O fim da inocência

Por Pedro Calvi, da CDHM

“Três frases bastam. É questão de segundos. O criminoso, o pedófilo, lança a isca na internet e traz a vítima para o mundo real. Quando os pais percebem, o filho está aliciado há tempos”. O alerta é de Cassiana Saad de Carvalho, da unidade de repressão aos Crimes de ódio e à pornografia infantil na internet da Polícia Federal. Ela pontua o modo de agir dos abusadores e exploradores sexuais de crianças e adolescentes. Um tipo de crime que cresce no Brasil. De 2016 a 2017 houve um aumento de dez por cento de denúncias no Disque 100. Foram 20.330 casos de abuso sexual atendidos nesse serviço gratuito de denúncias de violações de direitos humanos.
Agora, o combate aos crimes de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes deve tomar também o rumo da prevenção. A Polícia Federal tem conseguido, através de investigações detalhadas, localizar tanto quem produz material pornográfico infantil, como quem consome e abusa.

“Desde 2016 atuamos na repressão de crimes da internet e conexos. São centenas de vítimas que conseguiram falar depois de anos de silêncio, porque desenvolvem uma barreira imensa para falar, viram mortos-vivos. Nossa preocupação muito grande é não só prender, mas salvar. Além de desenvolver a repressão, estamos entrando na área da prevenção. Mais que salvar, prevenir”, continua a delegada Cassiana Saad.

Esse trabalho de prevenção tem incluído palestras sobre os sintomas de quem é abusado em escolas e delegacias de polícia por todo país.

“Atuamos depois que o crime aconteceu. Mas com o aumento do número de casos, fomos atrás de pais e professores para que prestem atenção, resgatem a confiança e a importância da conversa entre pais e filhos”, esclarece a também delegada da Polícia Federal Rafaela Vieira.

Elas participaram da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados desta quarta-feira (5), que discutiu um crime que põe, cada vez mais, ponto final nos sonhos de crianças e adolescentes brasileiros.

Mais crimes, menos idade

Todos que participaram do encontro apontaram a diminuição da idade das vítimas de abuso sexual. Hoje, esse crime é praticado até em crianças de três anos de idade.

Thiago Tavares, presidente da ONG SaferNet Brasil, apresenta dados assustadores.

“A internet é um reflexo da sociedade e esse espelho vai refletir o que somos. Em 2006 implantamos um canal internacional de denúncias para casos de racismo, discriminação por gênero e violência sexual, por exemplo. Em 12 anos foram 4 milhões de denúncias.  Localizamos 701.224 páginas na internet com conteúdo criminoso em diversos países. As denúncias envolvendo abuso sexual de menores chegou a um milhão e 500 mil nesse período. No Brasil, com a Operação Turko, em parceria com a Polícia Federal, tivemos 643 perfis rastreados em redes sociais e investigados no Brasil. Foram 250 prisões nos últimos três anos. As meninas são 83 por cento das vítimas e com idade entre 3 e 13 anos”, aponta Thiago.

Ele destaca ainda uma peculiaridade no país.

“No mapa global de hospedagem de sites com conteúdo pornográfico infantil, o Brasil responde por apenas um por cento. Mas em compartilhamento e divulgação desse conteúdo estamos entre os cinco maiores do mundo. Só em 2016 foram 50 mil casos envolvendo brasileiros”, ressalta.

Para Thiago, uma das vitórias contra o crime, é que 74 por cento das imagens compartilhadas são removidas até 72 horas depois da denúncia, graças a essa rede internacional de combate à pedofilia. A ONG criou ainda, um curso de educação à distância oferecido para educadores, com apoio das principais empresas de internet.

Os números do Disque 100

O relatório de 2017 do Disque 100, serviço de atendimento telefônico gratuito para denúncias de violações de Direitos Humanos, registrou 84.049 denúncias de violações contra crianças e adolescentes, dez por cento a mais do que em 2016. Muitas denúncias envolvem mais de um tipo de violação e mais de uma vítima. Os casos de violência sexual foram 20.330.

“As outras ligações estavam relacionadas a mais violações como: pornografia infantil, exploração sexual no turismo e estupro. E este anos, até junho, já foram registradas no Disque 100, 36.757 denúncias de violência contra crianças e adolescentes”, informa Solange Xavier,  coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos.

Ela acrescenta que o Brasil passou a fazer para de um acordo internacional voluntário adotado por órgãos de turismo como hotéis, secretarias e e agências. A rede de hotéis Accor já aderiu. A iniciativa pretende atuar principalmente em grandes eventos como o carnaval e obras que geram migração de trabalhadores.

Luciana Santana Reis, da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, critica a falta de estrutura e investimento para um trabalho eficiente na proteção de crianças e adolescentes.

“As redes de proteção estão desarticuladas, o sistema de garantias de direitos fragilizado e o próprio Disque 100 passou por um período de sucateamento. E isso leva ao descrédito da população. Política pública para o abuso a gente até acha, mas para a exploração sexual, não. Os Centros de Defesa tentam sobreviver um dia após o outro. Tem casos que perduram anos, as vítimas precisam de psicoterapia por muito tempo e não conseguimos atender. E outro ponto, as fronteiras estão aí, e tem a imigração que não estávamos preparados para lidar”, pondera.

Unicef apresenta documento com propostas para os candidatos nas eleições

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apresentou, durante o encontro, um documento que está sendo entregue a todos os candidatos dessa eleição. São desafios para a agenda eleitoral.

Os pontos são a superação da pobreza em suas múltiplas dimensões, a redução da violência contra crianças e adolescentes, promoção de uma educação de qualidade, garantia da saúde e do direito à vida a todas as crianças, oferta de uma alimentação saudável e a efetivação do direito à participação de crianças e adolescentes.

Florence Bauer, representante do UNICEF no Brasil, aponta situações que resultaram nessas sugestões.

“Em cada dez crianças brasileira, seis vivem em situação de pobreza. Trinta e um adolescentes são assassinados a cada dia, o maior índice do mundo. A maioria, negros. Precisamos do fim impunidade, de escolas que valorizem mais os professores tornem o ensino mais atrativo. São 3 milhões de crianças e adolescentes fora da escola. E voltamos a enfrentar o aumento da mortalidade infantil. O Brasil, que já foi exemplo em vacinação agora vê doenças voltarem”, observa Florence.

A audiência pública foi proposta pelo presidente da CDHM, deputado Luiz Couto (PT/PB) e coordenada pela deputada Erika Kokay (PT/DF).

“As crianças os adolescentes têm prioridade orçamentária. As denúncias são feitas, mas as vítimas não recebem atendimento. É preciso ter respostas.  Me lembro de um caso que tomei conhecimento no Nordeste. Uma menina que foi abusada aos 11 anos e aos 13 ainda aguardava atendimento de qualquer tipo. As estruturas estão precárias, das delegacias aos Creas.  Nada é feito pelo que foi falado. E as crianças falam com o corpo, com o silêncio ou com as lágrimas. Houve uma naturalização do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes. E isso é um nível de crueldade que arranca a inocência e a vida”, conclui Erika.

Como identificar

A Childhood Brasil, organização que trabalha na proteção da infância através do enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, coloca 10 pontos para identificar possíveis sinais de abuso sexual infanto-juvenil.  A criança deve levada para uma avaliação especializada se apresentar algumas dessas características.

Mudanças de comportamento: O primeiro sinal é uma possível mudança no padrão de comportamento da criança, como alterações de humor entre retraimento e extroversão, agressividade repentina, vergonha excessiva, medo ou pânico. Essa alteração costuma ocorrer de maneira imediata e inesperada. Em algumas situações a mudança de comportamento é em relação a uma pessoa ou a uma atividade em específico.

Proximidades excessivas: A violência costuma ser praticada por pessoas da família ou próximas na maioria dos casos. O abusador muitas vezes manipula emocionalmente a criança, que não percebe estar sendo vítima e, com isso, ganha confiança fazendo com que ela se cale.

Comportamentos infantis repentinos: É importante observar as características de relacionamento social da criança. Se o jovem voltar a ter comportamentos infantis, que já havia abandonado, algo pode estar errado. A criança e o adolescente sempre avisam, mas na maioria das vezes não de forma verbal.

Silêncio predominante: Para manter a vítima em silêncio, o abusador costuma fazer ameaças de violência física e mental, além de chantagens. Também usam presentes, dinheiro ou outro tipo de material para ter uma boa relação com a vítima. É essencial explicar à criança que nenhum adulto ou criança mais velha deve manter segredos com ela que não possam ser compartilhados com pessoas de confiança, como o pai e a mãe, por exemplo.

Mudanças de hábito súbitas: Uma criança vítima de violência, abuso ou exploração também apresenta alterações de hábito repentinas. Sono, falta de concentração, aparência descuidada, entre outros, são indicativos de que algo está errado.

Comportamentos sexuais: Crianças que apresentam um interesse por questões sexuais ou que façam brincadeiras de cunho sexual e usam palavras ou desenhos que se referem às partes íntimas podem estar indicando uma situação de abuso.

Traumatismos físicos: Os vestígios mais óbvios de violência sexual em menores de idade são questões físicas como marcas de agressão, doenças sexualmente transmissíveis e gravidez. Essas são as principais manifestações que podem ser usadas como provas à Justiça.

Enfermidades psicossomáticas: Unidas aos traumatismos físicos, enfermidades psicossomáticas também podem ser sinais de abuso. São problemas de saúde, sem aparente causa clínica, como dor de cabeça, erupções na pele, vômitos e dificuldades digestivas, que na realidade têm fundo psicológico e emocional.

Negligência: Muitas vezes o abuso sexual vem acompanhado de outros tipos de maus tratos que a vítima sofre em casa, como a negligência. Uma criança que passa horas sem supervisão ou que não tem o apoio emocional da família estará em situação de maior vulnerabilidade.

Frequência escolar: Observar queda injustificada na frequência escolar ou baixo rendimento causado por dificuldade de concentração e aprendizagem. Outro ponto a estar atento é a pouca participação em atividades escolares e a tendência de isolamento social.

Como denunciar

– Disque Direitos Humanos , ligue 100, funciona todos os dias 24h.

– Pela internet no www.disque100.gov.br, depois clicar em uma janela, preencher um formulário indicando o endereço do site que tem pornografia infantil. A denúncia é anônima.

– 0800 970 11 70 no “Alô vida”

– Polícia Militar

– Delegacia da Criança e do Adolescente

– Delegacia da Mulher

– Conselhos Tutelares

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