Lideranças Guarani e Kaiowa defendem demarcação da Terra Indígena Guyraroka, anulada pelo STF

No documento, as lideranças indígenas Guarani e Kaiowa buscam, mais uma vez, sensibilizar os ministros do STF para que cumpram seu dever prioritário de proteger a Justiça e a Constituição Federal

por Michelle Calazans, em Cimi

Lideranças indígenas Guarani e Kaiowa estiveram reunidos, entre os dias 21 e 24 de agosto, na Aty Guasu, a Grande Assembleia dos Povos Guarani e Kaiowá. A atividade foi realizada na Terra Indígena Guyraroka, no Mato Grosso do Sul – terra ancestral cuja demarcação foi anulada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), com base na tese do marco temporal. A reunião fortaleceu, por meio da Carta Final da Grande Assembleia – Aty Guasu Guarani e Kaiowa, o posicionamento em favor da rejeição da tese ruralista.

O marco temporal, tese segundo a qual os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, foi incluído no Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que inviabiliza as demarcações das terras indígenas.

O principal questionamento remete ao direito originário ao território, que precede à própria Constituição: “Mas quem são estes Ministros para dizer que esta terra que Deus deu a nosso povo e na qual viveram todos nossos antigos não existem mais?”

No documento, as lideranças indígenas Guarani e Kaiowa buscam, mais uma vez, sensibilizar os ministros do STF para que cumpram seu dever prioritário de proteger a Justiça e a Constituição Federal. Os indígenas ratificam que a decisão de anulação do Território Guyraroka é um atestado de genocídio e de massacre por parte do Estado, não somente contra as famílias de Guyararoka, mas também contra todo o povo brasileiro.

O momento requer maior nível de entrega e de compromisso, reiteram as lideranças indígenas, na luta contra a injustiça praticada no STF. Em forte unidade, líderes Guarani e Kaiowa estabeleceram por meio da reza um pacto de luta e resistência, com a vida, em prol do território indígena Aty Guasu no Guyraroka.

Além das lideranças indígenas Guarani e Kaiowa, a reunião contou com a presença de representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da 6ª Câmara – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF).

Confira abaixo a Carta Final da Grande Assembleia:

CARTA FINAL DA GRANDE ASSEMBLEIA – ATY GUASU GUARANI E KAIOWA – GUYRAROKA 24/08/2018

Aos senhores Ministros do STF – Aqueles que devem proteger a Justiça e a Constituição.

“Mas quem são estes Ministros para dizer que esta terra que Deus deu a nosso povo e na qual viveram todos nossos antigos não existem mais?”

Essa pergunta foi feita a nós pelos nossos rezadores, muitos deles com mais de 90 anos. Muito constrangidos e envergonhados tentamos explicar para eles que os ruralistas criaram politicamente a tese do Marco Temporal, que não é lei, que fere a Constituição Federal de 1988 mas que por submissão de alguns e desconhecimento de outros esta sendo aplicada por gente do Estado, por gente do judiciário. Entre brabos e tristes, ouviram assustados sem acreditar no tamanho da covardia e desonestidade dos fazendeiros. “Mas existe a Constituição, e nós temos direitos de viver em nossa terra” disseram nossos idosos. “Fale com os guardiões da justiça, eles conhecem a Constituição” pediram nossos anciões se referindo aos ministros do STF. Mais constrangidos ainda lhes respondemos que entre os próprios ministros existe gente que defende a tese dos fazendeiros. Ficaram quietos, profundos, abaixaram, acariciaram a terra, e então disseram por fim “se isso acontecer, só nos restará a guerra e a morte”.

Nós, como lideranças representantes de todas as terras indígenas Guarani e Kaiowa do Mato Grosso do Sul estivemos reunidos em nossa Aty Guasu no Guyraroka – Terra ancestral que está ameaçada pelo Marco Temporal aplicado pelas mãos de Gilmar Mendes para mandar uma mensagem ao STF e a todas as autoridades brasileiras:

Ministros:

Queremos chamar a atenção de vocês que a decisão de anulação do Território de Guyraroká é um atestado de genocídio e de massacre por parte do Estado não só contra as famílias de Guyararoka mas também contra todo nosso povo. Se suspenderem nossos territórios no papel nós os defenderemos com nossas vidas na prática.

Guyraroka é terra reconhecida pelo Estado Brasileiro e nossa luta pelo seu reconhecimento nos custou muitas vidas e muita dor. Fomos submetidos a todos os tipos de violações e expulsos muitas e muitas vezes. Apesar das cicatrizes e dos ataques, nosso povo sempre voltou para sua terra. Sempre que voltamos fomos expulsos por aqueles que roubaram nossa Terra e levados de caminhão como animais para a reserva. Mas voltamos de novo. Nunca abandonamos Guyraroka para que hoje nossas crianças e nossos velhinhos vivam aqui. Apesar de viver sem a maioria do nosso território que se encontra nas mãos de fazendeiros e políticos locais como Zé Teixeira  hoje nossos idosos e nossas crianças podem ter o mínimo de paz. Temos nossas casas, nossa escola, nossas plantas, nossos animais, o mato está voltando a nascer e com nossa reza e nossa cultura nosso povo ano após ano floresce.

Se o Supremo definir pelo Marco Temporal estarão trocando esta paz duramente conquistada pelo desejo de nossas crianças e velhos que vão voltar a viver na beira de rodovias, sem saúde básica, sem educação, sem cultura, sem terra e sem nenhuma possibilidade de futuro. Isso não aceitaremos.

Por isso, é preciso dizer bem claro que acaso qualquer decisão de Marco Temporal, em especial contra o Guyraroka, vier do Supremo, não teremos outra alternativa a não ser resistir e morrer lutando. Nossa vidas estão na mão de vocês e do Estado brasileiro.

Nosso povo já rezou junto e fizemos um pacto. Todas as Tekoha estão conectadas e estarão juntas para defender com nossos corpos e nosso sangue os territórios que forem afetados pelo Marco Temporal, Parecer 001 ou outra ferramenta genocida contra nossos povos.

Por isso, estamos mais uma vez buscando sensibilizar o STF de nossa situação, da injustiça acerca do Marco Temporal e o conflito que irá se estabelecer se uma decisão destas for confirmada por vocês.

Ao invés de desalojar nossas crianças e tornar elas órfãos, o STF poderia fazer valer a justiça buscando ajudar outros dois órfãos que hoje respondem pelo nome de “justiça” e de “democracia”.

Respeitem nossos direitos!
Garantam a Constituição!
Não se dobrem ao ruralismo!

Foto: Lídia F. Oliveira/Cimi

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