor às indústrias extrativas uma reforma tributária em escala macrorregional, cujos frutos poderão permitir uma ampla diversificação econômica.

IHU On-Line – Como a encíclica Laudato Si’ e a carta pastoral do Celam, “Discípulos Misioneros Custodios de la Casa Común”, podem contribuir para sugerir alternativas ao extrativismo de minério?

Dário Bossi – Estes importantes documentos da Igreja não são tratados técnicos, nem têm a pretensão de planejar políticas econômicas; porém, oferecem importantes inspirações e princípios fundantes.

O Celam define o extrativismo como “uma desaforada tendência do sistema econômico a converter em capital os bens da natureza”. Por sua vez, a Laudato Si’ convida a uma “corajosa revolução cultural” (n. 114) e uma “mudança radical na compreensão e prática da economia” (n. 194), buscando incessantemente alternativas ao modelo do descarte e à economia do saque.

A Carta Pastoral dos bispos latino-americanos afirma que um grande desafio, horizonte que precisamos alcançar, é a satisfação das necessidades humanas para que todos tenham terra, teto e trabalho. Para isso precisa de “um esforço de engenhosidade e criatividade, baseado na grandeza espiritual de uma economia de comunhão”. Ambos os documentos declaram que a terra, o ar e a água são bens comuns, o acesso aos quais é direito de todos, o cuidado dos quais é dever de todos.

Uma intuição nova e relevante da Laudato Si’, que inclusive está inspirando o processo de escuta do Sínodo especial para a Amazônia, é a necessidade de assumirmos a perspectiva dos povos originários, resgatando suas culturas e modos de vida, garantindo seu protagonismo e sua autodeterminação nos territórios.

Nesse sentido, um instrumento essencial é o consentimento prévio, livre e informado das comunidades com respeito a qualquer projeto que preveja se instalar em seus territórios. Esse mecanismo garantirá, a partir da consulta local, a existência de áreas reconhecidas pelo poder público come “livres da mineração”.

IHU On-Line – Qual tem sido a atuação da Igreja na discussão sobre a mineração e a situação dos afetados?

Dário Bossi – A rede Igrejas e Mineração tem sido um ator relevante no continente sobre este tema. Fundada em 2013, a partir de uma iniciativa informal de alguns grupos religiosos preocupados pelo aumento descontrolado da criminalização de líderes das comunidades cristãs em oposição à mineração, a rede cresceu muito nos anos seguintes, articulando diversas comunidades atingidas e afirmando-se como interlocutor importante junto às igrejas.

Aos poucos, a rede consolidou-se como um espaço plural, ecumênico e autoconvocado, formado por comunidades cristãs, equipes de pastoral, congregações religiosas, grupos de reflexão teológica, leigas e leigos defensores de direitos humanos, bispos e pastores.

A iniciativa de Igrejas e Mineração levou a CNBB à criação oficial de um grupo de trabalho sobre mineração, com a participação de três bispos e outros cinco assessores especializados. As denúncias da rede provocaram o então Pontifício Conselho Pontifício de Justiça e Paz (hoje Dicastério Vaticano para o Desenvolvimento Humano Integral) a convocar em Roma (julho 2015) um encontro mundial de atingidos(as) por mineração, que foi preparado em coordenação com Igrejas e Mineração.

Além de três assembleias continentais, a rede já promoveu um amplo seminário sobre ecoteologia, publicou um livro, uma revista ecoteológica e um vídeo-documentário sobre os desafios para as igrejas latino-americanas frente ao extrativismo. A rede tenta reforçar a atuação das comunidades locais no enfrentamento das violações da mineração e assessora as igrejas para que assumam ativamente sua defesa e acompanhamento.

O GT Mineração da CNBB realizará um encontro das comunidades afetadas e das igrejas do Nordeste do Brasil, no próximo mês de novembro, em Açailândia, MA.

Também o Sínodo especial para a Amazônia é uma pauta prioritária sobre o tema da mineração; a rede está participando do processo de escuta e oferece insumos para denunciar o modelo saqueador imposto, promulgar e defender as alternativas possíveis.

Foto: Tim Robert.

Comments (2)

  1. Você pode abrir qualquer jornal, assistir qualquer canal de televisão e não vai receber informação sobre este negócio bilionário da destruição que está transformando o país outrora mais rico do mundo por Natureza em deserto envenenado. (Afinal, a grande mídia também depende e recebe dos que são os responsáveis por esta transformação letal …)
    Quem sim sabe somos nós. Os afetados, burlados, pisados, violentados e primeiros condenados a morte por essas coligações apocalípticas de bandidos-políticos e bandidos-empresários e seus acionistas que usufruem de carta branca em nosso perverso “progresso” e nossa perversa “ordem” bandeirante-capitalista. Só que nós nunca temos voz nas mídias em mãos de oligarcas. (Nem nas escolas onde deveríamos estar dando as aulas sobre o valor da vida.) Nem sequer existimos para estes senhores donos das mídias que tão burros ainda não entendem que seus filhos e netos não poderão se alimentar do dinheiro e ouro sangrento que andam acumulando.

    Portanto fico grato ao http://racismoambiental.net.br/
    Por ser uma bolsa de informação diferente.

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