Incêndio do Museu Nacional não é tragédia, mas fruto de um projeto de país. Por Leonardo Sakamoto

No Blog do Sakamoto

O incêndio que consumiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, não pode ser encarado uma tragédia. Um foco de fogo que destruísse uma obra, mas fosse rapidamente debelado seria uma tragédia. A queima de uma instituição com 200 anos e um acervo de 20 milhões de itens, que não contava com estrutura adequada de prevenção a incêndios, não é um acidente, mas um empreendimento. Um projeto coletivo, pacientemente implementado ao longo do tempo por um Estado e uma sociedade que condenaram seu patrimônio histórico, natural, científico e cultural à inanição.

O Brasil talvez acredite que uma instituição como essa diga respeito ao passado e não ao entendimento do presente e, portanto, à construção do futuro. Sua queima não é, consequentemente, apenas fruto das crises econômica e política que minguaram os repasses federais, mas faz parte de uma sistema que atua abertamente para que o país continue ignorante sobre si mesmo e suas possibilidades.

Esse projeto coletivo não enxerga barreiras ideológicas e matizes políticos. Não começou neste governo (apesar dele ter se esforçado bastante nesse sentido) e nem irá terminar com ele (apesar da PEC do Teto dos Gastos limitar o investimento em instituições como essa por 20 anos). Pois não se trata apenas de recursos financeiros e vontade. Um fogo que consome um museu inteiro é paradigmático da ausência de um projeto nacional que veja esse patrimônio como subsídio fundamental para a construção de um país melhor. E que, portanto, precisaria ser protegido a qualquer custo.

Se assim fosse, haveria recursos para monitorar, conservar e estudar nosso patrimônio da mesma forma que existe para garantir o funcionamento dos mais diversos palácios que hospedam os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pelo país. Até porque representantes políticos vêm e vão, mas nossa história fica. O povo seria o primeiro a ocupar palácios para pedir recursos a museus.

Mas parte da população não se sente proprietária e corresponsável pela coisa pública pelos mais diferentes motivos. Empurrada para a franja da cidadania, uma parcela aprendeu que o patrimônio nacional não lhe diz respeito – uma falsa conclusão cuja reversão depende de um trabalho lento de educação. Em outro extremo, há quem conheça bem os museus na Europa e nos Estados Unidos, mas conta nos dedos de uma mão o número de instituições brasileiras que já visitou por total falta de interesse ou preconceito. Há também os que se orgulham dos estádios superfaturados, não se importando que uma fração dos desvios traria alívio a nossos museus.

Desta vez, esse projeto coletivo destruiu a instituição mais antiga do país. Mas, em maio de 2010, atingiu o maior e mais importante acervo de espécies de cobras tropicais do mundo, com mais de um século de existência, quando o Instituto Butantan, em São Paulo, pegou fogo. A coleção contava com mais de 80 mil espécimes, além de aranhas e outros animais, muitos dos quais nem haviam sido registrados ainda. Um patrimônio que poderia trazer respostas à biologia e à medicina.

Quando a notícia de 2010 correu o mundo, cientistas soaram o alarme – que hoje, assume-se, tinha caráter profético: ”tragédias” semelhantes aconteceriam em outras instituições dada a precariedade da manutenção desses espaços. Hoje, da mesma forma, sem medo de errar, podemos repetir: isso vai voltar a acontecer.

Vivemos um momento em que pessoas, sem o mínimo pudor, celebram nas redes sociais a queima do acervo, pois ele contaria uma história mentirosa, que não se encaixa com certas visões de mundo. Claro que compõe uma (barulhenta) minoria, mas a burrice violenta sempre assusta. Tal qual as pessoas comemorando as montanhas de livros queimadas nas praças de diversas cidades da Alemanha nazista em 10 de maio de 1933.

Lembrando que burrice não é característica de quem separa sujeito e predicado por vírgula ou não calcular uma raiz quadrada, mas de quem menospreza o conhecimento, chegando a odiar quem o detém ou quem busca seu aprendizado. O burro é aquele que tenta destruir o conhecimento que ameaça jogar luz sobre ele próprio.

Nesse contexto, é irônico que o reluzente Museu do Amanhã tenha se tornado o centro das atenções da capital carioca – apesar de sua falta de importância relativa, enquanto o guardião da memória brasileira permanecia esquecido na Quinta da Boa Vista.

Talvez o Museu Nacional, ao se deparar com o momento atual do país, em que o conhecimento científico parece valer menos que achismos e opiniões sem embasamento e no qual fatos históricos são tratados como ”notícias falsas” diante das certezas anônimas e absolutas das redes sociais, tenham simplesmente desistido de resistir. E queimado mais rápido, por conta do desgosto.

O problema é que, quando alheio à história de sua própria caminhada, o povo não é povo, mas gado. E, como gado, pode ser tocado por qualquer um. Ver esse prédio em chamas pela TV traz a sensação de que somos um amontoado de mugidos difusos que não tem ideia para onde está indo. E também não faz questão de saber.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dois × 1 =