“O saneamento deve ser público e encarado como direito”, afirma pesquisador

Alexandre Pessoa Dias, professor e pesquisador, aborda os riscos da Medida Provisória do Saneamento assinada por Temer

Vinícius Sobreira, Brasil de Fato

Em julho, Michel Temer assinou uma Medida Provisória (MP 844/18) que muda as diretrizes do marco legal do saneamento básico no país. Uma das principais medidas da MP, que mexe na Lei de Saneamento Básico (2007), é uma abertura para a privatização do setor no país. Conversamos sobre o assunto com Alexandre Pessoa Dias, engenheiro sanitarista, e professor pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz). 

Brasil de Fato – Como está a questão das águas e das secas no Brasil?

Alexandre Pessoa – O país passa por uma crise hídrica e isso se expressa na oferta e na demanda de água. Na oferta pelos efeitos climáticos, pelos processos de poluição que vão reduzindo as colisões hídricas com condições de uso humano, dificultam até o seu tratamento. E no aspecto da demanda, aumenta-se cada vez mais o consumo de água e existe uma disputa clara entre a prioridade do uso da água de beber para consumo humano e de animais, com o conflito de água, por exemplo, decorrente de grandes empreendimentos indústrias e mesmo de produção agrícola no modelo do agronegócio. Nós observamos que a prioridade do consumo de água dos grandes empreendimentos está impactando os pequenos agricultores, os povos, as comunidades tradicionais e mesmo cidades que vem sofrendo com estresse hídrico, que no período de 2012 a 2017 foi muito agravado por um prolongamento de uma seca histórica de alta severidade. Seca que começa a comprometer diversos açudes e secá-los completamente em alguns estados, em decorrência dessa estiagem. E por último, chegamos ao nível de uma seca agrícola que se traduz no comprometimento da produção e da reprodução da vida no campo, que exige ações emergenciais de carro pipa, processos que são vulnerabilizados e que, além de comprometer a saúde da população, também gera um empobrecimento. E mesmo depois desse período de estiagem, o retorno de diversos açudes, barragens a uma condição de volume que dê uma segurança hídrica ainda vai demorar um tempo. Então temos um estresse hídrico, uma crise hídrica que também não está localizada somente no Semiárido. Ela também se expandiu para outras regiões do país, que óbvio tem relação também com processos de desmatamento, processos de desertificação, com processos de ações humanas de não preservação do que produz a água. E o que produz a água são as florestas, as matas ciliares e essas unidades produtoras de água precisam ser preservadas, na medida que uma forma, um modelo de desenvolvimento agrícola pautado no agronegócio com alta intensidade de produção, que consome muita água e isso traz impactos socioambientais.

BdF – O que representa dentro cenário o Programa Nacional de Saneamento Rural?

Alexandre – O Brasil tem uma dívida histórica com as populações do campo, das florestas e das águas no que diz respeito a termos um Programa Nacional de Saneamento Rural. Sem dúvida que houve diversas iniciativas importantes de acesso à água, e eu destacaria, por exemplo, o Programa Água para Todos, dentro do Brasil Sem Miséria, que significou ampliar em escala a oferta de cisternas de aproveitamento de água de chuva, além de outras intervenções de saneamento em pequenas cidades. A necessidade de estabelecimento de um programa de saneamento rural sempre ocorreu. Porque o programa estabelece as prioridades dos usos dessas águas e metas de curto, médio e longo prazo para reverter o déficit sanitário, tanto do abastecimento de água, do esgotamento sanitário, do manejo dos resíduos sólidos e do manejo das águas de chuva. Para além disso, o programa veio da Política Nacional de Saneamento Básico, que já preconizava a necessidade da elaboração de um programa específico para o saneamento rural. Nesse sentido, ainda no governo anterior foi dado a incumbência para a FUNASA . Com o desafio de apresentar sob o ponto de vista da gestão, da tecnologia e mesmo dos processos de educação, alternativas tecnológicas que possam dar respostas para um país continental, com realidades bastantes distintas. Então sem dúvida que é um esforço não só de recursos financeiros para sua implementação, mas como a necessidade de também trabalhar com a intersetorialidade, como, por exemplo, da relação que é necessário que exista entre o saneamento e a produção agrícola, aonde a agroecologia já se apresenta como experiência exitosa em várias regiões do país. O programa é uma necessidade histórica e se traduz no fortalecimento das políticas públicas, não só do setor de saneamento, mas obviamente que fortalece a política de meio ambiente, a política de saúde pública, a política de transporte na sua intersetorialidade.

BdF – Sobre a Medida Provisória do Saneamento, a MP 844/18, assinada por Temer, significa uma abertura maior para atuação de empresas privadas no saneamento?

Alexandre – Acho que aí tem duas concepções antagônicas. Ou encaramos o saneamento como direito humano ou seguiremos uma cartilha neoliberal de saneamento como mais um mercado e a água como mais um elemento de mercadoria. Sem dúvida que a história nos mostra, não só do Brasil, mas também a nível internacional, de que o saneamento deve ser uma política pública. E que a privatização não segue a lógica do objetivo estratégico do saneamento que é a saúde pública. Na medida que ela passa, que a medida provisória passa a ser mais permeável as ações das empresas privadas, que tem como objetivo o lucro, isso diminui a proteção social e vulnerabiliza mais as populações, porque estamos falando de um bem que é limitado e que tem que ser priorizado a partir do seu objetivo de saúde pública. Para além disso, essa medida provisória vem num momento extremamente inadequado, ou seja, estamos em término de um governo, de um presidente que não foi eleito e que ao término do seu mandato toma uma iniciativa de grande impacto da políticas públicas sem nenhuma discussão com os setores de saneamento. O saneamento deve ser público e encarado como direito e que também necessita do controle social, que é um componente importante para a qualidade e gestão desses serviços no país.

BdF – Que impacto a população pode sentir se realmente o congresso aprovar a MP, abrindo as portas para as empresas privadas atuarem nessa área?

Alexandre – A lógica da rentabilidade pode gerar, inclusive, que os recursos advindos do saneamento, da tarifa, seja aplicada em bolsa de valores, em vez de serem aplicados na ampliação do sistema de saneamento. Isso já ocorre no Brasil e a experiência da privatização além de reduzir o papel do Estado na lógica de um papel mínimo, esse mesmo Estado já se mostrou incapaz de promover o controle dessas empresas. Então a população já tem experiências com relação a privatização do setor elétrico, da telefonia. O problema do saneamento é que ele é um monopólio natural. Você não teria duas empresas de saneamento fornecendo água para a mesma habitação então essa condição de monopólio natural, em um Estado mínimo que sofre influência importante das corporações que fomentam o próprio processo de privatização, nos sinaliza que é uma ponta do iceberg porque a continuidade disso pode descaracterizar todo o avanço que foi a implementação da política Nacional de Saneamento Básico que o país conquistou com muitas dificuldades. Eu penso que é tempo de resistir contra essas medidas, eu acho que cabe as instituições públicas defender as políticas públicas e fazer uma discussão com a população dos impactos que certamente trará, não somente na possibilidade e aumento das tarifas, mas mesmo na qualidade dos serviços prestados. Então isso, se é visto pelas empresas como uma oportunidade de negócio na perspectiva da saúde, pode ser visto como uma ameaça aos direitos da população.

Edição: Catarina de Angola.

Foto: Fernando Frazão /Agência Brasil.

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