Conheça algumas das propostas apresentadas pelo ISA na campanha eleitoral para unidades de conservação, áreas de populações indígenas, quilombolas e extrativistas
Quase um terço do território nacional é formado por Terras Indígenas (TIs), quilombos, parques e reservas (Unidades de Conservação-UCs). Fruto da luta da sociedade civil, dos povos indígenas e tradicionais, o reconhecimento e a proteção dessas áreas beneficia não apenas os brasileiros, mas também populações de outras partes do planeta – como atestam as pesquisas que mostram sua importância para a produção de chuvas e a regulação climática. Mesmo assim, o que se vê é morosidade e omissão do Estado em garantir a integridade desses territórios.
Para estimular o debate sobre o assunto na campanha eleitoral, o ISA produziu o dossiê Eleições 2018: direitos territoriais e economia dos povos da floresta no próximo mandato presidencial. O documento foi enviado às coordenações das principais campanhas, além de parlamentares, organizações não governamentais, Ministério Público e órgãos de governo.
Com o objetivo de contextualizar as propostas do dossiê, o ISA também publica, a partir de hoje, uma série de reportagens. A primeira delas tem foco nas TIs, quilombos e UCs.
Falta vontade política para finalizar processos
Existem, hoje, dezenas de processos de regularização de territórios indígenas e quilombolas prontos para ser finalizados, sem pendências judiciais, no governo federal. Alguns deles têm mais de dez anos e não avançam. Enquanto juntam poeira nas gavetas do Planalto, índios, quilombolas e extrativistas sofrem com a pressão do agronegócio, de grileiros e posseiros e com a violência decorrente da luta pela terra.
No caso das TIs, em maio havia cinco processos de demarcação parados na Casa Civil, no aguardo da assinatura presidencial do decreto de homologação (fase final do processo demarcatório), e mais sete aguardando a portaria declaratória do ministro da Justiça, depois da qual pode ser feita a demarcação física.
Como aponta o dossiê, existem hoje, no Brasil, 717 TIs, sendo que mais de 67% delas já foram homologadas, restando um passivo de cerca de 33% de áreas a ser reconhecidas completamente.
Além disso, existem 30 processos na Casa Civil sobre quilombos prontos para ser finalizados. O ISA defende, como proposta, a conclusão imediata desses processos, além da atuação para resolução das pendências judicializadas.
Cerca de três mil comunidades quilombolas foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP). A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Rurais Negras Quilombolas (Conaq), no entanto, afirma que existem pelo menos seis mil no país. Hoje, há 1.715 procedimentos administrativos de regularização dessas áreas abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – relativos a apenas 2,5 milhões de hectares – mas apenas uma ínfima parte deles foi concluído.
No caso de terras estaduais ocupadas por quilombos, é de responsabilidade dos órgãos fundiários estaduais promover a regularização. Alguns estados possuem regras definidas para a titulação, mas são minoria – Maranhão, Piauí, São Paulo, Pará, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco – e e mesmo alguns deles não cumprem essas normas. O ISA defende que o governo federal firme parcerias com os órgãos estaduais para a regularização e estimule os estados a definirem metas próprias.
“Os governos estaduais precisam sair do berço esplêndido em que se encontram. A maioria das comunidades está em terras estaduais, em estados com legislação específica e organismos estruturados, mas sem vontade política e nenhum centavo para efetivar a regularização dos territórios”, critica Givânia Silva, da Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
“A destinação do que falta ser destinado no território é uma providência que ajudaria a desarmar muitas bombas que hoje estão armadas país afora”, avalia Márcio Santilli, sócio fundador do ISA. “Temos uma demanda concreta de ordenamento fundiário, de conclusão do processo de destinação das terras públicas, onde ocorre, de maneira mais intensa desmatamento, grilagem, disputa armada por essas áreas”, completa.
Omissão provoca violência
“Quanto mais demora para a questão fundiária se resolver, mais os conflitos se acirram. A questão é fundiária. As pessoas que se colocam na frente [da luta pela terra], estão correndo risco de vida”, alerta Raquel Pasinato, coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA.
A violência no meio rural no Brasil está, há alguns anos, em curva ascendente. De acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), 2017 foi o ano mais violento no campo desde 2003: os 70 assassinatos registrados representaram um aumento de 15% em relação a 2016. A CPT ressalta que o número tende a ser subestimado porque vários casos não são registrados.
Especialmente vulneráveis, os indígenas isolados sofrem com a ameaça de fechamento de algumas das 12 Frentes de Proteção Etnoambiental da Fundação Nacional do Índio (Funai) por causa da falta de recursos. As frentes buscam garantir a proteção, monitoramento e fiscalização dos territórios desses grupos.
“O fechamento [das frentes] traz uma consequência gravíssima para a proteção desses povos. Se você já tinha uma ameaça constante à invasão dos territórios dos povos em isolamento voluntário com a presença das equipes nas frentes, imagina com a ausência. E não basta ter uma frente. Tem de ter pessoas com condições de trabalho e equipe”, diz ngela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
No dossiê, o ISA traz propostas que visam fortalecer essas frentes e os instrumentos de gestão dos territórios de indígenas isolados, além de concluir os processos administrativos dos registros em situação de “informação” e “em estudo” relativos a esses grupos. Também propõe a restrição de uso para as áreas com povos isolados e de recente contato que se encontrem fora de TIs.
Gestão dos territórios
Além da regularização fundiária, é crucial que as populações possuam os instrumentos e o apoio necessários para a gestão de suas áreas e dos recursos naturais nelas existentes. Por isso, o ISA defende que o Estado apoie as comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas na formulação e implementação de seus próprios planos de gestão, levando em conta suas formas de organização e cultura.
No caso das TIs, o dossiê defende a criação de um fundo público de longo prazo para garantir os recursos, com regras mais facilitadas que as do Fundo Amazônia. Apesar de vários planos já terem sido elaborados pelos povos indígenas, no âmbito da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das TIs (PNGATI), ainda existe dificuldade no acesso aos recursos para sua formulação e implementação.
“Defendemos que se defina uma fonte de recursos que permita que a gestão seja feita de uma forma adequada, legalmente cabível e que os povos e seus líderes não fiquem reféns de frentes predatórias de exploração de recursos naturais para obter recursos básicos para a gestão de seus territórios”, informa Márcio Santilli.
O movimento quilombola discute com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), há cinco anos, a Política de Gestão Territorial e Ambiental dos Territórios Quilombolas. De acordo com Denildo Rodrigues, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a implementação desse instrumento deveria ser prioridade do próximo presidente. “Ainda falta muito por parte do Estado em efetivar a política”, considera.
A vice-presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Edel Moraes, critica a forma como o governo federal tem tratado as Reservas Extrativistas (Resex). Ela sustenta que a gestão dessas áreas conte com a participação dos extrativistas e tenha como base “os valores e princípios historicamente construídos e defendidos pelos extrativistas, que se baseiam na valorização da participação social, na melhoria da qualidade de vida e uso sustentável dos recursos naturais”. A gestão participativa das Resex é outra proposta incluída no dossiê do ISA.
Quando localizadas em UCs de proteção integral, essas comunidades têm seu modo de vida ameaçado pelas restrições ao manejo dos recursos naturais impostas pelos órgãos ambientais. No Vale do Ribeira (SP/PR), por exemplo, os quilombolas estavam sendo proibidos de fazer suas roças pela morosidade do processo de licenciamento ambiental, o que motivou o lançamento da campanha Tá na Hora da Roça.
“Em todas as UCs de proteção integral com esse cenário, que tem gente dentro, na verdade foi o parque que entrou na vida das comunidades, e não as comunidades que entraram na vida do parque. Quando o parque foi criado, aquele povo já estava ali”, lembra Joaquim Belo, presidente do CNS.
O ISA defende a priorização da demanda das populações tradicionais para criação de Resex, que permitem o uso sustentável dos recursos. No caso de UCs de proteção integral já criadas e de propriedades particulares, a proposta do dossiê é regulamentar o acesso das comunidades aos recursos necessários à manutenção de seus modos de vida dentro das áreas.
Faltam recursos
Uma das principais reclamações de lideranças indígenas, quilombolas e extrativistas ouvidas pela reportagem é sobre a falta de recursos financeiros, técnicos e de pessoal para a conclusão da regularização fundiária dos territórios.
“Para a questão quilombola, o orçamento acabou. Quando o governo não acaba com a estrutura, derrubando ela, acaba financeiramente. Acaba com a política sem acabar com o órgão”, denuncia Denildo Rodrigues. Levantamento da organização Terra de Direitos demonstra que, nos últimos cinco anos, o orçamento para titulação de quilombos no Incra caiu 97%, passando de cerca de R$ 42 milhões, em 2013, para R$ 1 milhão, em 2018.
O orçamento da Funai também segue como um dos mais baixos dos últimos dez anos, apesar de ter aumentado, entre 2018 e 2017: o órgão recebeu R$ 596,90 milhões, quase R$ 50 milhões a mais do que no ano passado.
Uma das possíveis soluções para parte das demarcações de TIs seria a indenização pela terra aos portadores de títulos de propriedade legítimos e de boa fé – hoje, a Constituição autoriza apenas a compensação pelas benfeitorias realizadas pelos não índios. O ISA defende a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 132/2015, em tramitação na Câmara, cujo objetivo é garantir o direito a essa indenização. Também é preciso garantir os recursos para a desapropriação dos moradores de UCs.
Uma das saídas para tentar suprir a carência orçamentária para as indenizações, prevista no dossiê, é a emissão de Títulos de Dívida Agrária (TDA), recurso já utilizado pelo Incra no caso de desapropriações de imóveis rurais para fins de reforma agrária e que amortiza o impacto do passivo ao longo dos anos.
“Não é possível que a garantia dos direitos seja reconhecida como custos que podem ser colocados numa lista de possíveis cortes se estamos buscando a solução de problemas numa perspectiva de desenvolvimento do país. É um investimento em políticas de garantia de direitos e sustentabilidade”, considera Adriana Ramos, coordenadora de Política e Direito do ISA.
Para suprir a demanda de pessoal atuando na regularização dos territórios, o ISA defende a duplicação do número dos servidores do Incra responsáveis pelas titulações de quilombos. Também incluiu entre as propostas a realização de concursos para servidores alocados em área, no caso de UCs.
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Foto: Terra Indígena Yanomami (AM) | © Marcos Amend