Grupo viralizou e é importante — mas não há projeto comum nem organização política real. Vencer patriarcado exigirá ir muito além do feminismo como “lifestyle”
Por Marília Moschkovitch*, em Outras Palavras
Há poucos dias foi criado – e viralizou – no Facebook um grupo chamado “Mulheres Contra Bolsonaro”. Em seguida, com a viralização, vários homônimos também surgiram. O grupo “original”, se é que se pode chamar assim, alcançou rapidamente a marca impressionante de 1 milhão de membros. Ninguém entendeu muito bem como (e nem pelas mãos de quem) o grupo surgiu, mas o fenômeno é: um milhão de mulheres expressando publicamente, ou ao menos entre si, a repulsa ao candidato presidencial da extrema direita. Não demorou para que o feito fosse comemorado: um milhão de mulheres aparentemente se juntando e se organizando contra Bolsonaro. Eventos sendo chamados para “ir às ruas” e demonstrar que são (somos) muitas as mulheres contrárias ao que representa essa candidatura.
Ou não.
A heterogeneidade do grupo (e sua desorganização, decorrente do espontaneísmo) deixa claro que o problema comum entre esse um milhão de mulheres não é necessariamente o programa de Bolsonaro – já que várias participantes são eleitoras de Amoêdo (que também defende a criminalização total do aborto, a privatização total dos sistemas públicos), Marina Silva (que ainda não abandonou a proposta de rifar o direito das mulheres ao próprio corpo num plebiscito sobre o aborto), Ciro Gomes (cuja vice Kátia Abreu representa o ponto de seu programa em que o agronegócio é beneficiado, num modelo desenvolvimentista que mata mulheres quilombolas e indígenas, além de ter afirmado categoricamente ser contrária à legalização do aborto). Como é possível observar entre a diversidade de membros, tampouco é possível dizer que haja qualquer linha política em relação aos direitos das mulheres (o que se reflete também nos apoios variados a tantas candidaturas que lidam de formas tão distintas com a questão).
O grupo, com o belo slogan como título, nesse ponto se parece com as passeatas “pela paz” ou com os gritos de 2013 a favor da “saúde e educação”: qual paz? Com qual modelo de segurança pública? Qual saúde e qual educação? Pergunto (e me pergunto) o mesmo em relação ao slogan do grupo: Mulheres Contra Bolsonaro mas que defendem colocar o quê no lugar? Será que o que defendem é tão diferente assim do que representa a candidatura rejeitada?
A questão é complexa, e perpassa uma crítica (e autocrítica, necessariamente) em relação às táticas de ação do movimento feminista brasileiro – que em raras ocasiões hoje pode ser chamado com alguma propriedade de “movimento social”, e escrevo isso com o pesar de quem constrói esse espaço nas ruas, partidos, movimentos sociais e universidade desde 2005, tendo tido essa construção como questão central de tese. Essa crítica é uma autocrítica, é uma análise que engloba a todas – muito além do grupo Mulheres Contra Bolsonaro (recentemente elaborei parte delas ao indagar sobre a Argentina, “o que elas têm que nós não temos?”), e muito além até do Brasil (parte dessas críticas rumino como boa vaca desde a tal “Marcha das Mulheres Contra Trump” nos EUA, e a chamada “greve” de mulheres, que infelizmente de greve teve mesmo muito pouco). Vamos por partes.
“Mulheres” ou “Feminismo”?
Pode ser só um slogan, mas quando um slogan é tudo que há (porque não há, pelo menos ainda, projeto político comum), o uso da categoria “mulheres” é historicamente um problema. Isso acontece por diversos motivos. As feministas negras nos Estados Unidos já questionavam – assim como as teóricas lésbicas francesas – afinal de contas, o que raios é “uma mulher”. De certa maneira, do ponto de vista desse dois grupos, elas eram tratadas pela sociedade e pelo próprio movimento feminista, nos anos 1970, como não-mulheres. Um exemplo bobo (pero no mucho): quando nos anos 1970 repetia-se (e infelizmente ainda se repete) a falácia de que as mulheres “entraram no mercado de trabalho a partir da década de 1960”, ignorando que o trabalho das mulheres negras sempre sustentou a existência do modo de produção capitalista, e das sociedades coloniais, tudo muito antes dessa década. Ou quando se trata as relações afetivas como exclusivamente homem-mulher (quando se fala em filhos, divisão do trabalho doméstico, etc). Mais recentemente, o transfeminismo reacendeu a questão: as mulheres trans* não são consideradas, dentro do próprio feminismo, como mulheres. Mais um exemplo que infelizmente não é de hoje: as prostitutas e trabalhadoras sexuais, que são consideradas por muitas feministas como mulheres que teriam menos direito à autonomia do que as demais trabalhadoras.
Ao mesmo tempo, houve historicamente uma série de disputas entre as ideias de “Feminismo” versus “Movimento de mulheres”. Por um lado, criticava-se o “Feminismo” por ser branco, de classe média, burguesa ou pequeno-burguesa (na União Soviética essa era uma das críticas de Alexandra Kollontai ao que os países capitalistas vinham chamando de “Feminismo”, sobretudo o movimento das sufragistas que, em larga medida, ignorava uma vez mais as mulheres negras e trabalhadoras como mulheres). Por outro lado, a categoria “mulher” foi sistematicamente usada para despolitizar o debate e afirmar que os problemas das mulheres eram das mulheres, e não estruturais e estruturantes da nossa sociedade como um todo. Hoje não se pode dizer que o feminismo siga sendo um movimento branco e pequeno-burguês, graças às contribuições imensuráveis do feminismo negro, das putafeministas, do transfeminismo, e das feministas marxistas (feminismo classista). A categoria “Mulher”, porém, segue sendo um problema.
O problema da categoria “mulher” é que “mulher” não é um projeto político comum. Feminismo é. O mesmo problema pode ser visto em grupos de “mães” – “mãe” não é projeto político comum, Feminismo é. Lembram do tal Partido das Mulheres, que não tinha nenhuma mulher e era conservador? Pois então. Ao falarmos em “mulher” podemos defender propostas hiperconservadoras – atrelando-as ao papel natural de mãe, por exemplo; ou defendendo a castração química para estupradores (ponto comum da plataforma política de Bolsonaro com alguns grupos feministas que se auto intitulam “radicais” no Brasil, a partir de uma leitura mal feita e anacrônica de textos da década de 1970).
Por isso tantos grupos lutam, desde os anos 1980, para que a questão do Feminismo não seja “A Mulher” mas o Gênero (e lembro que o próprio Problemas de Gênero, de Butler, abre com a pergunta: “Seria a mulher o sujeito político do feminismo?”) Divergências e críticas sobre o conceito de gênero à parte (boa parte delas mapeadas em minha tese de doutorado, por enquanto disponível apenas em inglês), os grandes avanços consolidados com a formulação desse conceito entre as décadas de 1970 e 1980 não tiveram e não têm mero impacto teórico. Desde as propostas das feministas marxistas na França, influenciadas pelo fenômeno de Maio de 1968, vinha-se pensando em três pontos cruciais para desvendar a opressão das mulheres em sociedades como a nossa; grosso modo: a) “mulher” é uma categoria num sistema, ou seja, é impossível isolar essa categoria; b) esse sistema é relacional, portanto as relações entre categorias importam mais do que cada categoria em si mesma; c) essas relações são relações sociais, e não são dados da natureza. Essa foi a base para as noções de interseccionalidade e consubstancialidade, que recusam o isolamento de uma categoria abstrata “Mulher/Mulheres”, no geral, como no caso do título-slogan “Mulheres Contra Bolsonaro”.
O slogan, contudo, é forte e bonito. Serve para as pessoas se declararem publicamente enquanto opositoras do candidato e isso não deixa de ser importante (e a balela de que somos nós que estamos dando visibilidade só pode ser evocada por quem ignora como funciona historicamente o impulsionamento de certos candidatos em nosso país, mesmo antes das redes sociais – recomendo ler e pesquisar sobre as eleições de 1989 e assistir o documentário Muito Além do Cidadão Kane, só para ficarmos no período “democrático”). Mas enquanto articulação política para derrotar não só uma candidatura, mas todo um projeto de país (que transcende a candidatura), parece fraco e insuficiente, pelo menos por enquanto. Em parte, porque aglutina pela categoria “Mulher”, e não por um projeto/proposta/viés político e politizado. Em parte, porque esbarra num os grandes desafios que o feminismo no Brasil encontra: a organização política.
Feminismo e organização política: o que elas têm que nós não temos?
Houve muitas comparações entre o grupo “Mulheres Contra Bolsonaro” (e os encontros/marchas que alguns membros desses grupos estão puxando em algumas cidades brasileiras) e as marchas de mulheres contra Trump nos Estados Unidos. Em termos de derrota de um projeto político, a marcha também não deu (ainda) resultados estrondosos. Embora uma ou outra figura tenham ganhado notoriedade local, nada se mexeu em termos do sistema eleitoral absurdo dos EUA, nem melhoraram as políticas para mulheres no país (se adotarmos uma perspectiva de “Gender Mainstreaming”, ou seja, pensar o gênero como fator transversal em todas as políticas públicas, veremos que na verdade pioraram). Uma ou outra alma otimista pode citar o fenômeno “#MeToo” como exemplo do impacto positivo das marchas: mas que exemplo de sucesso é esse, baseado em punitivismo, organizado de maneira privada e individualizada (e, portanto, bastante despolitizada)?
Nos EUA, como no caso do grupo de Facebook no Brasil, como no caso do nosso Fora Cunha, e das marchas de apoio à legalização do aborto mais recentes, o limite da ação que se diz política é a própria política. Ou melhor, uma visão específica da política: a ideia de que um coletivo e uma ação coletiva são a mera soma de ações individuais, colocadas no mesmo espaço físico ou virtuais, sem necessariamente coesão nenhuma e projeto comum nenhum.
Gosto de comparar com o caso da Argentina, que é um “case de sucesso” do feminismo como movimento social, com a força que isso implica.
Na ocasião da tal “greve” de mulheres, o Ni Una Menos foi citado sistematicamente como exemplo. Infelizmente quem trouxe o exemplo (alô Nancy Fraser e Angela Davis) não parece ter analisado muito bem as condições concretas e relações sociais que fizeram desse exemplo “O” exemplo.
O Ni Una Menos é um movimento unificado organizado em comitês locais, por bairro ou cidade. Esses comitês são permanentes, como coletivos feministas locais alinhavados em um grande movimento. As pessoas participam para além da internet, e sua composição é bem diversa. Há vários comitês em que é comum a participação de homens (e como não, se estamos diante de uma estrutura, um sistema, que também os produz?). Na Argentina, não há um sentimento de antipartidarismo, antisindicalismo e anticomunismo tão acirrado quanto no Brasil (as nossas ditaduras parecem ter sido bem mais eficazes que as deles), e é normal que partidos de esquerda e sindicatos se engajem nesses comitês locais. Historicamente, a sociedade argentina tem uma tradição de organizações locais, por bairro – o que foi essencial para as mobilizações após a crise no governo Menem, por exemplo, e para a maneira como o trabalho de memória da ditadura foi feito. Há um senso de urgência da política pela sobrevivência, uma noção de construção popular, e um acúmulo de experiência e militância política em várias regiões. O Ni Una Menos tem uma estrutura muito mais parecida com o MTST e com a Frente Povo Sem Medo do que com qualquer grupo ou organização feminista ou de mulheres no Brasil. É de fato um movimento social. E por isso tem a força que tem, e conseguiu alavancar uma luta popular significativa pela legalização do aborto na Argentina.
É diante desse “case” que precisamos nos perguntar: porque conseguimos mobilizar tantas mulheres contra Eduardo Cunha, ele “foi saído” do cargo mas continuamos morrendo mais do que as mulheres em boa parte dos países do mundo? Por que conseguimos organizar manifestações lindas e poderosas, mas que não mexem um palito na estrutura e nas nossas vidas (e pelo contrário, vemos a ascensão de discursos conservadores inclusive entre nós mulheres)? A chave está na concepção do que deve ser uma ação política feminista.
Enquanto pensarmos o feminismo como um lifestyle, quase uma commodity como bolsas estampadas de Frida Kahlo e gatas apelidadas de Pagu; sem entendermos que é preciso perder o medo de fazer política de fato (e isso exige disputar, perder, deixar alguns anseios pessoais de lado por um projeto coletivo, frustrar-se às vezes, não ter consenso em outras, deixar o ego de lado, etc), não vamos avançar. Nem na pauta do aborto, e nem na resistência mais ampla contra o projeto de país que observamos na candidatura de Bolsonaro. O slogan continuará sendo só um slogan, e a participação num ambiente virtual seguirá desencadeada de ações cotidianas permanentes e concretas, servindo apenas para dormirmos melhor à noite (não que isso não seja importante, mas certamente não basta).
Para fazer política é preciso lutar muito, quando estamos por baixo. Desfazer rotinas, encaixar tempo para dedicação e engajamento, aprender muito. Talvez o ponto alto de 1 Milhão de Mulheres Contra Bolsonaro seja a sensação essencial de que não estamos sozinhas. Mas para que isso seja mais, precisamos enfrentar a barreira da tela e dos eventos e atos isolados. Precisamos nos organizar. O fascismo não vai se destruir sozinho (e nem nós, mulheres, vamos destruí-lo sozinhas, pois não somos as únicas que ele oprime).
*Socióloga, militante feminista, jornalista iniciante e escritora.
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Uma das grandes marchas que ajudaram a derrubar Eduardo Cunha, em 2016. Por que conseguimos organizar manifestações lindas e poderosas, mas que não mexem um palito na estrutura e nas nossas vidas?
Acredito mais nas mulheres do que nos homens. elas são mais sinceras e honestas.