Para além do acirramento da violência urbana, do desemprego e outras mazelas que fazem parte do cotidiano do Rio de Janeiro, também vemos uma escalada de autoritarismo no judiciário fluminense em relação a manifestações e movimentos sociais, que ficou clara com a recente condenação de 23 manifestantes a sete anos de prisão a partir de um processo considerado inconsistente pela defesa e por organizações de direitos humanos. Além disso, o caso de Rafael Braga, o primeiro preso e condenado nas manifestações de 2013, segue desfavorável ao réu e repleto de arbitrariedades. Sobre este contexto conversamos Carlos E. Martins, advogado carioca que acompanha manifestações e manifestantes desde 2013, e um dos defensores de Rafael Braga.
“(Sobre o caso do Rafael Braga), para que possamos observar um final, não digo feliz, mas justo, temos que recorrer até a última medida possível como alternativa processual. Lamentavelmente, a seletividade e a exacerbação dos parâmetros da justiça criminal em relação ao Rafael nos inserem em uma lógica muito autoritária, embora tenhamos uma democracia formal”, critica Carlos.
Dadas as devidas proporções, o advogado explica que o mesmo ocorre no processo dos 23 e aponta inúmeras inconsistências e irregularidades também neste caso. Em seguida descreve os mecanismos que identifica como centrais na escalada de uma “cultura autoritária e antidemocrática” do judiciário, como define, para com movimentos sociais e organizações populares.
“A conjuntura de condenações que lamentavelmente partem de premissas que desrespeitam a lógica de um sistema acusatório democrático não é uma prerrogativa exclusiva do judiciário fluminense. O próprio judiciário paulista também comete julgamentos muitas vezes com base em postulados inquisitoriais que acabam não se traduzindo num contraditório efetivo e numa ampla defesa efetiva. Ainda falta muita asserção ao nosso judiciário como um todo, especialmente às premissas constitucionais do sistema acusatório: presunção de inocência, devido processo legal, contraditório, ampla defesa. Muitas vezes o autoritarismo vem em um contexto de se ignorar tais premissas dentro de determinados processos que são apresentados à jurisdição”, explicou.
A entrevista é de Raphael Sanz, publicado por Correio de Cidadania.
Eis a entrevista.
Como você recebeu, no último mês de julho, a publicação da condenação dos 23 ativistas acusados de associação criminosa e corrupção de menores?
Recebi a condenação com certa surpresa, pela intensidade, mas também como algo de certa forma já esperado, porque a linha de condução da acusação e de como se encaravam determinadas decisões nesse processo já indicavam uma condenação. Apenas não esperava que fosse no patamar tão exacerbado e desproporcional como foi. Ou seja, esperava que uma condenação iria se concretizar, mas não na proporção em que aconteceu.
O que você destaca em relação ao processo dos 23?
Há muitas inconsistências a serem firmadas, e são inconsistências em relação à própria acusação principal que é de associação criminosa qualificada. Sequer foi provada a estabilidade de permanência, ou os membros todos da tal associação criminosa qualificada. Os 23 condenados sequer se conheciam ou atuavam em conjunto em ações ou desígnios. Isso é muito grave.
A questão da inclusão indevida na instrução criminal sem que fosse aberto o aditamento, ou seja, a parte para as defesas repudiarem a acusação e arrolarem testemunhas sobre a acusação de corrupção de menores, fez com que nessa acusação não se abrisse a possibilidade de contraditório para a defesa, o que violou a norma processual penal – outra inconsistência.
Isso pra não citar os diversos grampos irregulares, questões referentes à própria competência do juízo, questões referentes à infiltração irregular do tal agente infiltrado que serviu como colheita de elementos de convicção para o processo.
O que mais vemos são inconsistências e incongruências que foram abordadas desde a investigação e, claro, repercutiram em um julgamento completamente incongruente com o cotejo das provas no âmbito do processo.
O que comenta do caso Rafael Braga, que você defende?
Só posso dizer que a seletividade do sistema de justiça criminal nos faz acreditar que teremos de ir até as últimas consequências, como sempre. Revisão criminal, desconstrução de julgado desfavorável a ele mesmo com fragilidade e nulidade claríssima em relação ao laudo que serviu de base para a condenação. Para que possamos observar um final, não digo feliz, mas justo, temos de recorrer até a última medida possível como alternativa processual.
Lamentavelmente, a seletividade e a exacerbação dos parâmetros da justiça criminal em relação ao Rafael nos inserem em uma lógica muito autoritária, embora tenhamos uma democracia formal. Portanto, tudo contribui para termos ainda mais dificuldades com o desfecho de algo que é aparentemente justo. Temos que brigar sempre até as últimas consequências.
O que essa conjuntura diz sobre o caráter do Judiciário fluminense, e brasileiro como um todo?
A conjuntura de condenações que lamentavelmente partem de premissas que desrespeitam a lógica de um sistema acusatório democrático não é uma prerrogativa exclusiva do judiciário fluminense. O próprio judiciário paulista também comete julgamentos muitas vezes com base em postulados inquisitoriais que acabam não se traduzindo num contraditório efetivo, numa ampla defesa efetiva.
Ainda falta muita asserção ao nosso judiciário como um todo às premissas constitucionais do sistema acusatório: presunção de inocência, devido processo legal, contraditório, ampla defesa… Muitas vezes o autoritarismo vem em um contexto de se ignorar tais premissas dentro de determinados casos que são apresentados à jurisdição.
Temos de combater essa cultura autoritária e conseguir que o judiciário seja permeado da função que lhe cabe, isto é, garantir, doa a quem doer, a aplicação dos direitos e garantias fundamentais do acusado, que é o personagem central do processo criminal. Se a vítima é a personagem central da investigação, o acusado é o do processo penal diante da inversão da fragilidade. E a fragilidade do acusado dentro do processo – que tem contra si investigação, denúncia do MP ou acusação privada – é notória.
Assim, o juiz deve funcionar como um dique de contenção do arbítrio do poder punitivo, ele tem de ter a ideia em mente, não pode agir como um mero agente de segurança pública, como temos visto nesses casos.
O que comenta do caso dos garotos Caio e Fábio, acusados da morte do cinegrafista Santiago Andrade?
De fato há uma desproporcionalidade na percepção criminal desses meninos. O que parece é que foi apurado que se houve uma questão do arremesso do artefato – o que coloca um pouco em xeque a situação da acusação em si – foi acidental. E sendo um arremesso acidental, de fato, o que a gente tem é que a figura do dolo não pode existir.
O dolo é a consciência e a vontade para a prática de um ato. E eles não queriam matar o cinegrafista Santiago. Se comprovado que o rojão de fato saiu da mão de um deles, ou que um acendeu e o outro arremessou, era algo que acontecia no contexto daquelas manifestações para sinalizar determinadas questões ali, em relação à perseguição policial ou alguma outra, não sei, mas o rojão não foi direcionado pra cabeça de ninguém ao que parece. Comprovado isso, não houve dolo, mas um terrível acidente.
Não gosto muito de ficar falando sobre este caso porque tenho dois colegas fazendo uma boa defesa dos meninos. Um defensor público e um advogado de defesa, que também acompanha manifestações. De toda forma, o que parece é que a acusação é deveras desproporcional, parte de premissas onde não há a figura clara do dolo, o que nem seria da competência do tribunal do júri. E isso tinha sido consagrado na própria decisão que cassou a pronúncia pela 8a câmara criminal. Uma pena que no STJ isso foi reformado.
Acredita que por conta do caso Santiago pode ter havido um acirramento no processo de escalada autoritária do judiciário, tal como você descreveu, em relação a manifestantes?
O impacto midiático e uma série de outras questões relacionadas ao caso trouxeram a pressão para o Tribunal Superior, que formou tal decisão e infelizmente a manteve na competência do júri e julgamento dos meninos.
Claro que serviu de mote para um acirramento das tensões e perseguições eventuais às manifestações, pois o fato foi pautado pela mídia como um ato de selvageria e brutalidade sendo que em realidade não se constatou a questão do dolo. E ainda que tenha insistido, foi de fato usado como certo pressuposto para dizer que os atos eram violentos, bárbaros e acabaram custando a vida de uma pessoa.
Sem sombra de dúvidas, foi uma forma de a mídia pintar de uma maneira muito ruim as manifestações e criar uma subjetividade negativa em relação a elas para as pessoas.