Contra a corrente: a luta dos pescadores artesanais

Poluição, doenças e falta de reconhecimento fazem parte do cotidiano dos pescadores. Política pública estadual implantada em 2017 gera expectativa de tempos melhores

André Zahar, na Alepe

Após ter duas baiteras (pequena embarcação a remo) roubadas, a pescadora Edileuza Silva do Nascimento, 61 anos, precisou comprar outra de segunda mão. O barco, ela logo percebe, veio com dois furos, por onde entra a água que ela retira com baldes mal começa o dia no bairro de Brasília Teimosa, Zona Sul do Recife.

Leu, como é conhecida, “vai para a maré” com a mãe desde os quatro anos de idade. Além da falta de segurança, já passou pelos mesmos problemas de outros trabalhadores do setor (ver artes) – de cortes ao coletar sururu e ostras à dolorosa picada do peixe niquim, que lhe paralisou um dedo da mão. E, como a maioria deles, teve a saúde comprometida pelo trabalho: desenvolveu uma hérnia umbilical, provocada pelo peso que carrega diariamente, e uma disfunção no fígado relacionada à poluição das águas.

“Os pescadores estão todos doentes. Quando chegam ao posto, não tem remédio ou curativo. A gente se corta e fica em casa, não pode fazer nada”, relata Leu. “Antigamente não tinha essa lixaria toda no rio. Tinha muito sururu, cada ostra grande. Hoje é fogão, sofá, bacia sanitária, caco de vidro, ferro velho… Tá diminuindo a pesca com essa poluição toda. O rio está se acabando de sujeira, e não pode, porque é o ganha-pão da gente”, afirma.

Moradora da Ilha de Deus, também na Zona Sul da Capital, Noêmia Fernandes conheceu de perto os riscos da profissão ao perder um irmão na maré. “Quando comecei a pescar com a minha mãe, tinha dez anos. Deixava de ir para a escola para pegar marisco. Hoje ensino minha filha a pescar, mas falo para estudar também, porque ser pescadora é muito difícil”, comenta.

Os números oficiais atestam a presença de cerca de 13,5 mil pescadores e pescadoras artesanais em Pernambuco. No entanto, por se tratar de um setor com muita informalidade e dados escassos, acredita-se que a quantidade seja ainda maior. Se poluição e problemas de saúde são recorrentes, as entidades de representação do setor consideram que o atual momento político agrava ainda mais a situação.

Em agosto de 2016, a Assembleia Nacional do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais elaborou uma carta reagindo à extinção do Ministério da Pesca, no ano anterior, e à descontinuidade de políticas públicas em andamento. A paralisação dos processos de Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) e de regularização e demarcação de territórios são as principais consequências do que o movimento vê como um “desmonte intencional” das ações para a área.

O documento dos pescadores artesanais organizados também aponta outros fatores de pressão sobre as comunidades tradicionais pesqueiras: a expansão das fazendas de carcinicultura (criação de camarão); a especulação imobiliária provocada por grandes resorts no litoral; a contaminação da água e do solo marinho por grandes empreendimentos como usinas siderúrgicas, portos e plataformas de exploração de petróleo.

No caso de Pernambuco, é o monocultivo intensivo de camarão e tilápia que ameaça a pesca artesanal ao privatizar os espaços pesqueiros de uso comum,  na análise do sociólogo Jose Ignácio Vega Fernandez. Na pesquisa dele sobre a implantação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca (Lei Federal nº 11.959/2009), o cientista social avalia que o reconhecimento da pesca artesanal ficou apenas no papel, enquanto a aquicultura intensiva foi a principal favorecida.

“Segundo dados da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), a aquicultura cresceu 123% no País entre 2005 e 2015. Esse quadro tem se intensificado, com aumento das licitações de água da União e das linhas de crédito para empreendimentos aquícolas”, aponta Vega. “Enquanto isso, os direitos trabalhistas dos pescadores artesanais vêm sofrendo diversos ataques e há sérias dificuldades para realizar a inscrição no RGP, necessário para acessar os direitos previdenciários e assistenciais.”

Em setembro de 2015, Pernambuco passou a contar com uma Política da Pesca Artesanal, por meio da Lei Estadual nº 15.590, aprovada na Alepe. Entre outros pontos, a norma cria um comitê gestor com representantes do poder público e da sociedade civil, responsável pela execução da política pública.

Vega considera que ainda é cedo para avaliar a norma, mas acha importante o fato de a elaboração ter sido feita com a participação de organizações sociais. Ao relatar a proposta na Comissão de Meio Ambiente, o deputado José Humberto Cavalcanti (PTB) destacou que aproximadamente 45% de toda a produção anual de pescado no País é oriunda da pesca artesanal. Esses trabalhadores “aparecem como um dos principais aliados à proteção ambiental na região onde trabalham. Por isso, devem ser contemplados por ações de governo e políticas públicas”, agregava o parecer.

Regulamentação

Apesar de não haver territórios pesqueiros formais, a Lei da Pesca Artesanal coloca como premissa a garantia das comunidades tradicionais à posse e fixação das áreas já ocupadas. O Instituto de Terras e Reforma Agrária de Pernambuco (Iterpe) informa que, desde a publicação do Decreto nº 45.396/2017 – que regulamenta a Lei da Pesca Artesanal –, não recebeu nenhuma demanda para regularização fundiária voltada às comunidades pesqueiras em terras já ocupadas.

De acordo com o secretário estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, Carlos Cavalcanti, o grande desafio para a implementação da política é o conhecimento aprofundado da realidade da pesca artesanal no Estado. Por essa razão, o órgão realiza um levantamento da situação nos territórios pesqueiros por meio de oficinas regionais.

Sobre a degradação ambiental, ele considera importante a mobilização da sociedade: “Nós temos vários exemplos de situações em que as prefeituras fazem a limpeza dos canais e dos córregos e, no outro dia, aparecem os resíduos”, diz o gestor. “Estamos desenvolvendo a política de educação ambiental, para que a sociedade pernambucana tome atitudes que levem ao cuidado com o meio ambiente. Além disso, a Secretaria atua junto aos municípios para elaborar os planos municipais de resíduos sólidos”, reforça.

Para o secretário executivo do Conselho Pastoral dos Pescadores – Regional Nordeste, Severino Antônio dos Santos, dos pontos previstos na lei, a elaboração do Plano Estadual de Assistência Técnica e Extensão da Pesca Artesanal merece atenção especial. “Hoje o quadro técnico do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA) tem dez engenheiros de pesca. É preciso que o Estado abra um concurso ou seleção simplificada para que esses profissionais sejam contratados e possam dar a assistência necessária à atividade”, pontua.

 

Foto: Tribuna.

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