Por João Feres Júnior e Juliana Gagliardi, no Manchetômetro
BBC News Brasil – Então quando o senhor defende o PT, admite que houve corrupção?
Chomsky – Quem defende o PT?
BBC News Brasil – O senhor fala em defesa do Lula.
Chomsky – Falo em defesa do Lula de uma maneira muito especial. Digo que houve conquistas significativas, mas houve erros. E que ele agora foi condenado de uma maneira completamente desproporcional ao que fez ou deixou de fazer. Isso não é defender o PT, é descrever os fatos.
Noam Chomsky, professor de linguística da Universidade do Arizona e ativista de esquerda conhecido mundialmente, visitou ontem, 20 de setembro, em Curitiba, o ex-presidente Lula na prisão. Neste contexto, Chomsky concedeu uma entrevista à BBC News Brasil,[1] da qual foram publicados apenas “os principais trechos”.
Praticamente metade da entrevista tem como tema Lula e os governos PT (cinco perguntas de um total de 11 e mais três comentários), o que seria natural dada a motivação da visita. Contudo, o viés que transparece nas perguntas formuladas pelo jornalista da BBC é tão pronunciado que faz lembrar os veículos da imprensa grande brasileira. A primeira pergunta é bastante aberta e pede a Chomsky que elabore como Haddad pode lidar com o sentimento anti-PT se vencer a eleição. O linguista estadunidense sugere que o partido crie uma comissão da verdade para investigar os erros do partido. Ao final da resposta diz que todos os partidos deviam fazer o mesmo.
O repórter então emenda uma pergunta na qual pretende saber do professor se os ganhos nos governos do PT não foram cancelados por “práticas de corrupção, fisiologismo e toma-lá-dá-cá”. Chomsky responde que o problema não foi a corrupção, mas a estratégia da política econômica e que muitas conquistas sociais foram feitas. Aí, o entrevistador da BBC-Brasil interpõe uma afirmação, como que com intenção de repreender o entrevistado: “Mas essas conquistas começaram a entrar em declínio durante o governo do próprio PT”.
Chosmky volta a afirmar que a opção de apostar na produção de commodities como setor mais dinâmico da economia do país foi o maior erro e que a corrupção é “endêmica não apenas no Brasil, mas em todo o hemisfério”. Ao ouvir tal resposta, o repórter desfere uma nova pergunta em tom de “ah, então te peguei!”: “Então quando o senhor defende o PT, admite que houve corrupção? O linguista responde curto, com aparente irritação: “Quem defende o PT?”. E obtém a segunda resposta: “O senhor fala em defesa do Lula”, invertendo a ordem da entrevista.
Chomsky então argumenta que Lula foi condenado injustamente, que ele foi tolerante com a corrupção mas que não evidências sólidas que tenha se locupletado pessoalmente, e que a corrupção é endêmica na América Latina. Mas a BBC-Brasil não se contentou com a resposta. Seu emissário, mais uma vez demonstrando atitude inquisitória, emendou: “O senhor acha que Lula não tem responsabilidade pelos crimes de que foi condenado?” A resposta mostra que o intelectual conhece bastante o caso de Lula, inclusive detalhes da sua sentença, colocando sob suspeita as evidências de propriedade do tríplex, a delação que deu origem ao caso e a pena que foi aplicada. Terminando por se alinhar à recomendação do Comitê de Direitos Humanos da ONU de que Lula não perca seus direitos políticos e possa concorrer à presidência.
Inconformado com mais essa resposta de Chomsky, o repórter tenta novamente encurralá-lo: “Mas a sentença a Lula foi confirmada em segunda instância, enquadrando-o na Lei da Ficha Limpa, que ele próprio sancionou durante seu governo”. Demonstrando paciência generosa, o linguista gerativo diz que os critérios que se aplicaram a Lula não se aplicaram a outros políticos e que o combate à corrupção deve ser feito de modo justo e correto.
A saraivada de perguntas termina com mais um questionamento inquisitório: “O senhor acha que a sentença seria diferente para membros de outros partidos?” Chomsky é taxativo: “Radicalmente diferente. Acho que seria incomparável”. E não sem um toque de ironia, retorna uma pergunta: “O presidente (Fernando Henrique) Cardoso seria sujeitado a essa sentença de prisão por uma acusação semelhante?”
Dessa vez, contudo, o repórter da BBC-Brasil não se mostrou disposto a responder ao entrevistado. Fez ouvidos moucos e mudou de assunto, passando a perguntar sobre o candidato Jair Bolsonaro.
A reportagem produzida pela BBC-Brasil é mais uma peça de jornalismo marrom produzida em solo tupiniquim. Parece inspirada no estilo adotado pelos âncoras Bonner e Vasconcelos nas entrevistas com os presidenciáveis. Há outras maneiras de se fazer jornalismo. É claro que o assunto da condenação de Lula e das acusações de corrupção contra o PT são condizentes à situação, mas a postura adotada pelo repórter de tentar constranger o entrevistado a admitir que Lula foi corrupto ou que sua prisão foi legal é vexatória. Chomsky poderia ser questionado a respeito do paradeiro das esquerdas na América Latina, nos EUA e no mundo, sobre o papel da mídia na atual crise mundial da democracia – assunto sobre o qual ele é especialista – e tantos outros assuntos de relevância. Em vez disso, o viés predominante do entrevistador foi o de desqualificar o apoio do intelectual a Lula com perguntas que tentavam minimizar as conquistas do petista ao passo que insistiam na redução da política ao tópico da corrupção.
A entrada de mídias internacionais no mercado brasileiro foi vista por muitos como uma lufada de ar fresco em um ambiente jornalístico extremamente tóxico, que há décadas só mostra sinais de degeneração. Contudo, mesmo empresas conhecidas mundialmente pela sua qualidade e profissionalismo jornalístico, como a BBC, parecem ter aderido ao clima geral de morbidez. Seria isso produto da lógica do mercado, que os empurra a competir pela preferência de um público conservador e antipetista, de classe média? Seria uma contaminação advinda da formação dos jornalistas brasileiros, por anos a fio acostumados aos padrões a imprensa grande? Essas são questões difíceis de responder. Por enquanto, só nos resta lamentar.
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